Mogi-Guaçu, 20 de outubro de 2040

Por duas vezes e em situações atípicas, os nossos alunos recorreram ao estilingue, para… finalizar projetos.

No final dos anos setenta, o centenário e decrépito edifício da Escola da Ponte ameaçava ruir. Tinha sido reinaugurado em 1918, conforme atestava a lápide afixada na parede de estuque esburacado.  No tempo da ditadura, havia sofrido melhoramentos, mas o cupim apostava em acabar com o que restava das madeiras. O soalho, também de madeira, era como um campo de golfe, mas com mais buracos. Sentindo a necessidade de instalações adequadas ao projeto, os pais dos nossos alunos reivindicaram a construção de uma escola de “área aberta”. E o velho edifício foi demolido. Entretanto…

O ano letivo começara, há mais de um mês e nós começávamos a perder a paciência. A obra estava concluída e nós permanecíamos reclusos num precário barracão, que fora erigido pelos pais e que funcionou como escola, durante dois anos. Obra acabada e sua excelência, o presidente da edilidade, não se dignava “agendar” a solene inauguração.

Para grandes males, grandes remédios. O Neca Serralheiro trocou a fechadura e nos instalamos no novo edifício. Por volta das dez horas, uma campainha se fez ouvir. Fomos procurá-la. Fora instalada junto ao telhado, inacessível. O Zé Gaio sugeriru que se fizesse um “concurso de estilingue”. Assim se fez. E, à décima tentativa, o Tónio Morcego acertou no aparelho. A pedrada definitiva fez calar a sineta elétrica. Se não fazíamos “intervalo”, para que serviria o incômodo barulho?

Encerremos este nada edificante relato e passemos ao segundo episódio.

Ao chegar à escola, após a interrupção de atividades letivas, deparei com duas velhinhas. Pensei que pretenderiam matricular alguma criança. Mas, ao reparar que uma delas estava de braço ao peito e a outra com um olho inchado, indiquei-lhes o caminho para o posto médico. Retorquiram:

“Nós não queremos ir ao médico. Já lá fomos. O que queremos é falar com os professores”.

Apresentei-me como professor da escola e logo fui invetivado:

“Foram os vossos alunos que nos puseram neste estado!”

Acalmei as velhinhas e escutei as suas queixas.

Junto à escola, uma lixeira a céu aberto levava mau cheiro e pernilongos para dentro da sala de aula, que ainda as havia, naquele tempo. E as crianças conceberam um projeto, para se livrarem do incômodo. Afixaram cartazes de sensibilização:

“Por favor, não jogue o seu lixo neste local”.

Perante a insensibilidade dos utentes da lixeira, cartazes de denúncia foram afixados:

“O Manel da Passarada é porco”. “A dona da farmácia joga restos de medicamentos na lixeira”.   

Nada adiantou. E fomos celebrar o Natal. Esquecemo-nos de um pormenor: as crianças levavam muito a sério os seus projetos. E levavam-nos até ao fim, até alcançar o objetivo. No primeiro dia de “férias”, dado que a sensibilização e a denúncia não resultaram, montaram um piquete e se emboscaram, atrás do muro da ecola, armados de estilingue. Quando as duas velhinhas se preparavam para ali deixar o seu lixo. duas pedradas certeiras as mandaram para o posto médico.

Na reunião da assembleia, as crianças conversaram com as velhinhas, abraçaram-nas, beijaram-nas e pediram desculpa. Explicaram-lhes o que era um projeto e por que cometeram o radical ato. Feitas as pazes, as crianças escreveram uma carta, que as velhinhas levaram à prefeitura. Na missiva, se exigia a erradicação da lixeira.

Na semana seguinte, dois funcionários limparam o local. E mais ninguém se atreveu a deixar lixo junto da escola. Porque, naquela escola, havia mestres… em estilingue.

 

 

Por: José Pacheco