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Tempus fugit (1)

Conversava com o meu amigo Apolinário, quando ele se queixou de um aluno que se atrasara em relação aos outros e à matéria que já tinha “dado”. Pensei ser uma oportunidade de, fraternalmente, lhe demonstrar que esse aluno não se atrasara, ou que, na verdade, todos se tinham atrasado, devido ao desperdício de tempo que ocorrera na aula que acabara de “dar”.

A aula “dada” pelo Apolinário durou 50 minutos e foi “dada” para 35 alunos. Foi só efetuar alguns cálculos…. Entre as demoras na entrada dos alunos (e, diga-se em abono da verdade, também do professor…), da chamada oral e do registo das faltas (“Número 1, Abel Marinho” e por aí adiante, até ao trigésimo quinto aluno) foram-se 5 minutos bem contados. Façamos a conta: 35 alunos vezes 5 minutos dá um total de 175 minutos.

Seguiu-se o “registo da matéria dada”. Seria lógico que um “sumário” fosse registado no final da aula, quando o professor viesse a saber quanta e qual matéria tinha “dado”. Presumamos que o Apolinário possuía uma bola de cristal, e vamos ao que interessa… Entre o registo da matéria “dada” e a distribuição de material foram-se mais 5 minutos. Nova multiplicação de 5 por 35 e lá se foram mais 175 minutos…

A aula mal tinha começado e as conversas paralelas já se haviam instalado, complementadas com mensagens de celular (discretamente escritas por debaixo das mesas), jogos em nada relacionados com a matéria, acompanhados de uma contínua algazarra… Em admoestações, avisos e suspensões sucessivas do discurso, o professor despendeu um total de 10 minutos. Contas feitas – por “não haver condições para dar a aula” – mais 350 minutos desperdiçados.

Um longo e inútil sermão final e a recolha de materiais consumiram os últimos 5 minutos da aula. Ora… 5 vezes 35 dá mais (ou mais precisamente, dá menos) 175 minutos.

Nos 25 minutos de aula restantes, o professor tentou ensinar o que seria suposto ensinar. Mas, nem o professor fingiu que ensinava, nem os alunos se mostraram empenhados em fingir que aprendiam. Cerca de metade – por excesso ou defeito de pré-requisitos para a compreensão da matéria “dada”, ou por incompreensão do código linguístico usado pelo professor – ausentaram-se, “desligaram” (terminologia usada pelo professor em causa). Arredondando os números: 25 minutos vezes vinte alunos (e estarei a ser muito generoso…) dá 500 minutos. Somando: 175 + 175 + 350 + 175 + 500 = 1375.

Estes números não são contas de mercearia, são realidade. Numa só aula de 50 minutos, o professor desperdiçou 1375 minutos. Convertendo a cifra em horas, concluiremos que o prejuízo foi de mais de 22 horas de aprendizagem inutilizadas.

Já estou a imaginar os críticos do costume a rezar-me na pele… Mas eu nem sequer evoquei o tempo perdido na realização de provas, ou resultante das faltas dos professores. Muito menos referi as conclusões de um relatório da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura, que nos dá conta de outros desperdícios (2).

Acrescentarei que, no final de uma tão simples demonstração, ainda esbocei uma análise menos “quantitativa”.

Falei-lhe do conceito de “envolvimento na tarefa” e de outras pedagogias, nos quais o tempo desperdiçado (com cada aluno e todos os alunos) é quase nulo. Foi, também, tempo desperdiçado. À semelhança de outros mestres, o Apolinário só ouve aquilo que quer ouvir. Como se nada tivesse escutado, pôs fim à conversa:

E tu nem contabilizaste o que me faz perder mais tempo, aqueles alunos que estão sempre a fazer perguntas e a quebrar-me o ritmo da aula!

(1) in Pequeno Dicionário dos Absurdos da Educação. Porto Alegre, Artmed, 2009.
(2) Escolas Corruptas, Universidades Corruptas: O Que Pode Ser Feito? (Unesco).

Por: José Pacheco

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Desaular é preciso

Quando me perguntam por que razão, ao cabo de quase meio século, eu insisto em pedir que desaulem as escolas, respondo que nunca será demais fazê-lo. Porque se a aula – dispositivo central de um modelo educional centrado no professor –, alguma vez, foi um dispositivo pedagógico “eficaz e eficiente”, já não o é. Mesmo que enfeitada de novas tecnologias, mesmo que “invertida”, aula é aula.

