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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LVIII)

Itapoá, 22 de março de 2040

Ao passar pelo local onde, há vinte anos, existia a Escola Zilda Arnes, lembrei-me da minha amiga Carol, que nela semeou humanização. Esses eram tempos de confinação de crianças em prédios a que chamavam “escola”.

Arquitetas de novos tempos, a Carol e a Cláudia repensavam o papel da escola e se preparavam para ressignificar espaços de aprendizagem no Paranoá e no Itapoá, de modo a que a instituição cumprisse a sua missão de produzir conhecimento e de reelaborar cultura, em diálogo com outros lugares de criação cultural. Até que chegou o vírus corona…

Na semana anterior e na Itália, o arquiteto do Centro Cultural de Belém, o criativo Vittorio Gregotti, fora a primeira vítima ilustre da covid-19. Em 2019, nesse CCB se havia reunido um grupo de educadores, que buscavam alternativas à escola-prédio. E, no mês de março de 2020, com o alastramento da pandemia e talvez não por coincidência… as escolas-prédios viraram desertos.

Os jovens residentes em condomínios passavam os dias no interior das suas casas, polegares batendo tecla de ifone e celular. Ou assistiam a “vídeo-aulas”, prodigamente enviados pelos seus professores, através da Internet. Por seu turno, aturdidos pela súbita alteração do seu papel, os professores, refugiavam-se nas suas casas, passando os dias frente ao computador, na busca de informação sobre a evolução da pandemia e a exportar os ditos vídeos.

Assim como os prédios das escolas haviam sido guetos de infância, lugares de suposta segurança, os altos muros do condomínio pareciam proteger os condôminos de assaltos e vírus. Se alguma faxineira ainda nele entrasse, todos os objetos tocados eram lavados e supostamente desinfetados. Se o carteiro entregasse alguma correspondência, as mãos de quem a recebia eram cuidadosamente lavadas e passadas por um milagroso protetor em gel.

O mundo demandava uma nova maneira de nos relacionarmos, um vírus nos oferecia a oportunidade de conviver na experiência da dádiva, para resgatar a fluidez da partilha. Na cooperação encontraríamos caminhos de uma nova economia. Mas, parecia que a humanidade não entendia a mensagem… Nesses idos de 2020, o vírus de nome “corona” não era o maior dos perigos. Perigosos eram os vírus do egoísmo e do medo.

As faxineiras e os jardineiros, cuja sobrevivência dependia dos serviços prestados nos condomínios, foram dispensados. As manicures e barbeiros entravam em desespero, por não haver mais clientes para cuidar e já faltar o sustento das famílias. E o egoísmo e o medo faziam com que já faltasse o álcool em gel e o papel higiénico nas gôndolas dos mercados…

Na Idade Média, as pestes dizimaram o povo. Mas também mataram gente da nobreza e do Clero, quando penetraram nos castelos. Muitas das muralhas de pedra foram substituídas por muralhas simbólicas. E os residentes em condomínios acreditavam estar protegidos. Estariam?

Uma narrativa Sufi descreve o modo como havia sido destruída uma inexpugnável fortaleza islâmica do século XII. Outro conto Sufi nos avisa de que nem as mais altas muralhas resistem ao desgaste operado pelo egoísmo e pelo medo.

A Peste ia a caminho de Bagdá quando encontrou Nasrudin, que lhe perguntou:

Aonde vais?

A Peste respondeu:

Vou a Bagdá, matar dez mil pessoas.

Dias depois, a Peste reencontrou Nasrudin. Muito zangado, o mullah disse-lhe:

Mentiste-me. Disseste que matarias dez mil pessoas e mataste cem mil.

A Peste respondeu:

Eu não menti, matei dez mil. O resto morreu de medo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LVII)

Sepetiba, 19 de março de 2040

A leitura da vossa última carta deixou-me a impressão de que podereis considerar-me um pessimista. Não penseis, queridos netos, que eu o seja. Mas, também nunca fui otimista. Aliás, o amigo Rubem dizia-me que o educador não é um otimista, é um esperançoso. Porque o otimismo é da natureza do tempo e a esperança é da natureza da eternidade. Aquilo que ousemos fazer repercute-se por décadas.

