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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLIII)

Boa Esperança do Sul, 9 de outubro de 2040

Ainda mais umas palavrinhas sobre… inclusão. Em 2020, o MEC havia baixado mais um decreto. E os meus amigos da Fundação Síndrome de Down assim se manifestavam:

“A luta pela vida inclusiva das pessoas com deficiência pressupõe de modo indispensável a inclusão escolar, luta de décadas que encontrou ressonância na Convenção da ONU de 2006, na Constituição Federal de 1988, na Lei Brasileira de Inclusão. Não pode agora um decreto, o Decreto No.10.502 de 30.de setembro.2020, retroceder direitos duramente conquistados retomando a escola especial e as absurdas salas especiais nas escolas regulares. A Fundação Síndrome de Down repudia tal decisão”.

Nesses sombrios tempos, havia quem estivesse atento aos disparates “legais”. Num tempo feito de ignorâncias e medos, havia quem resistisse, quem denunciasse desgovernações. A administração educacional era hábil no recurso a regulamentação infralegal, para impedir que mudanças acontecessem. E, por decreto ou portaria, destruíam tentativas de melhoria do sistema.

Durante mais de duas décadas, muitos alunos “especiais” foram matriculados em “estabelecimentos regulares”, “incluídos” em turmas com número reduzido de alunos, ou os remeteram para o degredo de salas “especiais” Também lhes  ofereciam a alternativa de atendimento especializado, em contraturno. Tudo insuficiente e até mesmo inútil, porque, por mais cosmética que se pudesse fazer na escola da aula, ela nunca seria inclusiva.

Talvez os “especialistas” não tivessem lido a “Resolução da Conferência de Salamanca”. Ou, se a leram, não a entenderam. Seria possível fazer acontecer “inclusão”, se acontecessem mudanças efetivas na cultura humana, questionando a estrutura das formas de educação desse tempo. O desenvolvimento de atitudes de respeito, solidariedade e preservação da vida pressupunha escapar de formatações e superar visões fragmentárias.

A sala de aula era o dispositivo central da escola excludente, segregada do social e segregadora, separada da vida. A “crise” da escola instrucionista consistia, sobretudo, na dificuldade de lidar com a diversidade, com crianças e jovens excluídos, sem direito a um projeto de vida. A escola punia aqueles que já tinha punido! Escolas que não asseguravam uma base comum para percursos diferenciados, não faziam sentido para desfavorecidos. Eram guetos, quer de “especiais”, quer de “normais”, como Férrière as descrevia, já em 1920:

“A criança gosta de natureza, fecharam-na em casas; a criança gosta de criar, puseram-na a um trabalho sem sentido; a criança gosta de se mexer, condenaram-na à imobilidade; a criança gosta de falar, condenaram-na ao silêncio”.

O decreto de 2020 era um regresso ao passado, a medidas de política educacional anteriores à Conferência de Salamanca. Questionava direitos adquiridos, como aqueles que constam da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e da Constituição Federal. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4, que integrava a Agenda 2030 da ONU, previa que fosse assegurada educação inclusiva. A equidade, como princípio básico, requeria diferenciar estratégias para gerar inclusão. Requeria a participação dos “especiais” em espaços comuns de convívio, exatamente o oposto da proposta veiculada pelo decreto. Mas, o Brasil descumpria, ignorava compromissos internacionais. Ao abrir espaço para a volta das “escolas especiais”, se comprometia décadas de esforços para promover educação inclusiva.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLII)

Morro Grande, 8 de outubro de 2040

Alheei-me do frenético trânsito de São Paulo, para ouvir contar estórias. O motorista do táxi falou de fome e abandono, da sua infância no Nordeste. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro.

Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta estória igual a tantas outras estórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros. Mas, a certa altura do monólogo, parámos num semáforo. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala:

“Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?”

Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.

“Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou”.

E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:

“O senhor sabe o que faz a minha mulher? Ela é professora! Quando nos casámos, ela quis tirar um curso. Só tinha um problema: ela não gostava de ler. Eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso”.

Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato:

“A minha mulher trazia os livros lá da faculdade, para eu ler. À noite, eu lia os livros. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fez as provas todas e ficou aprovada. Até recebeu um diploma! E, assim, fez o curso de professora”.

Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Dewey, Piaget, Anísio…

Por estarmos a chegar ao nosso destino, rematou a conversa:

“Já vi que o senhor não deve ser da educação e para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe vou dizer, porque são coisas da pedagogia… entendeu?”

Não retorqui. Eu deveria ter aspeto de “quem não era da educação”… e ele concluiu, dizendo:

“Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem a muitas crianças. E até me deu vontade de chorar”.

Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me comoveu a sua estória. Talvez nunca possa manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta ameaçava desatar-se.

Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao seu último porto e se apronta para a derradeira viagem, começo a coabitar com um mistério a que não dou nome, algo cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Naquele tempo, me perguntavam por que razão escolhi o Brasil como mátria, nos braços da qual partirei, creio que em breve. Respondia que foi nas terras do sul que encontrei resposta para uma pergunta peregrina: Será verdade que andam anjos pela Terra?

 

(Podereis encontrar esta estória no meu livrinho “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”. Com essa estória, a minha amiga Janaína compôs o último quadro de uma bela peça de teatro.)

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLI)

Olhos d’Água, 7 de outubro de 2040

Recém chegado ao Brasil, encontrei, no extremo norte do país, uma Cláudia, que buscava a forma ideal de escola, uma escola que desse a todos garantias do exercício da cidadania e da realização pessoal. Num hospital do Sul, uma equipe de professores, técnicos de serviço social, animadores e voluntários suavizavam os dias de crianças doentes. Num lugarejo perdido no Nordeste, a fé pedagógica fazia milagres e produzia aprendizagens que fariam inveja a muito colégio (dito) de elite. Junto ao mar de Santa Catarina, cresciam as paredes de uma escola sem paredes, que concretizaria o sonho de um pequeno grupo de educadores. Em São Paulo, o jardim-de-infância da Terezita, feito à medida da criança, comovia o visitante mais insensível. Na periferia da metrópole, a Ana juntava professores, pais, amigos e pesquisadores, para dar forma a um projeto que transformou “sala de aula” em “espaço de estudo”. No Rio de Janeiro, os sonhos de uma escola ganhavam forma, fazendo das crianças pessoas mais sábias, mais felizes. Sob o “mar de Minas”, uma mulher extraordinária de nome Patrícia empenhava-se na humanização de uma academia de polícia. E muito mais…

Deixei-me ficar por cá. Havia descoberto uma nova educação no hemisfério sul. Por aqui fiquei aprendendo, ajudando, me emocionando, divulgando “escolas invisíveis”. Assim como certas teorias permanecem invisíveis, também são invisíveis certas escolas. O Brasil desconhecia aquilo que tinha de melhor. Mas, uma reforma silenciosa estava para acontecer.

Os professores que habitavam as escolas invisíveis não recebiam reconhecimento público. Recebiam injustiça e davam lições de resiliência. Eram mal remunerados, mas não usavam o baixo salário como álibi de nada mudar. Não auferiam benefícios, nem aspiravam à celebridade. Faziam milagres com os recursos de que dispunham. Os educadores anónimos que habitavam as escolas invisíveis teciam redes de fraternidade.

Quando decidi afastar-me da Ponte, para permitir que outros a refizessem, não imaginaria ver-me envolvido em novos projetos. Afastei-me, geograficamente, do lugar onde ajudei a concretizar utopias, para não comprometer que outros continuassem a viagem iniciada há mais de seis décadas. Porém, neste lado do mar, esperavam-me novas viagens. Estas cartinhas são registros de situações com que deparei no meu contínuo deambular pelas escolas. Expressam a denúncia do fatalismo da reprodução escolar e social, desocultam práticas sociais obsoletas, mas o foco é a afirmação da concretização de utopias.

A concretização da utopia resulta da consciência da insatisfação e de uma decisão ética. Assim como o romântico que ousa reinventar práticas sociais é um conspirador nato, o idealista que logra concretizar utopias nunca perde o sentido do real. As utopias são pontes lançadas e percorridas sobre o abismo da impossibilidade. Poderemos, a meio do trajeto, regressar à margem de onde partimos, mas teremos sempre de chegar a outra margem, a caminho de outras pontes e de outras margens. Não esqueçamos o que nos diz Hermann Hess:

“Somente as ideias que vivemos têm valor. O proibido não é eterno, e sim sujeito a mudanças”.

