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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXV)

Tortozendo, 20 de julho de 2040

Tudo aquilo que lestes do mestre Celso e muito mais do que lestes está plasmado nas crônicas que o amigo Rubem publicou, no início do século. Decorria o mês de maio de 2020, quando o Rubem visitou a Ponte. Eis como o Mestre descreveu a sua chegada:

“Pedi que o Ademar me desse explicações preliminares, antes da visita. Ele se recusou. Disse-me que explicações seriam inúteis”.

O Rubem surpreendeu-se com a recepção, imaginou que eu seria o seu guia e explicador:

“Ao invés disso ele chamou uma aluna de uns 10 anos que passava e disse: “Será que tu poderias mostras e explicar a nossa escola a este visitante?” Ela acenou que sim com um sorriso e passou a me guiar”.

“Antes de entrar no lugar onde as crianças estavam, ela parou para me dar a primeira explicação que tinha por objetivo, imagino, amenizar a surpresa. É preciso imaginar o delicioso “portuguesh” que se fala em Portugal para sentir a música segura e tranquila da fala da menina. “Nósh não têmosh, como nas outrash escolash (daqui para frente escreverei do jeito normal…) salas de aulas. Não temos classes separadas, 1º ano, 2º ano… Também não temos aulas, em que um professor ensina a matéria. Aprendemos assim: formamos pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-nos com uma professora e ela dá orientação sobre o que deveremos pesquisar e os locais onde pesquisar. E usamos muito os recursos da Internet. Ditas essas palavras ela abriu a porta e, ao entrar, o que vi me causou espanto”.

O “espanto” estimulou a humildade daquele extraordinário ser humano. Fê-lo questionar atávicas culturas de universitários, que consideravam haver um “ensino inferior”. Sem resquícios de arrogância, concluiu que, se alguma “aprendizagem superior” existisse, ela não estaria nas salas de aula de uma superior ensinagem. Talvez a encontrássemos em frágeis fendas de universitária inovação, que também as havia…

Na universidade – prefiro esta designação “não-superior” – outro humilde mestre, o amigo Celso, teoricamente abordava o processo de pesquisa, que a anfitriã do Rubem descrevera em termos práticos:

“No passado, com a dificuldade de acesso à informação, o professor (ou o padre ou pastor) era a única forma de acesso. Atualmente, esta justificativa chega a ser risível com toda a explosão dos meios de comunicação e, em especial, da rede mundial de computadores. Há a presunção de que os alunos “naturalmente” se interessam por aquilo que vai ser transmitido. Muitas vezes, o professor, a partir de seu centramento afetivo, não consegue imaginar que exista alguém que não se interessa por aqueles conteúdos que ele se interessa”.

Na pós-pandemia, a administração educacional ostracizou a surpresa do Rubem e a ciência do Celso. O vil metal envenenava as relações e poluía o debate. Quando foi possível conviver sem máscara protetora no rosto, o instrucionismo mascarou-se de aula híbrida e de aula online. Mercadores do digital substituíam professores por robôs, indiferentes aos argumentos do amigo Celso.

Outro ser humano a caminho da perfeição escreveu que a linguagem dos homens passara a ser fonte de mal-entendidos. As palavras de um cientista valiam menos do que a verborreia de falsos “superiores” e dos desgovernantes.

Meditareis, queridos netos, sobre o facto de este vosso avô ter atribuído humanos nomes a alados seres. Isso se devia a não me sobrar engenho para reinventar a adulterada linguagem dos homens. Nem conseguiria alcançar a compreensão de ocultos saberes que só as aves preservavam, quando atribuíam exatos nomes a exatas essências.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXIV)

Fundão, 19 de julho de 2040

No lugar de onde vos escrevo, encostado ao pé da serra, merendei as cerejas de muitas primaveras, em escolas onde anônimos professores me acolhiam, nos idos de oitenta. São memórias de um velho glutão, que muito queijo da serra saboreou na casa do amigo Gildo. Quase de partida para a mátria brasileira, ainda dispus de um tempo para satisfazer a gulodice e escrever esta cartinha.

Nos difíceis tempos, de que vos venho falando, mal grado os avanços que a lei consentia, a escola brasileira continuava imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites.

