Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVIII)

Piracanga, 08 de abril de 2040

O Tiê não parava de perguntar. Ainda não havia chegado à idade de “ir à escola”. Dizem estudos que, à entrada no Fundamental, metade das crianças já não fazem perguntas. No final do Fundamental, a cifra cai para menos de dez por cento. Nas escolas de Ensino Médio, são raros os jovens que interrogam. E, nas universidades, quantos alunos fazem perguntas?

Fui professor do Fundamental. Quando entrava na sala, dizia: Bom dia, meus amigos!

Respondiam: Bom dia, professor!

Quando trabalhei na Universidade, entrava na sala, fazendo idêntica saudação: Bom dia, meus amigos!

Em silêncio, os jovens universitários escreviam nos seus cadernos: “Bom dia, meus amigos”.

Quem os havia posto assim? Quantos professores se interrogam sobre as origens deste drama?

Recordar-te-ás, certamente, querida Alice, das cartas que este avô te enviou, quando nasceste: Recorria a personificações, metáforas e outras figuras de linguagem. Quarenta anos depois, excelente profissional de Psicologia que és, contigo poderei usar de uma linguagem técnica, científica. Mas, com o Tiê, não.

Perguntou: Vovó o teu cabelo é branquinho… por quê?

Por que será? – respondi com a pergunta, que dispara a busca de resposta…

Num sei, vovô…

Brinquei com o Tiê. E, com a minha ajuda, ele encontrou a resposta. Para a Alice psicóloga, a conclusão é simples: contrariamente àquilo que a näo-diretividade ingénua postula, a criança não faz o que quer – a criança quer aquilo que faz, porque faz sentido. Já percebeste que estou a falar de Vygotsky…

Pois fica sabendo que encontrei doutorados em socio construtivismo, que davam aula. Diziam aos formandos que os alunos deveriam ser o centro do processo, enquanto davam aula, centrada no… professor. Das duas, uma: ou eram esquizofrênicos, ou analfabetos funcionais – leram Vygotsky, mas nada entenderam. Eram os “porquenins”, seres do nem sim, nem não. Em Brasília, encontrei uma subespécie: os “porquessins”. Se lhes perguntássemos, por exemplo, por que havia aula, eles respondiam: Porque sim. E… pronto! É assim, porque é assim, porque eu mando que seja assim.

Mancomunados com porquessins e porquenins, os “porquenãos” impunham que se ensinasse a voar a todos como se de um só se tratasse, como se cada ser não fosse um ser único e irrepetível. Muitos professores não ousavam sair da caixa preta da sala de aula, com medo de que algum porquenim espreitasse e fosse contar pecadilhos a um porquenão. E os obstinados porquenãos continuaram no fazer, sem saber explicar por que faziam. Era assim… e pronto!

Aos porquenins – ora de acordo com uns, ora com outros, conforme a ocasião e como lhes dava mais jeito – o Darcy deu o nome de áulico. Os áulicos eram semelhantes aos papagaios, aves que repetem e não refletem. Os áulicos eram surdos, insensíveis a uma interpelação fundamentada, criaturas horríveis.

Mas, como diria um outro rouxinol (de nome Pessoa), se deixasse de haver seres horríveis, o mundo ficaria mais pobre, só porque teriam deixado de existir. Por isso, estendíamos mãos solidárias aos porquenins, aos porquessins e porquenãos, na intenção de os ajudar a compreender e a decidirem ser éticos.

Foi o amor, sempre presente no canto das almas sensíveis, que comoveu as almas empedernidas dos porquenãos e as redimiu do pecado da ignorância e da maldade. A doce paciência das almas sensíveis ajudou os pássaros doentes a não terem medo da luz diurna, a não fechar os olhos à claridade. Convenceu porquenãos e porquenins da inutilidade da sua azáfama de pássaros rotineiros.

Irei contar-vos como tudo aconteceu.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVII)

Jardim Botânico, 07 de abril de 2040

Nos idos de abril de 2020, a crise do vírus progredia. Para aliviar o sofrimento de amigos, que haviam perdido familiares, eu enviava-lhes umas cartinhas virtuais. Outras eu endereçava ao mundo da educação. Foi o que fiz, há precisamente vinte anos, quando a secretaria de educação publicou um anúncio da Internet: “Tire suas dúvidas sobre como serão as tele aulas”. A secretaria anunciou que transmitiria um programa educativo na internet, para auxiliar alunos da rede pública durante a pandemia.