Diante de desafios, haverá sempre quem nunca arrisque um passo. E há quem, arriscando, não consiga passar da idealização da realidade à realização de um ideal. A vida é bem curta para se realizar o ideal possível, só o consegue quem se transcende. Porém, se o sentimento de ficar a meio da viagem se apossar de nós, acreditemos que outros irão cuidar do inacabado.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXL)

Sete Lagoas, 6 de outubro de 2040

Durante muito tempo, a profissão de professor esteve fragmentada em castas. Nas réplicas da escola da Prússia militar e da Inglaterra da Primeira Revolução Industrial era evidente a diferença de estatutos entre profissionais de um mesmo ofício: professor coordenador, efetivo, provisório, substituto, contratado agregado, readaptado, temporário, eventual, entre outros.

Nos idos de oitenta, a avaliação de desempenho estava na ordem do dia. Através dela, seriam extintas as castas, dignificada a profissão?

Fundava-se a proposta no pressuposto de que a valorização pessoal e profissional dos educadores determinava a melhoria qualitativa do exercício da função. A discussão era pacífica. Quem se oporia a que fosse dada relevância à qualidade das práticas? Se a avaliação fosse, efetivamente, de desempenho, por que motivo não se valorizaria “o exercício de cargos pedagógicos e as atividades desenvolvidas na escola, na comunidade educativa e no âmbito sociocultural” (sic)?

E o que se poderia criticar na intenção de articular a avaliação “com a formação continuada, no quadro do enriquecimento e da valorização dos profissionais, das escolas e dos respectivos territórios educativos” (sic)? Sem querer polemizar, diria sem rodeios que nada se avaliou, ninguém avaliou coisa nenhuma e ninguém foi avaliado.

A avaliação de desempenho era retórica, nunca passou de mero ato de rotina administrativa. Estava estabelecido que a progressão nos escalões da carreira se faria “por decurso de tempo de serviço efetivo; pela frequência com aproveitamento de módulos de formação; por avaliação de desempenho”.

Os efeitos do “aproveitamento de módulos de formação” não eram de curto prazo, nem o acumular de certificados e créditos pressupunha o aumento da boa qualidade de desempenho. Também não estava provado que a experiência acumulada “no decurso de tempo de serviço” conferia maior qualidade ao exercício da profissão. Não se confunda “experiência” com “formação experiencial”, ou com a “valorização dos adquiridos”!

Fui dirigente sindical. Numa reunião de elaboração do “Estatuto da Carreira Docente”, um colega afirmou ter 30 anos de experiência e que, por isso, tinha direito a prioridade nos concursos. Perguntei-lhe se dava aula. Disse que sim E eu informei-o de que estava errado o seu raciocínio. Só tinha um ano de experiência – durante 29 anos, apenas repetira 29 vezes a experiência do primeiro.

Fácil era publicar normas para avaliação de desempenho, difícil era aplicá-las. E a cultura de castas se reproduzia, sem se distinguir “servidor” de “serviçal”. Em outubro de 2020, um jornal publicava uma ridícula notícia, que reproduzia e reforçava ancestrais e obsoletos conceitos de servidor público e de escola:

“Uma super boa notícia para os concurseiros! O próximo concurso público para professores efetivos já tem data definida para ser lançado!”.

O “concurso” era mero convite a troca de lugares, à semelhança de uma “dança das cadeiras”. Naquele tempo, os professores eram “remanejados”. Estranha expressão! Na minha terra, o manajeiro era o capataz que controlava o remanejamento do gado no curral.