Enquanto os herdeiros da plêiade educacional do Manifesto dos Pioneiros defendia que a educação deveria ser pensada a partir das comunidades, de modo que os processos de aprendizagem assumissem um papel transformador nas sociedades, ainda havia quem acreditasse que o modelo escolar instrucionista era único e que o prédio da escola era o único lugar onde se poderia aprender.

Até que chegaram tempos novos. Encontrei educadores, que faziam das suas escolas instrumentos de emancipação, para que um povo educado não mais aceitasse “as condições de miséria e desemprego como as que temos”. Nestas palavras do Florestan estava contido o drama que a herança escravagista e colonialista perpetuava: a de manter a maioria da população culturalmente alienada e afastada das decisões políticas. O Brasil padecia de um enorme déficit democrático e de cultura cívica. As escolas que, infelizmente, ainda tínhamos e que para tal contribuíam, eram objeto da crítica do eminente sociólogo.

Falo-vos de Florestan, porque, em julho de 2020, ele fez cem anos. E porque interpelava a prática da sala de aula, a concepção do professor como transmissor do saber, a hierarquização da gestão e dos saberes. Uma linha de trabalho característica de Florestan, nos anos cinquenta, foi o estudo das perspectivas teórico-metodológicas da sociologia e os seus ensaios foram fundamentais para a afirmação da sociologia como ciência.

Florestan não estava sozinho. A educação brasileira era pródiga em referências internas, mas a síndrome do vira-lata impelia à procura de sonhadas finlândias, na ignorância das finlândias domésticas. O Brasil dispunha de uma extraordinária plêiade de teóricos: Paulo Freire, Anísio Teixeira, Nise da Silveira, Agostinho da Silva, Milton Santos, Maria Nilde, Darcy Ribeiro, o piagetiano Lauro de Oliveira Lima… mas o Piaget importado prevalecia sobre o “produto nacional”.

Com o advento da pandemia, uma das modas importadas dos States, uma escola dita “de elite”, perdeu grande parte dos alunos. E os seus pais tomaram consciência de que “o que era brasileiro era bom”. Assim se expressavam:

“Você sabe como é a elite do Brasil. Eles pensam: ‘Se é americano e custa caro, vale a pena’. Os que mantêm o filho nessa escola acreditam no marketing do ensino e têm a fantasia de que o filho, só por estudar ali, vai virar novaiorquino e levar a mesma vida que um nativo nos Estados Unidos. Não tem sentido, nos dias de hoje, continuar submetendo o aluno a aulas convencionais, previsíveis, com provas e notas. Prefiro que minha filha tenha uma experiência humanística, motivadora, que a faça pensar de acordo com o tempo em que a gente vive. Acredito que isso vai dar a ela maturidade para decidir se prestar o vestibular é algo importante. E entender que não é o fim do mundo”.

Como vedes, a mensagem do vírus suscitava mudanças de atitude parental, mudança social, operava transformações… sociológicas.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXIII)

Pampilhosa da Serra, 18 de julho de 2040

A pressão para o “regresso às aulas” crescia. Naquele mês de julho, o anunciado regresso à mesmice, surgia fantasiado de “ensino híbrido”. Quando observava essas “práticas híbridas” ou “invertidas”, eu temia pelas consequências. Saberiam explicar-me como seria possível conciliar o sócio construtivismo com o “dar aula”? Ninguém sabia. E se, já nesse longínquo mês de julho, sabíamos que mudança e inovação era incompatível com aula, como seria possível ensinar o que chamavam de “métodos ativos” no contexto da passividade de uma sala de aula?

Essa incompatibilidade ficou bem expressa, no final de uma palestra (melhor dizendo, de uma conversa), quando fui interpelado por um amigo de longa data, palestrante renomado:

Pensei que fosses meu amigo.

E sou! Por que dizes isso? – perguntei.

Porque irei fazer a próxima palestra e estou sem saber o que fazerAcabaste de dizer que aula é inútil e prejudicial. E a palestra que preparei é sobre… planejamento de aula.

Manifestei-lhe a minha perplexidade:

Tu, que és professor universitário e de pedagogia, sabes bem que aula é inútil e prejudicial. Por que não o dizes?

Eu sei que tens razão – concluiu, pesaroso – mas eu não poderei dizer isso neste auditório.

Por que não podes? O que te impede de o dizer?

Porque… eu dou aula na minha faculdade.