Acrescentava o anúncio: as atividades não são obrigatórias e não contam como dia letivo, mas podem ajudar a manter a rotina. Elas servem para oferecer conteúdo aos estudantes enquanto as aulas não voltam (sic). O anúncio também nos convidava para participar de um encontro no facebook, no qual a secretaria de educação responderia a perguntas sobre o programa Escola em Casa.

Aquilo que vi e ouvi no facebook foi merecedor de um comentário. Reproduzi-lo-ei nas próximas cartinhas. Espero que tenhais paciência e tempo para o ler. Fá-lo-ei sem usar jargão científico, ou recorrer a notas de pé de página e bibliografia. Porém, não deixará de acontecer sob a forma de diálogo fundamentado no bom senso e numa ciência prudente. Tal como agiu o ministro da saúde de então, perante a pandemia.

Mandetta, os profissionais de saúde e serviços, bem como muitos solidários professores, correram riscos, para salvar vidas. Foram os meus heróis durante a crise. Mandetta não se demitiu, apesar de ameaçado e criticado nas redes sociais. Leal ao Juramento de Hipócrates, ele assumia que: “o médico não abandona o paciente”.

Eu sugeria que se estendesse à nobre profissão de educador o mesmo princípio: “nenhum aluno pode ser deixado para trás”. Mas, as secretarias continuavam a impor a professores temerosos e famílias preocupadas com o bem-estar dos seus filhos um modelo de ensino responsável por um autêntico genocídio educacional. As famílias desejavam que os seus filhos fossem felizes, mas a secretaria impunha a muitos seres humanos um destino feito de infelicidade. Nesse tempo, muitos professores adoeciam e o suicídio juvenil atingia níveis nunca vistos.

Durante duzentos anos, esse modelo de escola fora um dos responsáveis por inúmeras catástrofes e flagelos. A escola da ensinagem engendrou degradação ambiental e guerras sem fim. Consciente de que fora vítima de uma educação decrépita e arcaica, um sobrevivente do holocausto deixou, num campo de concentração nazista, uma carta dirigida aos professores:

Prezado Professor, sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados. Crianças envenenadas por médicos diplomados.

Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a Educação. Meu pedido é: ajude seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e saber aritmética, só serão importantes se fizerem nossas crianças mais humanas.

Infelizmente, a escola da ensinagem sobreviveu à segunda guerra. Seria preciso substituí-la pela escola da aprendizagem. Durante a crise, para que, após o reinado do corona, não se corresse o risco de viver uma terceira… e última guerra.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXVI)

Mafra, 06 de abril de 2040,

Queridos netos,

Enquanto ligava o computador, recordava um episódio de antanho. Tinha à minha frente cerca de uma centena de jovens. Discutíamos as virtudes e os defeitos da escola de antigamente, num ambiente de incómoda letargia. Para os espicaçar, exagerei algumas posições críticas. E, talvez por ser apanágio da juventude contrariar os adultos, um dos jovens assumiu a defesa do chamado “ensino tradicional”:

Ó professor, escusa de vir com esses argumentos, que eu aprendi tudo o que sei ouvindo aula. Saí da escola muito bem preparado!

Ainda bem. – respondi, atenuando a irritação do jovem.

Ele insistiu, realçando as qualidades do dito “ensino tradicional”, nomeadamente, “a preparação que dava na Matemática e na Língua Portuguesa”.

Eu contrapus:

Permitis que vos coloque algumas perguntas?

Faça o favor! – disseram, num tom desafiador.

Aproveitei a deixa e coloquei-lhes duas questões muito simples, uma relacionada com a Matemática, outra com o Português. Alguns ainda balbuciaram algo ininteligível, depois fez-se um silêncio de embaraço. E eu rematei a discussão com crueldade. Recorri a outras perguntas a que ninguém ninguém soube responder.

Se, nas áreas nobres, já estávamos conversados, a incursão na História acabou com a resistência daqueles combativos jovens. Todos se gabavam de saber na ponta da língua as datas e os nomes. Mas, tudo se lhes tinha varrido da memória, à semelhança do que decoravam para os exames, que preencheram o seu itinerário escolar até à universidade. Tudo tinham “vomitado” nas provas e, depois, esquecido, para “arranjar espaço para o que não cabia na cola”.