Apesar de o Freinet, há um século, ter abdicado do palco da sala de aula, que sustentava a sua mesa de professor, toda a palestra (aula) tem um palco. O daquele congresso era imenso, uns dois metros acima do nível da plateia. Os espaldares das poltronas, onde se pode repousar o braço, ou apoiar algo onde se escreva, estavam todos situados do lado direito, pelo que presumi que o acesso ao local ficasse condicionado apenas a destros (certamente, haveria outro local, para sentar espectadores canhotos).

Os palestrantes desempenharam o seu papel a preceito, deram aulas magistrais, espectaculares manifestações da ancestral arte, enfeitadas com power point, música e ternurentos afagos do ego do espectador.

Caminhando para o palco, fui interpelado pelo organizador do evento:

Professor, por favor, não diga aquelas coisas, que você diz e que incomodam os professores.

O quê?

Você diz que uma aula é inútil e até prejudicial… Eu já o escutei dizer isso em outras palestras.

Iniciei a minha “palestra”, dizendo que aula é inútil e prejudicial e perguntando: O que quereis saber?

Sucedeu o silêncio habitual, interrompido pela intervenção de um palestrante, com assento na primeira fila, em tom irônico, provocador:

Eu sempre dei aula e dar aula ainda é o melhor dos métodos. Então, o que me diz, colega?

Se esse era o melhor dos métodos, perguntei-lhe o que sabia dos métodos piores. Todos os olhares se voltaram para o meu interlocutor, que ficou mudo e quedo. E, em poucos segundos, saiu do auditório, visivelmente incomodado.

Algumas escolas e secretarias de educação já se emanciparam de práticas fósseis. E uma universidade brasileira até trocou a aula pela aprendizagem por projetos. Mas adentramos o século XXI ancorados em velhas e nefastas práticas. Vamos adiando uma catarse, que nos liberte de atávicos procedimentos.

Os jornais informam que professores universitários vão ser inscritos em cursos, para adotarem novos modelos de aula (…). Adoção de novos tipos de aula, para que os alunos possam absorver melhor os conteúdos (sic) nas suas universidades.

Peremptório, o diretor de uma universidade afirma:

Não dá para abandonar as aulas tradicionais de uma vez.

Pois não! Escutamos esse discurso, há mais de cem anos E as universidades pagam milhões de reais a norte-americanos dadores de aula, para darem “aulas modernas”. Um absurdo! Recurso desperdiçado na compra de subprodutos de uma pedagogia requentada.

Ao meu lado, alguém matraqueou o celular – cena comum nas salas de espera de aeroportos – até fazer uma ligação:
Vou chegar à faculdade em cima da hora da aula. Você pode xerocar as páginas que os meus alunos de pedagogia vão ler hoje?

Devo confessar que sinto um prazer mórbido no alfinetar destes professaurios cultores das aulas. Mas quedar-me-ei por esta alfinetante crônica. Voltarei, em breve, para abordar a desusinação. É necessário desclausurar a escola da cela de aula. Mas, em plena Quarta Revolução Industrial, é preciso desusinar, dado que ela também tem por referência a produção em série das usinas da Primeira Revolução Industrial.

Por: José Pacheco

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Aulas Fônicas

Sei que venho produzindo uma “overdose” de crônicas em torno do conceito e da prática de “aula”, mas direi que nunca será demais reagir perante a insanidade de manter essa aberração pedagógica como dispositivo central de um obsoleto modelo de escola. Por que não questionar a aula? É tabú?

Como escrevi numa nota, o professor auleiro (neologismo criado pelo meu amigo Pedro Demo) não ensina aquilo que diz; o professor transmite aquilo que é. O professor auleiro contribui para a reprodução e perenização de uma cultura pessoal e profissional feita de solidão e heteronomia.

Este arrazoado decorre de ter escutado um auleiro dizer que “ensina pelo método fônico” e que nas suas aulas, “quem aprende, aprende, quem não aprende vai para reforço”. O auleiro ensinava “do modo que antes se ensinava, do mesmo modo que foi ensinado” (sic): todo mundo ao mesmo tempo, o tempo de uma aula.

Sozinho, o docente estabelecia o “ritmo da aula”, em detrimento do ritmo de cada aluno. Ao cabo de alguns meses, sugeria, que os alunos que não acompanhavam o “ritmo da aula”, recebessem aulas de “recuperação”. O esforçado auleiro não sabia, mas ignorava os estilos de inteligência de cada aluno e desprezava o repertório linguístico de cada criança.