Em 2020, a educação brasileira continuava cativa de atavismos. Contribuições do Paulo, do Florestan, do Lauro e de outros insignes pedagogos eram ignoradas, ou trocadas por teorias importadas do hemisfério norte. A “última novidade”, a “comunidade de aprendizagem”, tinha sido objeto de estudo a partir de uma matriz teórica estrangeira e isso talvez isso se devesse ao desconhecimento de obras de autores brasileiros.

Há vinte anos, as práticas de “comunidade” tomavam por referência experiências realizadas na década de 1990, nos Estados Unidos e na Espanha. Os acadêmicos, que as implementavam, ignoravam que, ainda que sob outras designações, já na década de 1950 (no Brasil) e na de 1970 (em Portugal), tinham sido desenvolvidas práticas com as caraterísticas de comunidade de aprendizagem.

E o que dizer da fundamentação teórica dessas práticas?

Nos anos noventa, Freire afirmava que a aprendizagem acontecia na intersubjetividade e aludia à necessidade do contato pessoal, físico, com a realidade, para além dos muros da escola. Na Catalunha, Ramon Flexa publicava um enunciado de princípios das ditas comunidades. Muito antes, na década de sessenta, Lauro de Oliveira Lima assim as definia: divisões celulares da macroestrutura em microestruturas federalizadas num conjunto maior, mais complexas, que facilitam o encontro entre pessoas. A obra do mestre brasileiro antecipou em trinta anos as tímidas e equivocadas manifestações de comunidade da Inglaterra, da Catalunha, ou dos Estados Unidos.

Só a “síndrome do vira lata” explicava o ostracismo de pesquisadores brasileiros.

Talvez por essa razão, ganhava força a ideia de voltar à sala de aula, quando Brasília ainda sofria fortes efeitos da pandemia.

Tão necessário como medir a temperatura dos alunos ou usar desinfetante, era o derrubar dos muros mentais e os dos fechados prédios das escolas. Que catracas e câmeras de vigilância fossem desativadas, para darem lugar a amplos espaços de fraterna vizinhança, para que as novas gerações aprendessem no contexto das suas comunidades.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXII)

Lagos, 17 de julho de 2040

Vezes sem conta, meus companheiros de profissão suscitaram este diálogo:

As escolas que você ajudou a criar não têm aula, nem turma…  Estão dentro da lei?

É evidente que sim.

Então, as escolas que têm aula estão fora da lei?

Sim, estão.

Por que diz isso?

Porque, do modo como funcionam, negam o direito a educação a muitos alunos. E esse é um direito inscrito na Constituição e na Lei de Bases!

Respondiam:

Sim, eu sei que há leis. Lá isso há, mas…

Por mais de cinquenta anos, eu ouvira esses “mas” e a expressão “a lei não permite”. Mas, a lei permitia. Bastaria requerer inovação normativa, para que a inovação educacional acontecesse.

Embora soubesse das raízes de certos traços culturais, a resignação dos educadores me desgostava. Atitudes de silêncio e demissão eram causa direta de uma contraditória situação: a autonomia das escolas estava garantida por lei, mas estava ausente das práticas. Especialistas afiançavam que a busca de autonomia deveria ser constante, fortalecendo a instituição, demandando a participação de professores. Porém, naqueles ignominiosos tempos, imperava o medo de perder o emprego.

Com a participação da população, professores elaboravam projetos político-pedagógicos, fundamento de autonomia. Raros eram os diretores que haviam lido esse documento e a maioria dos professores nem sequer sabia da sua existência. As escolas sobreviviam num “faz-de-conta que somos autônomas”. Mais grave ainda era o fato de as práticas serem em tudo o opostas ao que estava escrito nos projetos. Isto é: as escolas estavam fora da lei, como eu dissera ao meu interlocutor.

Ao instituir um quadro normativo subordinado ao paradigma instrucionista, a administração educacional entrava em contradição com documentos de política educacional por si mesma aprovados. E essa contradição talvez configurasse falsidade ideológica.

Acresce que, impondo às escolas práticas instrucionistas, a administração impedia que princípios constitucionais fossem cumpridos. Poderíamos inferir que incorria em outra ilegalidade: a do abandono intelectual de milhões de alunos. Esse abandono se refletia nos péssimos índices de desenvolvimento da educação e de proficiência, que, por sua vez, eram evidências de ineficiência administrativa.