Magnânimo (como convinha à circunstância…), eu lá fui dizendo que nem tudo se deveria rejeitar no “ensino tradicional”, que era falsa a dicotomia entre moderno e antigo, inovação e tradição. Afirmei-lhes ter testemunhado inovações no “antigamente”, ilustrando a afirmação.

Nos primórdios da década de setenta e nos vigiados e estreitos corredores de liberdade de uma escola sujeita aos ditames da ditadura, um professor desafiou-me para a aventura de um conhecimento, que nos era sistematicamente ocultado. Incitou-nos a conduzir os nossos destinos: O que quereis fazer? O que quereis aprender? – perguntou logo no primeiro dia de aulas. E nós ficámos perplexos, receosos de uma eventual armadilha contida na pergunta. Rapidamente se desvaneceu a desconfiança. Partimos na aventura de descobrir.

No meu percurso de estudante, nunca mais ouviria da boca de um professor esses estimulantes desafios. Mas as palavras e os gestos desse professor ficaram a levedar no mais profundo do subconsciente, à espera do momento propício para se transmudarem em atos.

Aqueles “velhos” jovens rejuvenesceram:

Estudamos a História de ponta a ponta, mas ficou pouca coisa. A gente tem de ser humilde e aceitar que as coisas eram mesmo assim.

Se, no domínio da acumulação de conhecimentos, o “ensino tradicional” falhou rotundamente, o que dizer da aprendizagem de outros saberes? O “tradicional” ostracismo a que era votado o desenvolvimento sóciomoral dos jovens, contribuía para reforçar a ideia de que teríamos de aceitar como fatalidade uma sociedade de vícios privados e públicas virtudes.

Felizmente, a educação familiar e aquela que alguns professores vos propiciaram protegeu-vos dos malefícios de uma “tradição podre”.

Recebei o amoroso abraço do vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXV)

Arraial d’Ajuda, 05 de abril de 2040

Na Bahia de 2020, a mãe do Tiê operava amorosas transformações. Não apenas para o seu filho, mas para os filhos da sua comunidade. Disso vos falarei numa cartinha dedicada ao Jardim Cirandas. Hoje, falar-vos-ei de saber perguntar. E nisso o Tiê era especialista. Pergunta de criança é pergunta inteligente. Quando a fazia, o Tiê já possuía um princípio de resposta.

João dos Santos, o criador da Casa da Praia – procurai registro dessa instituição, porque vale a pena conhecer a sua estória – escreveu um livro, na década de 1970, que tinha por título: “Se não sabe, por que é que pergunta?”. Uma pergunta contém muito mais do que uma interrogação, traz com ela muita informação. O Tiê não parava de perguntar. E o vôvô Zé, como o Tiê me chamava, também não.

Você tem a mania de fazer perguntas! – diziam, só porque eu havia descoberto, nos idos de setenta, que os professores tinham mais certezas do que interrogações. Quase nonagenário, ainda sou curiosidade pura, tão questionador quanto o é uma criança.

Quando jovem professor, elaborei um roteiro de estudo, para reelaboração da minha cultura profissional, algo como um “decálogo”: Por que se aprende? O que se deve aprender? Quem aprende? Quem me ajuda a aprender? Quando aprendo? Com quem aprendo? De que preciso para aprender? Onde aprendo? Como aprendo? Como saber que aprendi?

Quando andava pelas escolas, incentivando nos professores a prática de uma comunicação dialógica, começava por perguntar aos seus alunos: O que queres saber? E me desgostava ouvi-los responder com outra pergunta: Tio, eu posso dizer o quero saber? E o que eu quero aprender?

Eram crianças de tenra idade, mas já com meia dúzia de anos de escutar respostas a perguntas que jamais fizeram. Nas aulas, tinham desaprendido de perguntar.

Na minha vida de professor, nunca parei de perguntar: O que queres fazer? O que queres ser? E não acrescentava “quando fores grande”. Porque deixaria de ser uma pergunta, para ser um xingamento. Criança não vai ser… Criança é!

Criança perguntadora, aproveitando o tempo a que costumavam chamar de “interrupção da atividade letiva”, eu fui visitar um lugar a que costumam chamar “escola”. Recomendação de um amigo: Olha que vais gostar. O projeto é bem interessante.