Já vos falei do meu amigo André. Mas, nunca será demais evocar esse extraordinário ser humano, um dos educadores mais amorosos, que me foi dado conhecer. Sobretudo, quando estou de passagem por Sepetiba, observando a obra que ele nos legou. No tempo do vírus corona, quando se anunciava o fecho de fronteiras, o André esperançava: Se o meio ambiente não une os povos, nada como um vírus para lembrar que não existem fronteiras e que somos todos moradores da mesma casa. O Torga havia dito o mesmo, mas em verso, há quase um século: de um lado terra / do outro lado, terra / de um lado, gente / do outro lado, gente

Para que conste e a memória não se apague, vos falarei de uma época de fronteira físicas e de outras mais sutis, de um tempo em que o diálogo escasseava. E recorrendo, mais uma vez, a mensagens recebidas do amigo André: Se nós não nos cuidarmos, vamos adoecer psiquicamente e perder o equilíbrio e praticar uma comunicação agressiva com quase todas as pessoas do nosso convívio. Precisamos acalmar o nosso coração e sermos mais leves e mais maduros. O ódio cega e nos aprisiona. O caminho não é responder com o ódio. É responder com amor. Ser crítico, mas sem adoecer e sem colocar os problemas do mundo nas nossas costas. A não-violência só será estabelecida na sociedade, quando nós pararmos de nos violentar e de nos agredir. Não estamos lidando apenas com ameaças virais — outras catástrofes já estão surgindo no horizonte: secas, tempestades fora de controle…

Na mitologia grega, Gaia é o nome da deusa da Terra, companheira de Urano (Céu) e mãe dos Titãs (gigantes). É a personificação do planeta Terra, que é representada como uma mulher gigantesca e poderosa. Em homenagem à deusa grega, a Teoria de Gaia (também conhecida como “Hipótese de Gaia”) descreve a Terra como um organismo vivo com capacidade para manter e alterar suas condições ambientais.

A “Hipótese Gaia” dizia-nos  que a biosfera e os componentes físicos da Terra estavam intimamente integrados, formando um complexo sistema, que mantinha as condições climáticas em homeostase. As reações do planeta às ações humanas não seriam mais do que respostas autorreguladoras desse imenso organismo vivo. Porém, nesse conturbado tempo, sozinha, talvez Gaia não conseguisse resolver a delicada situação. Talvez tivesse que contar com uma ajudinha dos humanos e com o surgimento de um vírus benigno, transformador.

A primeira ação de formação “GAIA Escola” decorreu entre julho de 2015 e julho de 2016, em Brasília. Essa formação de professores inspirou-se nas práticas da Escola da Ponte e do Projeto Âncora, e contemplou as quatro dimensões da sustentabilidade: social, ecológica, econômica e cultural.

Decorridos quatro anos, a “Hipótese Gaia” era discutida no Facebook e as teorias da conspiração surgiam e desapareciam no frenético ritmo do WhatsApp. Apercebermo-nos de que a humanidade não havia entendido a mensagem do vírus corona. Foi, então, que decidimos fazer uma nova formação, uma formação começada pelo… fazer. E, com educadores como o André, esse tempo feito de medo e mentira foi, também, tempo de esperançoso recomeço.

Por:  José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LVI)

Ibiúna, 15 de março de 2040

O início de década de vinte ficou conhecido pelo tempo do vírus corona. Perante medidas como o cancelamento das aulas, o ministro da saúde manifestava preocupação: a liberação das crianças, potenciais vetores de transmissão, exporia ainda mais um dos principais grupos de risco: os idosos. A covid-19 preferia dizimar, prioritariamente, pessoas com mais de 60 anos, pessoas como o vosso avô.

Alguns especialistas recomendavam que crianças e adolescentes evitassem o contato com parentes acima dos sessenta anos. Mas, se os pais teriam de ir trabalhar, amorosamente, os avós se expunham ao contágio. Quem iria cuidar das crianças, que não iam à escola, na ausência dos pais? Os avós!

O vírus demonstrava que, com ou sem escola-gueto de crianças, nunca os avós deveriam ser separados dos netos. O vírus ensinava que jamais a relação entre as duas gerações deveria ser interrompida. Que a educação era tarefa conjunta da escola, da família e da sociedade. Que as escolas não eram prédios, mas pessoas, e que as pessoas deveriam agir solidariamente, em comunidade.

Por esse tempo e para os lados de Ibiúna, andava a minha amiga Mila em busca de ajuda para a sua equipe de projeto. Talvez não tivesse, de imediato, entendido que a ajuda não viria de teóricos e áulicos e que o seu maior mestre e aliado era o covid-19. A mensagem que o vírus deixava aos mortais era a melhor das ajudas.