Sem avaliação de desempenho, apenas valendo como critério o tempo de serviço, era compensada uma bovina servidão aos “superiores” e comprometida a estabilidade das equipes de projetos inovadores. De um ano para o seguinte, professores, que asseguravam o desenvolvimento desses projetos, eram substituídos por outros, que… matavam a inovação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha ESCOLA (CCXXXIX)

Canoeiros, 5 de outubro de 2040

Nos idos de oitenta, o João, um pai atento aos malefícios da velha escola matriculou o seu filho numa escola, que adotara a chamada “Pedagogia Freinet”. Um amigo perguntou:

“Coitado! O teu filho tem dificuldades de aprendizagem?”

O amigo não sabia que, se houvesse “dificuldades de aprendizagem” nos alunos, também se teria de admitir haver “dificuldades de ensinagem” nos professores. Foi, sobretudo, devido a uma “deficiência” que Freinet se libertou de atavismos. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratórios não lhe permitiriam “dar aula”. Por lhe ser difícil respirar dentro da sala, foi com os alunos para fora dela. Arejou a escola e provocou correntes de ar novo em muitas outras escolas. Imaginemos o que aconteceria, se muitos professores padecessem de problemas pulmonares, ou não pudessem utilizar as cordas vocais!

Quatro séculos separam o Freinet moderno do Michelangelo renascentista. É assim que recordo uma metáfora que li num livro do Mário. Perguntaram a Michelangelo como conseguira fazer a estátua de David, um maravilhoso mármore de cinco metros de altura. Foi fácil – respondeu o gênio de Florença – Olhei para o bloco de mármore e imaginei o David dentro dele. Depois, foi só retirar tudo o que não era David.

Isso mesmo! Era preciso “retirar do mármore aquilo que não era David”. Era preciso libertar a escola daquilo que não fazia sentido.

Quase contemporâneo de Michelangelo, Comenius concebeu uma teoria ainda hoje considerada “avançada” e advogava uma educação em ambiente escolar arejado. Mas, durante mais de quatro séculos, os alunos foram armazenados em “estufas calafetadas”, alinhados em classes (pretensamente) homogéneas e tratados como se fossem um só.

Havia escolas de salas com porta de fechar, cujo cheiro a mofo já ninguém sentia – eram as ditas “salas de aula normal”. Sempre que eu deparava com esse dístico afixado na porta das salas “normais”, eu perguntava: Cadê as salas anormais?

Em outras escolas, as salas tinham portas de abrir. Eram as tais “escolas anormais”. Portas fechadas eram reveladoras de uma cultura de autossuficiência. Mas as portas que fechavam a caixa negra da sala de aula, também poderiam ser portas abertas para o ar livre. Restava optar.

Quando escrevi que os educadores precisavam mais de interrogações do que de certezas e que, dentro de uma aula, nada de útil se aprendia, houve quem reagisse com virulência. A recusa de agir resultava da recusa de ver e de pensar.

Galileu – como Michelangelo, homem do Renascimento – respirou o ar fétido dos subterrâneos da Inquisição, quando ousou desafiar os preconceitos da sua época. Com lentes, que ele mesmo fabricava, Galileu atravessou os ares com um novo olhar, contrariando aqueles que defendiam as teses de Aristóteles e Ptolomeu.

As ideias arejadas são peregrinas, permitem que a humanidade reoriente o seu complexo percurso. No século passado, houve professores que ousaram interrogar-se: por que há salas de aula? Ninguém sabia responder. Olhos questionadores não encontravam nos livros das ciências da educação qualquer fundamentação para que houvesse… aula.

Em 2020, era grande o meu cansaço perante a sucessão de notícias que davam conta do descalabro da educação, dos trágicos efeitos de uma escola sem sentido, sem que se denunciasse as causas. O meu cansaço advinha de ter de escrever para denunciar, quando desejaria mais anunciar. Acreditava que, algum dia, findaria o drama de professores certos trabalhando de modo errado. E esse dia chegou.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha ESCOLA (CCXXXVIII)

Diamantina, 4 de outubro de 2040

Quando já estávamos a menos de meio ano do Dia de Carnaval, as escolas de samba brasileiras decidiram adiar o tradicional desfile. O bom senso e o respeito pela vida prevaleceram nessa tomada de decisão. Confirmamos algo que já se sabia: as escolas brasileiras mais bem organizadas eram as escolas de samba. Nelas, havia espírito de corpo e criatividade. Talvez o espírito da Dona Ivone Lara, Diva do Samba e enfermeira do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, tivesse inspirado a decisão. Ela, que, ao lado de Nise da Silveira, foi mestra no tratamento psiquiátrico dos brasileiros, humanizando tratamentos, curando através da música, levando o bloco de carnaval Loucura Suburbana a desfilar pelas ruas vizinhas ao hospital. O meu amigo Vítor, que o diga!