Não entendi por que seria “interessante”, mas, movido pela curiosidade, lá fui. O prédio estava quase vazio, como no tempo do vírus corona. Deparei com um portão fechado, dois olhos inquisidores e a voz ameaçadora do guarda do bunkerQue deseja? Estamos fechados! A escola está fechada.

Subitamente, o alarido de uma campainha invadiu salas e corredores desertos. A campainha soava, rotineira e absurda, porque não havia alunos à escuta do “toque de recolher” à sala de aula.

Por que tocava a campainha em tempo de férias? Por que havia férias escolares? A inteligência dos alunos parava de funcionar em dezembro, para só voltar a funcionar após o Carnaval? Os hospitais entravam em férias? A igreja fazia férias? Imagine-se a situação: o crente a deparar com portas fechadas e um cartaz: Volte depois do Carnaval. O pastor está de férias.

Ainda hoje formulo perguntas, que considero pertinentes: Quando se aprende?

Em 200 letivos, ou nos 365 dias de cada ano? Em quatro ou cinco horas de aula, ou nas vinte e quatro horas de cada dia? Em uma dúzia de anos, ou durante toda a vida?

Já velho, eu sei que exaspero auleiros saudosistas. Sei que ainda há quem creia que se aprende ouvindo aula. Eu sei…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXIV)

Gama, 04 de abril de 2040

Naquele dia de abril, de há vinte anos, acordei com todas as dores do mundo em mim. Era (ainda sou) mais um daqueles educadores, que carregavam o insustentável peso de conscientização. Isso mesmo: eu era (e continuo a ser) freiriano, graças a Deus! Apercebia-me de que a administração educacional usava artifícios virtuais, para prolongar a agonia e os trágicos efeitos de um sistema de ensinagem. E os professores talvez não tivessem entendido uma subliminar mensagem e perdessem a oportunidade de fazer o que, já há mais de cem anos, precisaria ser feito.

Para recuperar a serenidade, precisei de recorrer a um dos meus lenitivos. Ignoro se ainda está disponível, numa das antigas empresas de serviços online e software, um vídeo, que reproduz o final de um filme sobre a vida de Beethoven. No velho Google, estava disponível neste endereço: https://youtu.be/qXDSW83Sc2I. Era uma versão romanceada da primeira audição da nona sinfonia.

No filme, o maestro Beethoven entrava em palco no início do quarto e último andamento, levando consigo uma jovem, que, discretamente, lia a pauta e lhe dava indicações de regência, o que, na realidade, não aconteceu. E o quarto andamento estava encurtado. O realizador e a produção tinham suprimido muitos compassos… mas vamos ao essencial.

No “hino da alegria” – a Ode An Die Freude de Schiller, magistralmente musicada por um surdo – o coro canta: Alegria, formosa centelha divina! Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam onde teu doce voo se detém. O filme mostra que, no final da sinfonia, o público se levantou, num longo e caloroso aplauso. Na verdade, não houve salva de palmas, mas apupos, ainda que com algumas palmas à mistura.

O poema “An die Freude” foi escrito por Schiller, em 1785. O poeta apelava à prática de ideais como a liberdade, a paz e a solidariedade. Ideais partilhados com um Beethoven, que viu censurada a sua obra. Na primeira apresentação da Nona Sinfonia, os “tradicionalistas” chamaram “aberração” ao último dos seus andamentos. Nesses tempos sombrios, os detratores do génio opunham-se a que se cantasse que “o Homem é para todo o Homem um irmão” e que “a alegria é a filha querida dos deuses”.

Quando me batia, o meu pai gritava: Não chora!”. E eu engolia o choro. Mas, os homens também choram. Nos derradeiros compassos dessa sinfonia, suave, serena, alegremente, as lágrimas rolavam pelo meu rosto. Nos dias em que a indignação se soerguia e se tornava mais difícil suportar os ecos da barbárie, a audição da “Nona de Beethoven” era um bálsamo retemperador.

Nos tempos sombrios que atravessávamos, era arriscado defrontar o fundamentalismo pedagógico. Inconformistas, dotados de poder criador ajudavam a quebrar algemas sociais. Mas, eram raríssimos os que ousavam operar mudança no submundo da escola da sala de aula. A mediocridade e a maledicência espreitavam em cada recanto físico, ou virtual. E os obreiros da mudança davam-se conta de que, se o maior aliado de um professor era o outro professor, o maior inimigo do professor era… o outro professor.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXIII)

Agreste, 02 de abril de 2040

Num janeiro de há uns vinte anos, eu seguia de Toritama para Serra Talhada, a caminho de Cajazeiras. À medida que se avança para o interior, na proximidade do Sertão, o clima fica cada vez mais seco, e a paisagem mais árida. Na madrugada da passagem pelo Agreste, o que mais me chamou a atenção foi o cortejo de crianças, mochilas nas costas, esperando o transporte escolar.