Se somarmos a esse rol de potenciais ilegalidades, situações de abuso de poder e episódios de assédio moral, poderíamos concluir que, nesse distante julho de 2020, o sistema de ensinagem sobrevivia imerso em corrupção moral e intelectual. Sem pretender generalizar – eu sabia de bons exemplos de gestão – se poderia dizer que a administração recorria a todos os truques, para impedir que uma nova educação se manifestasse.

A pandemia havia posto a descoberto esse lamentável cenário. Enquanto a vala comum acolhia corpos das vítimas de um vírus, a sociedade acolhia os despojos de um delinquente sistema de ensino, que as secretarias continuavam a impor às escolas. Esses meses de 2020 foram um pesadelo, mas também oportunidade de transformação social, política, económica… educacional.

Da violência simbólica da sala de aula à violência das periferias, dos assassinatos de homossexuais ao feminicídio, entre a corrupção intelectual e a corrupção moral, das depressões dos adultos ao suicídio juvenil, o Brasil definhava. Mas, como dizia a sabedoria popular, “não há mal que sempre dure”. No mês de julho, esse mal sofreu o primeiro revés. Em próximas cartas, vos contarei o que aconteceu.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLXI)

Mértola, 16 de julho de 2040

Netos queridos, estareis, certamente, recordados da crítica do instrucionismo que, magistralmente, o meu amigo Celso descreveu, num tempo em que a escola de massas fomentava a destruição em massa. A hegemonia instrucionista ignorava as contribuições das ciências da educação. Mas, a voz do Celso e as de outros mestres se fizeram ouvir. A máxima de Walt Disney “The way to get started is to quit talking and begin doing” (A maneira de iniciar é parar de falar e começar a fazer) teve tradução no ensaio do amigo Celso. Com a devida vénia, cito o Mestre:

O ser humano se constitui por sua atividade, em todos os aspectos (condição humana: não nascemos prontos). O conhecimento é estabelecido no sujeito por sua ação sobre o objeto. O conhecimento não se dá por “osmose”: não adianta o sujeito estar ao lado, em contato com o objeto, se não atuar sobre ele.

Dois sujeitos podem estar realizando a mesma ação — por exemplo, ouvindo o professor —, mas com graus de interação com o objeto de estudo bastante diferentes. Isto significa que não basta a ação; tem de ser uma ação consciente e voluntária, portanto, intencional. Tal perspectiva se contrapõe à ação mecânica, ao “programa” rígido (como um chip implantado).

No decorrer do processo de conhecimento, o sujeito precisa se expressar. O ciclo de aprendizagem só se completa com a expressão por parte do sujeito. São pouquíssimos os espaços de expressão dos alunos durante as aulas. O grande espaço costuma ser nas famigeradas provas (geralmente vinculadas a processos classificatórios, para fins de exclusão), onde os conteúdos devem ser reproduzidos, “devolvidos” (educação bancária-Freire).

Como não há atividade verdadeira, como não se desenvolve autonomia ao longo dos (longos) dias letivos, na expressão não há criação, não há autoria. Diante de uma pro(im)posta de escrita, por exemplo, uma fala inocente, e relativamente recorrente, do aluno denuncia a grande farsa, o grande equívoco da prática instrucionista: “Professora, posso escrever com as minhas palavras?” É muito triste! Aprendeu, desde muito cedo que não pode escrever com as suas (dele aluno) palavras, mas com as palavras do professor e/ou do livro didático (…) A partir da abordagem dos fundamentos epistemológicos vê-se o grande equívoco da prática instrucionista.

Por meados de julho, insensível a vozes sábias, a administração educacional obrigava escolas e professores a exportar para os lares de metade dos alunos inúteis aulas online. E preparava o “regresso às aulas”, então fantasiadas de “híbridas”.

Contrastando com a insanidade, a Rede de Comunidades de Aprendizagem, que assumiria visibilidade pública nesse mesmo mês de julho, era legitimada na contribuição das ciências da educação, de que o amigo Celso era digno representante, antecedido de contribuições de geniais educadores. Citarei apenas alguns: Lauro de Oliveira Lima, Amanda Alberto, Agostinho da Silva, Helena Antipoff, Lourenço Filho, Amanda, Nise da Silveira, Eurípedes Barsanulfo, Anália Franco, Herculano Pires, Milton Santos, Florestan Fernandes, Paulo Freire, Nilde Mascellani, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro…

Se a produção científica dos mestres denunciava “a grande farsa, o grande equívoco da prática instrucionista”, por que razão ela se mantinha? Onde encontrariam as secretarias de educação legitimidade para as impor?