Em levantamentos de repertório linguístico efetuados em várias escolas brasileiras, identificamos crianças que reconheciam (globalmente) mais de cem palavras, como… Coca-Cola. Porém, na escola, não liam a palavra. Decoravam letras e balbuciavam sílabas: ca, ce, ci, co, cu, la, le, li, lo, lu…

Eram assim as aulas fônicas. Professor sozinho, na sua sala de aula, no frontal anônimo de aula igual para todos, ignorando que cada aluno apela a diferentes estilos de inteligência e tem ritmo de aprendizagem próprio, que difere dos restantes. Cada ser humano aprende a ler numa diversidade de metodologias – há métodos de base silábica, os analítico-sintéticos, os globais de palavras, contos, ou de frases, há abordagens fonomímicas e fotossintéticas – mas o método fônico continua sendo quase hegemônico. E, entre o fônico e a aula, prospera o analfabetismo.

Enquanto Gadotti afirma que a pedagogia tradicional, centrada sobretudo na escola e no professor, não consegue dar conta de uma realidade dominada pela globalização das comunicações, da cultura e da própria educação, continuamos a enfeitar o obsoleto modelo de ensino com aulas de apoio, de reforço, de “bem-estar”, ou de ética; com rankings, jogos, olimpíadas, “qualidade total”, cursos de “planejamento de aula”, a vender “cursos de metodologias ativas na sala de aula” (como se isso fosse possível…) e até “capacitações para dar aulas com alegria” (sic).

Seis décadas atrás, o meu professor ordenou que, de memória, eu recitasse um poema, que se incrustou na memória de longo prazo. Termina assim: Que os adultos, Senhor, / Sofram tormentos sem fim. / Mas as crianças, Senhor, / Por que lhes dais tanta dor? / Por que padecem assim? Sempre que evoco estes versos, me interrogo: que razão se continua dando aula “fônica”, se isso significa condenar milhões de jovens ao analfabetismo?

Eu sei que, neste remar contra a maré de medo, ódio e ignorância, precisamos cultivar uma paciência idêntica à do Jó, de que nos fala a Bíblia. Mas, Senhor, por que permitis que as crianças padeçam assim? Quanta crueldade!

Por: José Pacheco

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Síndromes

Certo dia, perguntei à mãe de um aluno: Porque é que o seu filho não come verdura, feijão ou arroz?
É porque não posso contrariar o meu filho – respondeu – O psicólogo disse-me que ele tem sistema nervoso. E isso deve ser muito perigoso! Mas, também, veja lá, senhor professor! Eu não tenho tempo para essas coisas. Eu pus o meu filho no jardim de infância e as educadoras não o ensinaram a comer! O que vale é que, quando volto do trabalho, vou com o meu filho ao MacDonalds. Tem um perto da nossa casa. E, no sábado, vamos ao shopping…

Os pais vão trabalhar, os filhos para a escola. Agora, já vão ainda bebês, cerca dos três, ou quatro meses. Um crime, que tem como contrapartida a chamada “síndrome do imperador”: a ditadura da infância, legiões de jovens desprovidos de autoconhecimento e que não reconhecem o outro. Seres narcísicos, caprichosos, hedonistas, deprimidos… narcotizados. Enquanto os netos são encerrados em guetos da infância, os avós são segregados em apartamentos vazios. As famílias não tentam criar vizinhança, comunidade. Terceirizam a educação, enquanto a escola se queixa dos erros de uma educação familiar, que oscila entre o autoritarismo e a permissividade.

A modernidade remeteu-nos para uma ética individualista. Carecemos de projetos humanos que não se coadunam com práticas escolares que ainda temos. Carecemos de um novo sistema ético, de uma matriz axiológica baseada no saber cuidar e conviver. Famílias e escolas padecem da “Síndrome da Gabriela”: eu nasci assim, eu fui sempre assim, serei sempre assim… Famílias onde o diálogo está ausente e o silêncio impera; escolas cassinos, onde tudo é game, uma das modas pedagógicas mais recentes. Escolas onde as crianças fazem tudo o que querem. E onde não querem aquilo que fazem. Professores que ainda não entenderam que o ato de aprender não deverá estar centrado no professor, nem no aluno. E que aprendemos na intersubjetividade, mediatizados pelo objeto de estudo e pelo mundo, a partir de necessidades pessoais e sociais. Desenvolvendo vínculos!