A ameaça global requeria solidariedade global. Exigia que as pequenas diferenças se tornassem insignificantes. A humanidade não precisaria de passar por nova provação, para se permitir repensar o modelo de escola, que, nesse tempo, era hegemônico e que havia sido afetado pelo vírus da corrupção intelectual e moral. Eu queria acreditar que a Mila – inteligente e sensível, como qualquer professora – acabaria por entender a mensagem.

Outro educador sensível, o meu amigo André, havia inoculado outro “vírus” na sua prática – o vírus da mudança – que levaria a sua prática muito para além da escola instrucionista criada pelos estados-nação europeus do século XIX. O André se iniciava em novas práticas, anunciadoras de uma sociedade solidária e de cooperação global. E sofria por escutar alunos manipulados por uma mídia irresponsável e por práticas escolares, que fomentavam o egoísmo e múltiplas ignorâncias: Professor, vou jogar álcool gel na caixa d’água lá de casa. Quando tomar banho e lavar as mãos, vou matar o vírus. Professor, ontem, eu limpei meu celular por causa desse vírus. Pinguei água e um pouco de detergente e limpei com papel. Ele tá funcionando normalmente.

Era esse o nível de preparo científico que a escola de então promovia. Porém, discretamente, um imenso potencial humano se revelava. Porque esses tempos de crise eram, também, tempos de novas oportunidades. O quase centenário Edgar Morin assim resumia a situação: A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola? E o meu amigo António Nóvoa afirmava que o bem da humanidade ia muito para além dos interesses e benefícios pessoais. Que nada poderia ser pensado apenas à luz do tempo imediato, mas colocado à vista de um futuro, que não dispensava os educadores das responsabilidades no presente.

Nesses conturbados tempos, houve quem escutasse esses mestres.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LV)

Caetité, 12 de março de 2040

Ontem, completaram-se 69 anos sobre o dia em que Anísio Teixeira foi assassinado. Como não é por acaso que há acasos, estou em viagem, prestes a chegar a… Caetité. Isso mesmo: irei revisitar a casa onde Anísio viveu os últimos anos da sua vida. Visitei-a quando adentrei os cafundós da educação baiana, no início deste século. Passei longas e saborosas horas lendo livros da biblioteca que Anísio nos deixou. Num desses livros, Anísio falava-nos de um “divisor de águas entre duas “mentalidades, que se defrontavam no Brasil: de um lado, os que, explícita ou implicitamente, não acreditavam no Brasil, e de outro, os que achavam que a nação se poderia redimir pela educação.

As escolas do passado eram cemitérios de talentos, túmulos de inovadores. A escola absorvera funções tradicionais da família e da vida comunitária e que à vida comunitária deveria ser devolvida, dado que, nas palavras do mestre, “a educação de um povo somente em parte se faz pelas suas escolas”.

O malogrado Mestre pugnava por uma nova escola, que substituísse aquela que reproduzia formas arcaicas de ensino pela “exposição oral” e “reprodução verbal”. Uma nova escola, irmanada com outras instituições de transmissão da cultura, “em uma comunidade altamente complexa e de meios de vida crescentemente especializados”. Lauro tinha publicado a obra “Escola da Comunidade” e era de comunidade de aprendizagem que o mestre Anísio, a seu modo, nos falava.

Anísio estava consciente de que não poderíamos continuar estrangulados numa camisa de força legal, graças à qual “alterar a posição de uma disciplina no currículo ou diminuir-lhe ou aumentar-lhe uma aula fosse considerada uma ‘reforma de ensino’”. Mas, os regulamentos das secretarias da educação estavam concebidos para manter o statos quo. No mundo da educação de há vinte anos, imperava o tráfico de influências, a corrupção e a “incompetência especializada”, reforçadas pela indiferença de uma sociedade civil manipulada. O problema era estrutural, não era meramente conjuntural. Funcionários movidos por Interesses corporativistas e outros obscuros interesses haviam conseguido que a corrupção também penetrasse na… Educação.

Uma secretaria citava Anísio no documento orientador da política educacional do estado (“Currículo em Movimento”). Mas o currículo imposto pela secretaria impedia o movimento, estava parado no tempo. Os funcionários dessa secretaria chamavam “escola classe” e “escola parque” – conceitos criados por Anísio – a alguns prédios que, nesse tempo, eram considerados “escolas”. Mas as práticas desenvolvidas dentro desses prédios eram contrárias à proposta do Anísio da “Escola Nova”. Anísio postulava que o aluno deveria ser o centro do processo de aprendizagem, mas a administração educacional impunha às escolas práticas instrucionistas, nas quais o centro era o… professor.