Em lado algum! Cientificamente, a administração educacional denotava mais de um século de atraso. E, impunemente, permanecia… fora da lei.

 Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLX)

Lagos, 15 de julho de 2040

Para que não se diga que este vosso avô criticava e não apontava caminhos, aqui vos deixo um registro de realizações elaborado no decurso da pandemia.

Na primeira semana do confinamento, os núcleos de projeto não conseguiram alcançar todos os alunos, pelo que se lançaram no mapeamento do potencial educativo e no levantamento de necessidades das comunidades onde os seus aprendizes residiam. Identificaram situações de sobocupação de espaços, de carência de alimento e de salubridade, a falta de computador e de acesso à Internet.

Em abril, cumprindo “ordens de superiores”, os professores exportavam aulas online, para cerca de metade dos seus alunos. E se angustiavam por não conseguirem contato com a maioria das famílias. Enquanto isso, os educadores dos núcleos de projeto já comunicavam com todos as famílias e círculos de vizinhança, já cuidavam da aprendizagem de todos os seus alunos – de todos! – e, se o isolamento social os privara do abraço presencial, com o abraço virtual os confortavam.

O conceito de wi-fi universal foi posto em prática. Quem dispunha de acesso à Internet disponibilizava um wi-fi para o vizinho do lado. E, se o Maycon só podia usar um rudimentar celular, já noite dentro, “quando a mãe regressava do ganha-pão de faxineira”, quem possuía dois computadores emprestava um.

Entre abril e julho, enquanto o subsídio do Governo não chegava, ou quando o escasso dinheiro se fora numa dúzia de esfomeadas bocas, havia sempre um vizinho mascarado a bater à porta dos necessitados, levando-lhe um prato de arroz com feijão – o exercício da solidariedade em comunidade.

Em agosto, a “recuperação da economia” expunha crianças ao perigo de contágio, num precoce e infame “regresso às aulas”. Em contraponto, os núcleos de projeto preparavam a adequação do edifício-escola, para o pós-pandemia. Definiam o prédio como uma “ágora”, espaço de encontro da comunidade. E outros espaços de aprendizagem concebiam, no levantamento do espólio das bibliotecas comunitárias e na instalação de plataformas digitais.

Reorganizando espaços, também reviam os tempos de aprendizagem. Acolhiam o ritmo horário da comunidade, o ritmo dos ciclos de vida e o tempo disponível de cada “voluntário”, numa espécie de “banco de horas”. Após a pandemia, reutilizando o prédio da escola, não haveria horário fixo de “entrada”, ou de “saída”. Não se tratava de entrar e sair de um edifício, onde supostamente se aprendia, mas de efetivamente aprender em múltiplos espaços de uma escola-edifício, que já não estava separada da comunidade.

Em comum, eram elaborados os planejamentos virtuais. Partia-se da produção de mapas de tempos comuns a todos os sujeitos aprendentes, para chegar a uma gestão individualizada do tempo. Voluntários e outros agentes educativos levavam em consideração contribuições da cronobiologia, cada educador estabelecia o seu tempo de repouso, harmonizando o seu existir com o pulsar da comunidade.

Os núcleos de projeto instalavam dispositivos de reconfiguração das práticas, constituíam tutorias e outros dispositivos de processos de mudança, recriavam o lema de um projeto “português” em que o vosso avô participara, muito tempo atrás: inovar, educando; educar, inovando.

A sementeira de criatividade e inovação acontecia na certeza de que, mesmo que fosse invisível aos olhos, mesmo que o tempo impusesse demora na evidência dos frutos, se até mesmo o sonho de fazer dos jovens seres sábios e pessoas felizes fosse aniquilado, teria valido a pena.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLIX)

Boliqueime, 14 de julho de 2040

A Kátia morava na periferia de Brasília, lugar onde não havia acesso à Internet. Três meses após o início do isolamento social, nenhuma notícia lhe chegara vinda da escola das filhas. Decidiu ir à escola, explicar a sua situação e pedir algum material, para que as suas crianças pudessem estudar em casa.

Não passou da portaria. A funcionária de serviço – sem máscara protetora de si e dos outros – respondeu:

Não temos. Ligue para a secretaria e peça uma apostila.