Conversei com algumas e com a mãe de uma delas. A filha havia sido acordada cerca das cinco horas. Todos os dias era retirada do leito de madrugada. Cerca de uma hora, caminhava por estradas de pó e espinhos, até ao ponto onde o ônibus a esperaria, quando fossem sete horas.

No ônibus, as crianças dormitavam. O cansaço marcava o semblante de todas. Segui o trajeto do ônibus escolar. Aos trancos e barrancos, após meia hora de padecimento, num trajeto de buracos e alguns pedaços de estrada, eis-nos chegados a um prédio, que denotava abandono e a que chamavam… escola.

Na Brasília daquele tempo, crianças moradoras em São Sebastião, por não haver “vaga” – o conceito de vaga era um absurdo, um dos sutis modos de negar o direito à educação – eram obrigadas a enfrentar transporte para outros locais do Distrito Federal. Crianças de tenra idade eram transportadas em ônibus alugados pela secretaria de educação. Os alunos mais velhos enfrentavam o transporte público, alguns precisando de quatro passagens, para chegar à… “escola”.

Mensalmente, se desperdiçava um milhão e seiscentos mil reais! Certamente, os funcionários responsáveis pelo transporte escolar ainda não haviam tido tempo de ler o documento orientador da política educacional da sua secretaria. Nele, Anísio sugeria uma gestão de espaços educacionais alternativos ao da “escola da vaga”. Dizia que a escola deveria ser o bairro, a comunidade… onde não era preciso transporte escolar.

No dia seguinte, participei numa mesa de debate sobre evasão escolar. O momento alto do debate foi provocado por uma oportuna intervenção vinda da plateia, referência a uma notícia, que dava conta da deleção de um empresário de ônibus, que atingia esferas de poder. Falta de ônibus impedia alunos de estudar em Rondônia. Algumas crianças já tinham perdido dois anos letivos. E o governo dizia que a situação ficaria normalizada. Era apenas mais um exemplo de corrupção, que grassava no transporte, na merenda escolar… e não só.Naquele tempo, havia muita gente que pensava que escola era um prédio e que, dentro do prédio, era suposto que as crianças aprendessem algo, que justificasse acordar de madrugada e percorrer a via sacra de estradas do interior. Não radicaria aí uma das causas da evasão? Aproveitei para lançar o debate: Por que é preciso transporte escolar? O que aprendem os jovens dentro de um edifício chamado escola, que não possam aprender fora dele?

Uma “especialista” do departamento de transporte escolar da secretaria interrompeu a leitura do seu power point, para me invectivar: O senhor doutor é um europeu, não consegue entender. Não vê que, aqui, é preciso levar as crianças para a escola?

Retorqui: Mas, não foi um pernambucano que escreveu que aprendemos uns com os outros mediatizados pelo mundo? Não consta que o vosso conterrâneo tenha escrito “mediatizados por um prédio”. Escolas são pessoas, não são prédios, minha senhora”.

Um esgar de desagrado e de desdém atravessou a face da “especialista”. Ignorou a minha interpelação. Passou, também, a ignorar a minha presença. E essa secretaria de educação nunca mais me convidou para “palestrar”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXII)

Valparaíso de Goiás, 31 de março de 2040

Queridos netos, esta cartinha contém a transcrição de mensagens, que guardei durante todos estes anos, para que a memória dos absurdos de há vinte anos não se desvanecesse. Com elas vos deixo.

Eis a primeira, recebida no WhatsApp: Boa noite. Já que isto aqui é uma rede de ajuda, eu queria saber se, no grupo, há mais alguma mãe surtada, ou se só sou eu mesmo. Porque vou ser muito sincera com vocês. Dever de casa acabou. Acabou a paciência. Acabou a responsabilidade social. Acabou tudo! Já não tou dando conta, não! Tou surtada, entendeu?