A escola-classe, que Anísio tentou instalar em Brasília, em meados do século passado, foi rechaçada, em abaixo-assinado, pela população de um bairro de classe média alta, com o apoio da administração. E, nesse já distante 2020, os burocratas instalados nas secretarias da educação assassinavam projetos que, concretizados, tornariam realidade o sonho escolanovista e assegurariam a todos o direito à educação. Impunemente, a burocracia perpetrava o segundo assassinato de Anísio Teixeira: a morte da memória.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias dos Tempos da Velha Escola (LIV)

Transcrevo parte de uma carta recebida do amigo Sérgio, vinte anos atrás. Entre Bom Jesus dos Perdões e Atibaia, se gestava um dos mais belos projetos de que vos dou notícia. E o Sérgio pressentia que a maldade humana rondava aquele lugar.Assisti a criação do Projeto Rosende. Já conhecia a Janaina, passei a conhecer Eulália, Matoso, Ana e outros… Uma luta admirável. O problema é que “quem é contra” sempre quer resultados mágicos e rápidos (que a escola velha e carcomida nunca sonhou em dar). Assisti a ataques vindos de professores de dentro, de outras escolas (um dia alguém precisará explicar a burrice que é escolas públicas competindo) e de secretários… Pude ir, uma vez, dar uma oficina e ver como transformações são incrivelmente difíceis, porque exigem que as pessoas que as propõem já estejam mudando a si mesmo.

Por mais que haja sucessos e fracassos, concordâncias e discordâncias, sempre terei fé nos que se abrem para a transformação ocorrer, do que nos que nos erguem barricadas e nos atacam com canhões de fofocas, assédio moral, desmotivação, retaliações e outras coisas. Por fim, me desculpo. É uma necessidade de “dialogar” e diminuir a solidão que me bate, quando estou entre os adultos, na escola. Espero que não esteja sendo um estorvo. É a forma de eu tornar viva a rede social que sempre prima pelo diálogo ultra superficial. Abraço. De Atibaia onde vivo… De Perdões onde semeio…

O Sérgio semeava em terreno fértil, mas consciente dos obstáculos. Sabia que, se o maior aliado de um professor é o outro professor, também sabia que o maior inimigo de um professor ético, é… o outro professor.

Isso acontecia num tempo em que deputados propunham que se acabasse com o regime de ciclos e com a progressão continuada. Não sabiam que nunca os ciclos foram concretizados (os manuais dirigiam-se apenas a “ano de ciclo”). E que a progressão continuada não poderia ser extinta, porque nunca havia sido posta em prática (apenas se praticara “aprovação automática”).

Enfim! O sistema educativo permanecia dependente de decisões de políticos ignorantes e infestado de corrupção intelectual e moral. Nesse tempo de novas inquisições, prosperavam os fundamentalismos. Acontecia a perseguição daqueles que, como o Sérgio, amavam a infância e buscavam caminhos de humanização da escola.

Talvez sem que o soubesse, o Sérgio fazia eco de palavras do Lauro, que, na década de sessenta do século passado, na sua obra “Escola no Futuro”, assim se manifestava: Não esqueçamos o exemplo de duas professoras, publicamente expulsas de uma cidade paulista, porque tiveram a ousadia de, na cadeira de Biologia, referirem-se às teorias evolucionistas de Darwin! Uma senhora veio à imprensa carioca denunciar o fato altamente periculoso de professores permitirem que os alunos estudassem estilística comentando obras “pornográficas” como as do Jorge Amado.

Queridos netos, em 2040, não restam vestígios desses tempos sombrios. Vivemos num mundo que aprendeu com os erros do passado. Mas vos asseguro que, há cerca de vinte anos, assistíamos a aberrações idênticas àquelas que o Mestre Lauro descrevia.