Há mais de três meses, as filhas da Kátia e as dezenas de crianças do seu bairro estavam sem contato com escola. Mais de metade dos alunos do Distrito Federal estavam abandonados pela secretaria de educação. Isso mesmo: a situação configurava abandono intelectual. Vejamos…

O Cleber retirou os seus filhos da escola, educou-os com esmero e foi condenado em tribunal por “abandono intelectual”. Lei é lei, foi aplicada e não questionei a sentença, embora lamentasse que a jurisprudência não pudesse ser harmonizada com a pedagogia e evidências de aprendizagem. Bem como com o bom senso, porque os filhos do Cleber ganharam bolsas para estudar no MIT, algo que aqueles que passaram doze anos dentro de sala de aula não conseguiram lograr. Dentro de uma sala de aula também acontece “abandono intelectual”…

Eu nunca fui apologista de homeschooling porque, aula por aula, antes numa sala de aula do que em casa. Mas, encarava-a como medida transitória, onde houvesse enquadramento legal para a prática. No Brasil, o homeschooling era ilegal. Mas o resgate das crianças do isolamento da sala de aula tinha sido a primeira ação de proteção dos filhos do Cleber. Depois, esse pai consciente dos malefícios do instrucionismo, deu aos seus dois filhos a oportunidade de aprender em comunidade.

O direito à educação era parte de um conjunto de direitos sociais, que tinham como inspiração o valor da igualdade entre as pessoas. Em 1988, as responsabilidades do Estado foram repensadas e promover a educação fundamental passou a ser seu dever. O artigo 205º da Constituição consagrava o direito da pessoa ao pleno desenvolvimento, preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Todos, sem qualquer distinção, tinham (por lei!) direito à educação e, especificamente, à educação escolar, regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases. A Constituição também estabelecia que a Educação era dever do Estado e da Família, em regime de corresponsabilidade social, sendo que o primado do dever ficava com o Estado.

O artigo 208º dizia-nos que o dever do Estado com a educação seria efetivado mediante a garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, bem como pelo acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. O modelo da ensinagem imposto pelo Estado às escolas obstava ao cumprimento do disposto na Constituição.

Dados divulgados pelo Ministério da Educação apontavam para milhões de jovens abandonando o ensino fundamental. Diria que não eram os jovens que o abandonavam. Os jovens eram abandonados pelo Estado, por via do modelo instrucionista, imposto às escolas pelas secretarias de educação. Mas, quem questionava os elevados índices de evasão escolar e a deterioração das políticas públicas de educação?

No mês de julho de 2020, educadores éticos ajudaram as filhas da Kátia e de outros abandonados filhos da nação a aprender em comunidade. Uma rede de comunidades de aprendizagem foi criada no Distrito Federal. Em breve, vos direi como isso aconteceu.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLVIII)

Odemira, 13 de julho de 2040

Nas primeiras décadas deste século, um relatório da Unesco mostrava que o percentual de reprovados no Brasil se assemelhava ao de nações muito pobres e era superior inclusive ao de outras bem menos desenvolvidas, como o Camboja, o Haiti ou o Ruanda. Estudos revelavam índices preocupantes, mas, os reais efeitos das práticas de ensinagem, para além de preocupantes, eram trágicos.

Ontem, o Mestre Anísio faria 140 anos. No lugar etéreo onde mora, deverá estar feliz, por ver concretizada a “escola pública”, que sonhou. Mas, nos idos de vinte, havia quem insistisse em matar a memória de Anísio, usando o pensamento do insigne mestre para legitimar práticas pedagógicas obscenas. Eram muitos os alunos reprovados, evadidos, abandonados. A maioria daqueles que conseguiam chegar à universidade, estava desprovida de bases para uma formação de nível superior. Competiria ao Estado proporcionar condições mínimas de qualidade na Educação. Porém, aquilo que o Estado continuava a oferecer aos jovens era uma educação burocratizada, arcaica, causa de doenças profissionais e de múltiplas ignorâncias.

Vários eram os tratados e declarações que referiam a educação como direito fundamental, essencial para o pleno exercício da cidadania: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração dos Direitos da Criança, o Protocolo Adicional ao Pacto de San José da Costa Rica, a Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela ONU. Todas essas Declarações foram ratificadas pelo Brasil, mas descuradas.