As crianças precisam voltar prá escola urgentemente. Por amor de Deus! Estou ficando com ódio! Ódio de cada professor, que me manda link para eu entrar, prá dazer exercício. Não tenho condição de fazer exercício com ninguém. Eu vou dar férias, aqui, prá todo mundo, por conta. Porque, lá na Espanha, já resolveram que esse negócio de homeschooling estressa as mães. A sério! Eu não sou pedagoga! Como é que eu vou fazer, agora, prá cozinhar, prá limpar e ainda fazer homeschooling?

Outra mãe assim se expressava: Eu estou nessa situação com minha filha no ensino médio. Ontem ela precisou scanear e enviar para o e-mail da professora uma lista de palavras para separar as sílabas… E todos os professores mandam links e links e mais links, tarefas e mais tarefas…

Uma terceira mãe, tão exausta como as anteriores: Ontem recebi o e-mail de um aluno de 11º ano, que é um jovem cheio de energia, completamente em pânico! Ninguém lhes explica nada! Estivemos mais de uma hora a teclar no Messenger. Ele não quis chamada de voz, para a mãe não ouvir e não ficar preocupada. E lá foi dormir, espero eu, mais tranquilo…

Vou comentar e já sei que me vão criticar, mas é o que penso. Repensemos o que é realmente relevante! Neste momento, a nossa preocupação fundamental devia ser o equilíbrio do aluno e não a sobrecarga de tarefas, que o obrigam a estar sentado em frente ao computador a acompanhar aulas online. Não entendo esta necessidade de se enfatizar o pior das práticas, os montes de fichas e testes, em vez de se destacar a janela de oportunidade de processos diferentes e inovadores. É só links, videoaulas, lives. Hoje, ouvi uma pessoa dizer que estava com medo de abrir a geladeira e encontrar uma LIVE lá dentro…

Por essa altura, enquanto as “ajudas” às famílias surgiam online, sob a forma de virtuais paliativos de um modelo de ensino obsoleto e sem fundamento científico, o ministro da saúde afirmava agir autonomamente, orientado pela ciência. Mandetta apelava ao Isolamento social. Mas, confinados nas suas casas, os jovens denotavam total ausência de autonomia. A escola da aula fizera deles seres dependentes, individualistas.

Eu temia que professores e famílias não tivessem entendido a mensagem do vírus. Nos últimos duzentos anos, a escola da aula havia recusado o direito à educação a milhões de seres humanos, havia feito mais vítimas do que o vírus corona. Eu temia que, após a crise, as bases do sistema econômico e do educacional não se modificassem.

Porém, aconteceu o inadiável. Educadores conscientes desse risco decidiram não esperar pela pandemia seguinte. Conceberam uma nova Educação, criaram uma nova Escola onde, realmente, se aprendia a aprender, aprendia a ser e a… conviver.

Irei falar-vos do que aconteceu nesse mês de abril de há vinte anos.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXI)

Magé, 29 de março de 2040

No tempo em que o COVID-19 se instalava, havia quem contrariasse conselhos de amigos e governamentais imposições. Jovens transgressores esgueiravam-se do ninho protetor, para ir “brincar lá fora”, batendo polegares em computadores. “Turmas” de solitários seres, reproduziam o modelo escolar. E a “aula” do século XIX instalava-se nas ruas e nos lares do século XXI.

Apesar dos pesares, o confinamento imposto ajudou a salvar muitas vidas. E foi, também, oportunidade de conhecer outras vidas, pois vizinhanças ocultas se revelaram. A solidariedade tomou forma de mensagens de rede social. Como aquelas que evocarei nesta cartinha.

A primeira era de leal franqueza e dizia: Professor, por que passa a vida a escrever? Pouca gente lê e são poucas as minhas colegas que o entendem. E até se ofendem, quando o professor diz que não se deve dar aula. Essa professora tentara demover as suas colegas do rame-rame da ensinagem tradicional. Em vão tentou e colheu desdém. Inclusive, efeitos colaterais da sua solidária atitude levaram-na até ao divã do psiquiatra… E por aí se quedou a sua intenção de mudança., que não a da minha amiga Cecília.

A sua vida foi dedicada a inventar modos e lugares de fazer pessoas sábias, seres humanos felizes. Dotada de uma enorme força de vontade e de uma amorosidade ilimitada, dera forma a um dos mais inovadores projetos, que o Brasil conheceu: o Projeto Alto Independência de Petrópolis.