Séculos atrás, o Papa Pio V havia criado o Index Librorum Prohibitorum, um índice dos livros proibidos. No Brasil de 2020, ocorria algo semelhante, enquanto se proclamava que a Terra era plana. Talvez até assistíssemos ao ressurgimento do medieval trivium ou do quadrivium… Por mais inverosímil que vos possa parecer, o espírito da Idade Média da Educação ressurgira, erguera-se do túmulo, na segunda década do século XXI.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LII)

Granja Viana, no primeiro dia de março de 2040

Neste dia de há exatos vinte e nove anos, falecia o meu amigo Walter Steurer. Chamo-lhe amigo, mas poderia chamar-lhe irmão, porque irmanados num mesmo propósito: salvar vidas de jovens. Foi isso que o amigo Walter me pediu, em 2007, quando nos conhecemos. Disso dá conta a carta, que me enviou em dezembro de 2008:

Caro amigo, Professor José Pacheco,

Quando nos encontramos, em 2007, naquele Encontro de Educação, no Projeto Âncora, conversamos sobre nosso sonho de fazer da entidade uma escola, uma escola como sonhamos e sabemos que é possível existir. Na ocasião, você nos disse que poderíamos contar com sua assessoria. Achamos que a hora está chegando. Ano que vem, poderia ser o ano de organização dessa escola, para, em 2010, começarmos a funcionar. Uma escola modelo para Cotia, escola a ser seguida pelas escolas públicas da região e, por que não, também as particulares.

Será que poderíamos conversar sobre isso? Começar a sonhar a realidade? Começar a construir o sonho? Marcamos um encontro? Aqui, ou em sua cidade? Quando? Podes escolher. Aguardo ansioso e esperançoso.

Receba meu abraço fraterno e os votos de Boas Festas.

Walter Steurer, Projeto Âncora.

Quando perguntei ao Walter por que queria que eu o ajudasse a fazer a escola dos seus sonhos, respondeu:

Aqui, nós só fazemos contraturno de escola. Mas é como tentar enxugar gelo. Estes jovens praticam desporto, fazem formação na oficina de circo, aprendem música, ou como se faz um mosaico. Mas, no dia seguinte, depois de passarem pelas suas escolas, chegam iguais ao dia anterior e perdem-se. Eu quero salvar a vida desses jovens. E só com uma escola isso será possível.

Alguns anos mais tarde, a minha amiga Josineide publicou um resumo da sua dissertação de mestrado, a obra “Escola Projeto Âncora – Uma Ponte para a Inovação Pedagógica no Brasil”. Ontem, quando arrumava a biblioteca, encontrei esse livro. E nele li: É uma prática que corrobora com o desenvolvimento do estudante, através do incentivo na visão do ser social, do que se podia fazer pelo outro e com o outro; das habilidades e valores que poderiam servir de alicerce para o desenvolvimento da construção do ser humano presente em cada estudante da Escola Projeto Âncora (…) O professor era tão aprendiz quanto o estudante. E a ausência da palavra aula era de fato a expressão da ausência dela. Não existe aula, mas construção de conhecimento. (…) E a sua construção foi fundamentada em autores brasileiros, sendo respeitada a cultura do país (…) Uma ruptura! Há Inovação. Assim mesmo, com letra maiúscula…

No início de 2011, a Regina me comunicava estar o seu marido muito doente. No primeiro dia desse mês, o meu amigo perdia a sua luta contra um câncer. No leito de morte, dissera à Regina: Pede ao Professor Pacheco que venha fazer uma escola.

Com a Cláudia, tomei a decisão de me mudar de Minas Gerais para São Paulo. Fizemos parte de uma equipe de extraordinários educadores, ajudando a erguer um projeto, que viria a ser considerado um dos melhores projetos, que o Brasil e o mundo já viram.  Durante quatro anos, fui educador voluntário no chão da Escola do Projeto Âncora. E o sonho de um homem bom virou realidade.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LI)

Algures, em fevereiro de 2040,

Queridos netos,

Esta deveria ser a derradeira carta de um já extenso rol. Mas será a primeira de um novo ciclo e espero que tenhais paciência para partilhar memórias deste idoso e resiliente educador.

Pela sua leitura, concluireis que, como escrevi no livrinho para o Marcos (*), os projetos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos paralelos. Súbitos reencontros nos mostram que esses projetos também se alimentam de ocultas solidariedades. Será verdade que andam anjos pela Terra? Também confirmareis que, como no livrinho para a Alice (*), eu deixo as histórias por completar, porque tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Porque tudo aquilo em que não cabe um pensamento divergente, confunde a semente com o gesto. Porque tudo o que é previsível estiola. A vida é um constante recomeço, sem princípio nem fim.