O direito à educação estava previsto nas constituições brasileiras, desde a época do Império. A Lei reconhecia o direito de qualquer cidadão, ou organização, de exigir do Estado esse direito, para que o Estado que não pecasse por omissão. Os direitos sociais são direitos fundamentais e, em razão disso, imediatamente aplicáveis e geradores de efeitos jurídicos. Perante a inércia do Poder na efetivação dos direitos sociais, questionava-se a possibilidade de exigir tais direitos perante o Poder Judiciário. Se o Estado não cumpria com seu dever jurídico, caberia aos interessados o manejo dos mecanismos de acesso à justiça (tais como o mandado de segurança, o mandado de injunção e a ação civil pública).

Os documentos orientadores de política educacional continham citações de pedagogos escolanovistas, como Anísio, que apontavam para a “aprendizagem centrada no aluno”, veiculavam princípios do paradigma da aprendizagem. Mas, o quadro normativo das secretarias contribuía para inviabilizar projetos fundados nesse paradigma. As secretarias alegavam não existir legislação que permitisse alternativas à ensinagem. Mentia! Havia a Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Plano Nacional de Educação e muito mais! E a imposição da escola da aula, sendo contrária à lei geral, talvez até configurasse crime de falsidade ideológica,

A regulamentação da lei dificultava a emergência de “alternativas”. Consciente de que deveria ser feita a adequação da regulamentação a novas realidades, um governador ordenou à administração que o fizesse. A administração não reconheceu que agia erradamente. E não cumpriu o que o governador ordenou que cumprisse.

Nesse longínquo 2020, o professor Clayton assim caracterizava a situação: “O Brasil é um país cheio de leis, mas parece que a única lei que se cumpre é a lei da gravidade”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escoa (CLVII)

Olhão, 12 de julho de 2040

Nas suas crônicas de há mais de cem anos, a Cecília fustigava ministros e pugnava pela democratização da escola, quando aludia a “todas essas coisas que a gente precisa conhecer, antes de ser ministro da educação”.

Desde o Capanema de há mais de cem anos, a democratização desejada pela pedagoga e poeta era miragem. Até havia ministros, que recomendavam a violência física. Talvez porque não tivessem lido aquilo que, no século primeiro, um Paulo converso escreveu numas cartas aos corintos:

Ainda que eu conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, nada serei. O amor é paciente, é benigno, não se exaspera.

Vinte séculos passados, deparei com outro texto, alegadamente inspirado nas Escrituras, mas cujo conteúdo se situa nos antípodas das epístolas de Paulo de Tarso. Netos queridos, depois do que ides ler, ninguém se espante, se ouvir afirmar que todas as guerras foram feitas em nome de Deus:

É Deus mesmo quem dá grande importância à vara. Vamos examinar algumas passagens das Escrituras nas quais ele ordena aos pais que a utilizem como instrumento na criação dos filhos.

Vinte séculos decorridos sobre o Sermão da Montanha, deparávamos com um triste exemplo da barbárie fundamentalista. Se puderdes conter a náusea, que eu senti, podereis continuar a leitura:

Um dos obstáculos à disciplina é o pensamento humanista. Foi Deus quem ordenou que os pais batessem nos filhos como expressão do seu amor por eles. Tem por objetivo corrigir na criança os elementos que podem impedi-la de obedecer ao Senhor com alegria.

Esses desumanos seres humanos impunham obediência formal, talvez por via de uma interpretação literal da obediência parcial do rei Saul… Deus havia ordenado que ele destruísse todos os amalequitas, inclusive o gado deles. Ou seja, no entendimento dos fundamentalistas, o gado sofreria os efeitos das crises de humor de um Deus vingativo. E, nos Provérbios, 23,13,14, eram as crianças que sofriam a ira desse Deus cruel:

Não retires da criança a disciplina. Se a fustigares, não morrerá. Tu livrarás a sua alma do Inferno.

No país do carnaval de 2020, havia quem voltasse à segunda metade do século XIX e repetisse absurdos idênticos àquele que Thiers proferiu na Comissão Sobre a Instrução Primária, na França de há cento e sessenta anos:

Desejo tornar omnipotente a influência do clero, pois conto com ele para propagar essa saudável filosofia, que ensina ao homem que ele está aqui na Terra para sofrer.

Recebi convite para participar num programa de TV. Eis uma das perguntas, que o entrevistador me dirigiu:

E se o professor fosse ministro da educação?