Quando a Secretaria de Educação, mancomunada com professores antiéticos, extinguiram o projeto, a Cecília foi semear humanidade em outros lugares. Dois anos decorridos e em plena crise do vírus corona, dela eu recebia notícia: Passamos por um momento difícil com a pandemia do Coronavírus, que acabou mostrando muitas fragilidades escondidas em rotinas e sistemas, que estão agora escancaradas para a sociedade. Estas fragilidades deixaram a todos perdidos, ao se verem em isolamento.

Vejo escolas e secretarias de educação em desespero, com medo de o currículo sufocar a todos, com o ano letivo atípico. E vejo, a cada dia que passa, mais e mais estratégias de enviar conteúdo para casa, em horários marcados para pegar o material na escola, para estudar com ele em casa (parecendo que só é legitimado o conhecimento organizado ali), banco de  atividades propostas por professores, separadas por ano de escolaridade, aplicativos, plataformas…

A psicologia da memória diz-nos que a melhor memória de um velho é aquela a que chamam de “longo prazo”. Talvez os psicólogos tenham razão, porque me recordo perfeitamente de, no dia em que recebi as mensagens da Cecília e do André, ter escutado de uma casa próxima sons de contenda:

Vai já fazer a tarefa que a professora mandou! Já a mandei. E não repito! – era a voz de uma mãe preocupada, ordenando à filha que fosse lesta a cumprir as tarefas, que a secretaria de educação tinha despachado pela Internet.

Não quero! Já disse que não quero!… Pronto! Já vou! – Eram bem audíveis os gritos chorosos de mãe e filha, altercando.

Por amor, a mãe da chorosa criança obrigava a filha a engolir “currículo pronto a vestir”. A “overdose de tarefas de casa” recebida da secretaria de nada servia, a não ser para manter as crianças ocupadas. Na sala de aula, os professores fingiam que ensinavam e as crianças fingiam que aprendiam. No conforto dos lares, as crianças cumpriam tarefas sem sentido e os pais acreditavam que elas estavam aprendendo. Tal como o vírus, o sistema de ensinagem possuía grande capacidade de adaptação…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LX)

Carapicuiba, 26 de março de 2040

No final de março de 2020, a pandemia havia entrado em regressão em alguns países. Na China, não registravam novos casos de infetados pelo vírus e mais de metade do total de infectados já havia recuperado. Todos os sete pacientes tratados num hospital de Nova Délhi se recuperaram. Numa combinação de medicamentos, médicos indianos obtinham sucesso no tratamento e pesquisadores do Centro Médico Erasmus afirmavam ter encontrado um anticorpo contra o vírus. O plasma de pacientes recém-recuperados podia tratar outros infectados. Na Coréia do Sul, o número de novos casos estava diminuindo. Uma avó chinesa de 103 anos se recuperara totalmente. A China havia fechado o seu último hospital de tratamento de infetados com o vírus corona. E a Apple reabria todas as suas lojas da China…

Os noticiários veiculavam essa informação e alguns governantes brasileiros tomavam decisões responsáveis, como o confinamento nos lares, para suster o contágio. Outros políticos, em manifestações de irresponsável liderança, ora diziam não haver motivo para preocupações, ora contribuíam para semear a visão do apocalipse. Se um bispo afirmava que o desprezo à ciência poderia ser desastroso, um pastor garantia que ninguém iria pegar coronavírus em um culto. E enfatizava: Se algum crente botar o pé aqui [no culto], esse vírus morre.

A crendice desprezava a medicina. Irresponsáveis desdenhavam da ciência, colocando em risco a saúde da população. A preocupação com a bolsa de valores parecia maior do que garantir a preservação da vida humana. Mas, se algo o vírus nos ensinara fora que, após sair da crise, seria necessário repensar uma economia predatória e pensar um modelo de economia solidária. Eu temia que, depois de dissipada a crise, a normose regressasse e não houvesse um “novo início”, que os brasileiros não tivessem entendido a recomendação do vírus e continuassem a ignorar a necessidade de mudança no sistema político, no econômico e… no educacional.