Nas próximas cartas, contar-vos-ei o que aconteceu após o dia 7 de abril de 2020. Por agora, apenas vos direi o que senti, quando, há cerca de trinta anos, visitei um hospital de crianças (*), onde a humanização da saúde e da educação acontecia. Numa das enfermarias, uma professora estava sentada ao lado de uma cama e lia um livro para uma criança recentemente operada. Enquanto os enfermeiros mudavam o penso, a professora afagava os cabelos da chorosa criança. Respirava-se carinho. Todos se conheciam. Todos eram chamados pelo nome. Quem era o médico? Quem era o voluntário? Quem era o educador?

Chucran! – é o mesmo que “obrigado”, mas em libanês.  No hospital, o Rafael descobria as suas raízes culturais. A mãe, de véu cobrindo os cabelos e o rosto, estudava a história da terra onde nasceram. E a professora ensinava português ao Rafael, enquanto a mãe do Rafael ensinava libanês à professora. Num recanto entre duas enfermarias, um pai ajuda o seu filho a preparar uma pintura, enquanto um voluntário muda a garrafa do soro.  Eram curadas as mazelas do corpo e as do espírito.

O Luís tinha quatro anos. Vivia no hospital quase desde o dia em que nascera. Sofria de doença degenerativa. Só conhecia o mundo lá de fora através da janela da enfermaria e através do mundo que as professoras lhe descreviam. A sua melhor amiga contraíra pneumonia e morrera. O Luís quebrou um silêncio de vários dias:

Por que é que a Carol nunca mais veio brincar comigo?

A voluntária encostou o rosto do Luís no seu colo. Um longo afago foi a resposta. E eu evoquei o último capítulo do “Pequeno Príncipe”:

Agora já me consolei um pouco. Sei que voltou ao seu planeta; pois, ao raiar do dia, não lhe encontrei o corpo. Não era um corpo tão pesado assim…

O vosso avô estava perto da morte e tão perto da vida! Como era possível tão pouco espaço conter tanta humanidade?

Envio-vos esta carta, após ter tomado a decisão de manter viva esta troca epistolar e enquanto escuto o velho Bobby McFerrin entoando o “Arioso” de Bach. E vos deixo com palavras do saudoso Pablo Casals: Eu estou sempre a renascer. Cada nova manhã é o momento de recomeçar a viver. Há oitenta anos que eu começo o meu dia da mesma maneira – e isto não significa uma rotina mecânica, mas algo de essencial para a minha felicidade, uma maneira de retomar o contacto com o mistério da vida.

Com Amor,

O vosso avô José.

Por: José Pacheco

(*)

Para Alice, com amor. São Paulo, Cortez Editora.

Para os filhos dos filhos dos nossos filhos. São Paulo, Papirus.

Dicionário das Utopias da Educação. Belo Horizonte, WAK.

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Estórias da Velha Escola (L)

São Tomé de Negrelosfevereiro de 2040

No fevereiro de há vinte anos, o meu amigo David palestrava no Centro Cultural de Vila das Aves. Mesmo ao lado do local onde, há 64 anos, o projeto Fazer a Ponte nasceu64 anos! A vida é breve. Na minha provecta idade, sinto que o tempo foge,enquanto a eternidade avança, se aproxima o tempo de partir. Dei-me conta de que esta é a quinquagésima carta e apresso este epistolar exercício de vos passar testemunho de prodígios e ignomínias.

Nesse mês do distante 2020, eu preparava a mala, para ir até Portugal, quando recebi mais um exemplar do Entre Margens, um belo jornal, que o vosso avô e outros avenses criaram em meados da década de 80. Li o artigo do meu amigo Adélio. Nesse belo naco de prosa, evocava a sensível Professora Laura. Professora com letra maiúscula, que bem a merecia. Com “uma voz de abraço”, confortava o prevaricador, lembrando-lhe que ninguém conseguia ser forte o tempo inteiro e que tropeçar nem sempre era pecado. O Adélio também nos falava do Padre Fonseca, por lhe inculcar o gosto pela poesia. O Adélio era um poeta da prosa eme tranquilizava, mostrando que eu não fazia falta alguma nas Terras de Entre os Aves, de onde partira para a minha diáspora. Mas, lamento não ter estado em Portugal, quando do lançamento do seu primeiro livro, para lhe manifestar a minha gratidão.

Nesse fevereiro, projetos renasciam e a Escola da Ponte recebia o Diploma de Qualidade do Programa Eco Escolas – Bandeira Azul da Europa. Mas, do outro lado do oceano, bonsais humanos destruíam projetos. Negrelas sulistas agiam como as de antanho, impedindo que se elevasse a alma à altura do sonho.