No Japão, entre 1972 e 2013, mais de 18 mil crianças se suicidaram. O pico de suicídios acontece no “regresso às aulas”. Notícia recente dá-nos conta do aumento do número de suicídio de adolescentes. Três estudantes de colégios privados de elite da capital paulista suicidaram-se. O colégio contratou um “especialista em suicídio”, para dar palestras. Uma escola de suicidados torna público que irá desenvolver “um projeto” avulso para combater a praga. Como se palestras pudessem constituir-se em paliativos de um modelo de ensino e de organização escolar responsáveis por um autêntico genocídio educacional. Enquanto houver escolas cativas dos paradigmas da instrução, ou da aprendizagem, não agindo com referência ao paradigma da comunicação, quantos Niemeyer serão assassinados em escolas de práticas fósseis, antes de poderem manifestar os seus talentos?

A “Síndrome de Peter Pan” é caracterizada por comportamentos imaturos. Manifesta-se nas mulheres sob a designação de “Síndrome de Wendy”. Talvez parte da explicação do suicídio dos jovens e do genocídio educacional esteja relacionado com estas síndromes. Talvez resida no fato de ainda termos uma educação dominada por ministérios afetados pela síndrome de Peter Pan e escolas padecendo da síndrome de Wendy…

Por: José Pacheco

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Amor, Ordem e Progresso

Amor por princípio, a Ordem por base, o Progresso por finalidade – eis o lema adotado por Benjamim Constant, o “Fundador da República Brasileira”. Benjamim foi Ministro da Instrução Pública, autor de uma profunda reforma curricular, propôs a descentralização da gestão e uma “formação adequada aos novos tempos”.
Apesar de ter sido militar e condecorado como combatente na Guerra do Paraguai, Benjamim era um pacifista, assumia o princípio de que se deve “Viver para Outrem”. E, ao participar no movimento pela Proclamação da República e na elaboração da Constituição de 1891, pugnava por que a palavra Amor estivesse presente em todas as citações do lema positivista.

Tal como o Benjamim de há mais de cem anos, sabemos que as pessoas deverão amorosamente colaborar com pessoas, sem com elas competir. Sabemos que escolas são pessoas e que as pessoas são os seus valores. Nos últimos quarenta anos, milhares de vezes orientei a construção de “árvores dos valores”. Cada participante nessa dinâmica de grupo indicou o valor essencial das suas vidas. E o “tronco” da “árvore”, o valor mais vezes referido sempre foi o… Amor.

Numa tese sobre a Escola da Ponte, encontrei a descrição de um episódio, que transcrevo. Nos idos de 1980, o “Tribunal” julgava alunos, cujos nomes surgissem em grande quantidade no “Acho Ruim”. Na proto-história da humanidade, em que os homens ainda precisam de tribunais, prisões e guerras, as crianças imitaram-nos. Até ao dia em que uma menina de seis anos de idade, advogada de defesa de um colega, assim falou numa sessão do “tribunal”:
Vós não ouvis dizer que devemos amar-nos uns aos outros? Eu escutei o advogado de ataque dizer que o Marco cospe nos colegas, que lhes atira pedras, que o Marco é mau. Mas o Marco não precisa que digam que é mau. Ele precisa de quem o ajude a ser bom. Algum de nós já ajudou o Marco a ser bom?
E continuou: Estou nesta escola há um ano e só ouço falar de castigos. Proponho que se acabe com o tribunal e se crie comissões de ajuda.

Assim ficou decidido na assembleia seguinte. E, sempre que o Marco tendia para fazer besteira, logo um círculo humano o rodeava, dizendo: Somos a comissão de ajuda. Estamos aqui para te ajudar. Nós sabemos que tu és bom. Nós somos teus amigos! – E o “mandamento novo” se cumpriu. Nunca mais foi preciso impor regras, reprimir, punir.

A aprendizagem acontece, se tecemos vínculos afetivos – se eu existo é porque o outro existe. O ser humano não é apenas um ser de contato – é um ser em relação – e a educação é um ato de amor. Mas continuamos insensíveis aos apelos de Freire e do poetinha: ponha um pouco de amor na sua vida. E, nos arquipélagos de solidões em que as nossas escolas se transformaram, inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque apenas se amam.

Cadê a palavra Amor na bandeira brasileira? Ordem sem amor é violência, porque o adestramento não define a educação e uma educação amorosa é incompatível com a organização autoritária da vida. Progresso sem amor é deterioração ambiental, desumanização.

Na sociedade doente em que vivemos, prevalece a cultura do ódio. Imaginai o que seria este país se a palavra Amor não fosse ostracizada. Se o mais belo hino do mundo nos diz que um raio vívido de Amor e de esperança à terra desce, porque terá sido amputado o lema positivista inscrito na bandeira do Brasil?

Por: José Pacheco

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