No campo educacional, o Brasil insistia manutenção de práticas instrucionistas, embora dispusesse de práticas potencialmente inovadoras. Enquanto, na manhã de hoje, passava pelo Carapicuíba, me lembrei de que fizera uma visita à Casa Redonda, um dos projetos de que o Brasil se poderia orgulhar. Na Casa Redonda, convivi com a alegria espontânea das crianças. Observei-as, enquanto brincavam, no exercício de uma liberdade que lhes permitia viver seu próprio tempo. Eram de elevada qualidade as experiências vividas pelas crianças e propiciadoras de aprendizagens significativas. Já os gregos da antiguidade clássica sabiam que o ócio é o tempo necessário para o desenvolvimento da reflexão e da capacidade de pensar. E uma verdadeira scholé – o “lugar do ócio” – ali acontecia.

No decurso da crise vírica, nas gôndolas de muitos mercados, dois produtos haviam sumido: papel higiénico e jogos de tabuleiro. O corpo brincante das crianças, confinado ao espaço do seu lar, se limitava a sedentárias ocupações. Por força das circunstâncias, o espaço restrito da casa limitava o brincar de gestos amplos, expansivos. O brincar restrito a jogos de concentração intelectual contribuía para consolidar o resultado do uso prematuro do computador. Se uma criança de tenra idade chorava, ou usava o grito para captar a atenção dos adultos, de imediato, os progenitores lhe colocavam na mão, não um clássico brinquedo, mas uma consola de jogos, ou um celular. E as crianças iam desaprendendo de brincar.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LIX)

Valinhos, 24 de março de 2040

Gosto de ver nascer o sol, um dos momentos de diário convivo com o sagrado. Hoje, ao contemplar o nascer do sol e os pássaros ocupados na costumeira azáfama matinal, recordei outra manhã, uma manhã radiosa, que coloriu de esperança tempos sombrios de 2001. O meu amigo Rubem Alves passava alguns dias na minha casa. E, mais uma vez, o levei a visitar a Escola da Ponte.

Pelo caminho, fomos escutando um concerto para piano. Estacionei o carro junto à escola, mas dele não saímos. Após escutarmos o segundo andamento, um reverente silêncio se instalou em nós. Ao meu lado, visivelmente, emocionado, o Rubem enxugava furtivas lágrimas. Emocionado já eu o vira, nas nossas visitas ao seu sítio de Pocinhos de Rio Verde e a Valinhos. Nessas viagens, era o Rubem quem dirigia. E, sempre que ele parava a viatura, eu sabia que isso se devia a ter surgido a visão de um ipê. Quando perguntaram a uma criança quem tinha sido Rubem Alves, a criança respondeu: O Rubem era um homem que gostava de ipês.

O Rubem escreveu no livro “A Escola com que sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir”: Quero uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios. Sempre com o brilho dos inícios! Como fazem as crianças e os adultos, que não matam a criança que há em cada um de nós. O Rubem dizia que, quem mata a criança grande que tem dentro de si, não fica adulto – adultera-se.

Querido Marcos, há quase quarenta anos, no colo do teu pai, balbuciavas uns sons só aparentemente desconexos. E eu, que estava longe de ser um entendido na palavra pura, que ainda confundia uma arenga babélica com a fala transparente, não conseguia traduzir o teu balbuciar. Este avô, ainda que empenhado no desaprender do palavrear adulto, deturpava o verbo virginal, confundindo-o com o linguarejar de adultos tagarelas. Subitamente, fixaste o olhar num ponto qualquer, como quem depara com o Aleph.

Não interrompi a absorvente contemplação e segui a direção do seu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros que desejou não cometer no último dos dias do ano anterior. Os adultos eram mesmo assim. Viviam viciados no futuro.

Não sei se te recordarás, querido neto, de um livrinho, a que chamei “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”. Ele nasceu nessa noite de passagem de ano e viria a ser transformado numa bela peça de teatro, pela minha amiga Janaína. Escrevi-o especialmente para ti e para as crianças agora nascidas. Era como que uma história da educação contada às crianças, que só terminaria, agora, no tempo dos filhos dos filhos dos filhos dos vossos pais. No nosso tempo, na Idade da Educação.

Nesse livrinho, eu recuperava a velha fábula do Adam Férrière. No início do século XX, esse pedagogo da Escola Nova publicara um texto com o título “Escola Invenção do Diabo”. E só mesmo o Diabo poderia inventar uma escola onde se proibia as crianças de ver o mundo com olhos de inícios. Muitos adultos tinham perdido essa virtude. No tempo do vírus corona, depois de proclamar o caos e decretar novas solidões, os adultos pareciam ter perdido a oportunidade de não se fecharem ao novo e ao imprevisível.

Por: José Pacheco

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