O Projeto Âncora se extinguia em Cotia e os educadores, que haviam criado esse projeto,lançaram âncoras em outras escolas, continuando a gerar seres sábios e pessoas felizes. Partilhavam a caminhada com companheir@s (nesse tempo de homofobia e machismo exacerbado, alguém inventou este resiliente semi-neologismo)partilhando, sobretudo, o alimento da alma – companheiro vem do latim cum panis, aqueles que partilham o pão – e, se o corpo do projeto jazia em Cotia, a alma do projeto migrava para outras paragens. Em Cotia, como na Brasília desse tempo, imperava o medo e grassava a corrupçãoE, ao cabo de meio século, o vosso avô reaprendia a lidar com canalhas.

Queridos netos, bem sabeis que adoro metaforizar. Mas, desta vez, as metáforas são tristes, refletem a indignação de ver pontes interditadas e âncoras arrancadasCansei-me de ver destruir projetos. Cansei-me de assistir à legítima deserção de maravilhosos educadores. Cansei-me de os ver adoecidos, dependentes de psiquiatra. A sua generosidade fora esmagada pela razão da força, enquanto a força da razão se esbatia nos esconsos corredores de secretarias, onde malfeitores conspiravam para manter o genocídio educacional, que perpetravam.

A vida é um eterno, um contínuo recomeço. Decidimos refazer pontes e fincar âncoras sobre as ruínas de um sistema de ensino obsoleto. Educar sempre foi um ato de amor e, portanto, um ato de coragem, como diria o Paulo. Muitos educadores se consciencializaram da necessidade de modificar as suas práticas, para garantir a todos o direito à educação. Decidiram ser éticos. À prepotência responderam com um desafiador fazer, com o cumprimento da lei e, sobretudo de uma lei chamada “projeto político-pedagógico”. Responderam a um sistema corrupto com o exercício de um múnus profissional pautado na lei e fundamentado numa ciência prudente.

Disso vos falarei nas próximas missivas.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLIX)

Águeda, janeiro de 2040

Continuando a breve viagem por Portugal, regressei a Águeda, para “palestrar” numa conferência sobre inovação em educação – mais uma oportunidade de rever amigos: o Rui, responsável nacional da formação de professores e o Henrique, diretor de um centro de formação. Conheci o Rui, quando jovem candidato a professor. Acompanhei-o até ao seu doutoramento. Conheci o Henrique, quando era ainda uma criança, filho do um amigo, que me deu lições de coerência. Ambos alcançaram um estatuto profissional de nomeada. De algum modo, ambos “passaram” pela Ponte, mas a vida nos levou por diferentes caminhos.

No Portugal desse já distante ano de 2020a conferência de Águeda parecia inserir-se em mais uma tentativa de mudançaapontava a possibilidade de surgirem práticas inovadorasOs palestrantes dissertaram sobre a diferença entre mudança e inovação, lendo power point repletos de sofisticação do discurso de teóricos de antigamente. A únicadiferença era a da tecnologia utilizada pelos palestrantes: o retroprojetor de há quatro décadas fora substituído pelo computador.

Comecei a “palestra” agradecendo o ato de coragem dos organizadores do evento, pois o fato de convidarem este velho professor constituía um verdadeiro ato de coragem. Em 2020, decorria um projeto chamado “autonomia e flexibilização curricular”, que de autonomia e de inovação nada tinha. E a Escola da Ponte nunca fora perdoada por ter ousado flexibilizar o currículo e ser autônoma… quarenta anos antes. Nesse tempo, burocratas mancomunados com o “sistema” afirmavam serem as minhas concepções controversas, românticas e lunáticas. Eu ignorava a verborreia dos críticos e não respondia aos comentários insultuosos, que enlameavam as redes sociais. Seguia o conselho de Demócrito, que dizia ser a palavra a sombra da ação...

Ao longo do século XX, autores de nomeada já apelavam à necessária harmonia entre pensamento e palavra, bem como à coerência entre palavra e ação. Para Freud, o pensamento era o ensaio da ação. Bergson escreveu: Pense como um homem de ação, atue como um homem de pensamentoFreire afirmava, não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.

Na peça Man and Superman, Bernard Shaw escreveu: “those who can do; those who can’tteach, expressão irónica bem ao seu estilo, que a cultura popular traduzia por “quem tem competência que se estabeleça”.