Seria ministro apenas por um dia – respondi – e publicaria um decreto com artigo único: “Extinga-se o ministério da educação”.

Se deixasse de haver ministério, metade dos problemas do sistema estariam resolvidos. A outra metade se resolveria no exercício de uma efetiva autonomia, em escolas dotadas de uma gestão verdadeiramente democrática.

Na década de vinte, ministeriais aberrações, equivocadas interpretações de Escrituras e o apelo a ancestrais práticas de disciplinação levaram-me a evocar palavras do saudoso Abade Pierre:

Dou-me conta, ao escrever “Deus”, de como as palavras se cansam, se gastam. Pois não escrevia Hitler, no cinturão dos SS, “Deus está conosco”?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CLVI)

Serra Grande, 11 de julho de 2040

Romântico Conspirador é um modo de pensar, sentir e viver princípios humanos na Educação. Entender que aprender é uma condição de todo ser vivo e não apenas um direito. Que é para a vida toda e não só um período de escolaridade e que os espaços de aprendizagem não se resumem ao espaço escolar.
Quando encontramos gente que pensa e age de modo similar, sentimo-nos abraçados e acolhidos e não estamos mais sós. Foi assim que iniciamos a Rede Românticos Conspiradores. Desse modo, se anunciava a realização do Nono Encontro Nacional dos Românticos Conspiradores.

No próximo outubro, completar-se-ão vinte e quatro anos sobre o “Dia do Professor” de… há vinte e quatro anos. Poderia ser há um ou dois séculos, porque o tempo não existe. Mas, na linear criação humana, que mede e hierarquiza momentos fugazes, alguns momentos são menos inconsequentes e transitórios, eternizam a esperança. Porque, contrariamente ao que por aí se diz, a esperança não é a última a morrer. Enquanto houver seres românticos, a fênix renascerá das cinzas dos gestos de humanização, que o tempo ocultou. Por isso, refiro datas, épocas, instantes…

Nesse longínquo outubro, recebemos uma mensagem da nossa amiga Regina:

Bom dia, Ely e RCs!

Realmente, não vejo como desejar feliz dia do professor, quer ele seja um Romântico, quer não. Meu natural otimismo está a cada dia mais e mais ofuscado por essa realidade que você bem descreve e a luz no fim do túnel está distante. 

Mesmo assim, romanticamente, não há que desistir. Porque educação não é para hoje, nem para amanhã. É para as futuras gerações. Nossa atuação é, sim, hoje, para que aqueles que educarmos construam seu próprio futuro. E que seja para a integralidade, na democracia, com dignidade, em solidariedade, na diversidade, na realidade, assim como definimos em nossa Carta de Princípios, em 2008.

No cenário brasileiro atual, sinto que a atuação romântica pode sim, ser uma atuação local na intenção de provocar o máximo de professores, estudantes e familiares (além de outros atores da comunidade), para a prática desses princípios no hoje, entendendo que servirão de fundamento muito bem enraizado para a transformação do Brasil. 

Pensar localmente, no tamanho das próprias pernas, é que me mantém romântica. Pensar localmente, na beleza e na riqueza (sob vários aspectos) deste país é que me mantém romântica.

Eu, realmente, creio que 99% dos brasileiros merecem meu esforço. Se não me sentisse assim, talvez já tivesse desistido. Como disse Darcy, temos que nos alegrar por não estarmos ao lado do 1% de brasileiros, que se consideram “vencedores”.

Então, “vambora” continuar. Nós já temos esse poder. Nós somos Românticos Conspiradores. Não estamos sozinhos, só estamos espalhados por esse Brasilzão.

Arauto de um romantismo militante, também o Rubem se afirmara “romântico da educação”, repetindo em palestras e em livros. o “credo” de educadores amorosos, éticos, traduzido na Carta de Princípios do RC. Esse documento foi estopim para uma sequência de encontros nacionais, tempos de consolidar laços, de abraçar, ainda que virtualmente, como sucedeu no tempo da pandemia.

Nos dias 11 e 12 de julho de 2020, um vírus não permitiu que, presencialmente, se encontrassem em São Paulo e na Bahia. Mas, a Internet associou-se ao Movimento e propiciou o virtual encontro. Pela nona vez, este vosso avô nele participou. E pode assistir aos restantes eventos desses dois dias, no Instagram:

Por: José Pacheco

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