“Quem sabe faz, quem não sabe ensina” – Naquele tempo, quem sabia fazia; quem não sabia era considerado especialista e criticava o que não conseguia entender… ou fazer. Quem não sabiaensinar desistia do árduo chão da escola, fazia um doutoramento qualquer, ia dar aula na universidade,assessorava inúteis projetos de inovação ministerialou fazia formação de professores, ganhando a vida fazendo palestra de power point. Prestava-se um péssimo serviço à educaçãoreforçandopreconceitos, contribuindo para confundir a opinião pública e até mesmo para deturpar e destruir o árduo trabalho de quem sabia e fazia inovação.

Os tempos são outros, queridos netos, tempos de coerência, compaixão, diálogo. Perdoai, pois, o tom amargo posto nesta prosa. É preciso recordar erros de antanho, para que não se repitamE preciso dizer que a Ponte existiu e resistiu, apesar das muitas tentativas de destruição que sofreu. Que a história da Ponte foi feita de resiliência, dignidade e… inovação.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLVIII)

Taguatinga, fevereiro de 2040

Queridos netos, no tempo em que os vossos olhos se habituavam ao céu do sul da vossa infância, o vosso avô atravessava esse mesmo céu no ventre de um pássaro de metal, respondendo aos apelos de educadores sequiosos do fermento que faz levedar os sonhos. Nesse tempo, também as palavras voavam, mas no ciberespaço, nas asas que homens de engenho lhes deram. De modo que, cada vez que regressava do outro lado do oceano, já as ideias e sentimentos de muitos e maravilhosos educadores haviam chegado à minha caixinha do correio electrónico (correio electrónico era um utensílio que usávamos no tempo em que viestes ao mundo).

Dou-vos ler pedacinhos de uma dessas mensagens: Caro Zé, eu continuo na minha pesquisa, juntei algumas coisas, servirão bastante para colocar “a pulga atrás das orelhas dos professores”. Quem sabe eles não dão o famoso pulo do gato e reinventam formas de compreender o que está acontecendo com seus alunos? Veremos. É impressionante como os dirigentes dessa educação brasileira ainda não perceberam por onde se vai a Roma! É mexendo com o corpo e a alma dessa criançada. Só o governo é que não vê.

Recordo-me de que, há vinte anos, mais ou menos por esta altura, um ministro escrevia com erros ortográficos. Poderia tê-lo feito por distração. Estou inclinado a admitir essa possibilidade. Nenhum mal viria ao mundo decorrente de erros ortográficos. Bem mais graves foram os erros cometidos por via da ignorância de ministros, para os quais as ciências da educação ainda eram ciências ocultas e que tomavam decisões fundadas em meras crenças e preconceitos.

Há vinte anos, tinham passado pelo ministério da educação brasileiro médicos, advogados, políticos de carreira, empresários, jornalistas, contabilistas, militares, engenheiros, economistas, teólogos, administradores de empresas… cerca de meia centena de homens e apenas uma mulher. Raros foram os pedagogos, que passaram pela função. Raríssimos foram os professores que, tendo usado da cadeira do poder, algo útil fizeram. E. quando fizeram, não tiveram tempo de aquecer a cadeira ministerial.

Enquanto alguns incorriam no equívoco de atribuir os males do sistema a uma “pedagogia romântica”, que ninguém praticou, que nenhuma escola adotou, que nem o ministro saberia dizer qual fosse, outros atribuíam a causa dos males aos seus predecessores.

Num breve tempo em que, gratuitamente, no Brasil, participei de grupos de trabalho e percorri corredores e salas dos ministérios da educação, quase só vi burocratas a passear papeis. E, nas reuniões, quase sempre prevaleceu um discurso rasteiro, eivado de senso comum pedagógico. Cadê a Educação?

Certa vez, um ministro da educação admitiu que o ensino médio “estava no fundo do poço“.  No 3º ano do ensino médio, só 4% dos alunos sabiam o que deveriam saber no domínio da matemática. E o índice de proficiência em língua portuguesa ia pelo mesmo caminho. O MEC ia “empurrando a crise com a barriga”. Naquele tempo, os professores do Ensino Superior queixavam-se dos baixos índices de proficiência dos alunos do ensino “inferior”. O “preparo” do Ensino Médio era condicionado pelo Enem. O Ensino Médio projetava a culpa no Fundamental. O Fundamental atirava culpas para a Educação Infantil. E esta responsabilizava as famílias, não podendo as famílias responsabilizar o Criador.

Felizmente, no janeiro de há vinte anos, na casa do amigo Isaac, educadores éticos marcaram encontro. E eu estava lá. Contar-vos-ei o que aconteceu.

 

Por: José Pacheco

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