Fevereiro ainda vinha longe, o mundo contabilizava um milhão de mortos pela covid-19 e os foliões do Panamá imitavam o Brasil, anunciando a suspensão do Carnaval. Mas, no Brasil das escolas particulares, o entrudo fora antecipado para setembro e decorria mascarado de falsidade e tristeza.

Antes desse fatídico “regresso”, professores denunciavam casos de aulas on-line dirigidas a trezentos alunos. Tinha sido inventada uma nova modalidade de ensinagem: o “ensino remoto por atacado”. Uma aluna de engenharia dizia que o número de alunos variava de acordo com a aula:

“Não sei quantas pessoas tem na chamada, mas assistindo aula tem 250 de segunda-feira, que é a aula mais lotada. Outros alunos da minha sala não conseguem entrar. Aparece um aviso de que a sala está lotada. O sistema fica pesado e cai, se você entra muito em cima. Na última aula, minha professora ficou uns quarenta minutos só chamando as turmas”.

Numa universidade, cerca de quinhentos docentes foram demitidos no primeiro semestre de 2020. A redução das horas de trabalho era um dos aspectos de um movimento do ensino superior privado, que um sindicalista classificou de “imoral, mas legal”. Professores ficavam a saber da sua demissão, quando mensagens de pop-up surgiam na tela do computador. Um docente acreditava vir a ser demitido como retaliação por ter protestado com coordenadores em grupos de WhatsApp e avisado alunos da disciplina:

“Os alunos ficaram três semanas sem minhas aulas e eles colocaram um professor de outra área, que não sabia o que fazer”. 

A pandemia produzia estragos, mas o instrucionismo universitário causava prejuízo maior. Docentes de universidades privadas relatavam precarização e depressão, referindo-se à redução das suas horas de trabalho:

“A minha angústia e ansiedade aumentaram drasticamente, A palavra que melhor define meu momento é desespero. A redução torna o meu sustento inviável, visto que minha única fonte de renda é a universidade. É cruel!”

Infelizmente, estes professores não se apercebiam de que estavam colhendo o que haviam semeado, era demitido à distância quem fazia ensinagem à distância. Professores de dar aula eram trocados por robôs. Sem que os alunos soubessem, houve uso de robôs no lugar de professores para correções de atividades. O instrucionismo assumia a sua máxima expressão economicista.

Que tempos eram aqueles! No “superior” feudal, reinava uma vassalagem opressora, a sobredeterminação da burocracia e da finança e um normativismo ignorante. Como diria o Ruy, “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXVII)

Porto Velho, 3 de outubro de 2040

Nos idos de setenta, coordenei um programa de formação continuada de professores, programa ministerial com vista à introdução dos novos programas para o ensino primário (assim se chamava o fundamental). Mais por intuição do que por referência a um quadro teórico, fizemos do primeiro momento um encontro de escuta. Entre dramas e lamentos, os professores se queixaram do preço dos livros, que gostariam de ler: da Montessori, do Piaget…

Passei a trabalhar, fora de tempo letivo com mais cinco professores. Nos fins-de-tarde de um mês de outubro, procedemos a um levantamento de recursos, tendo encontrado uma “Biblioteca Pedagógica” escondida num anexo da secretaria de educação. Jamais havia sido utilizada pelos professores.

Retirado o pó, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de requisições era intenso. E, em novembro, era publicado o primeiro número do “Projeto”, boletim do recém criado “Centro de Documentação Pedagógica”. O texto de abertura tinha um título sugestivo: “O que foi e será a formação continuada dos professores”.

Os boletins seguintes davam notícias de inúmeros projetos, encontros, exposições, estudos… Inusitadamente, a Biblioteca Pedagógica já não conseguia satisfazer todos os pedidos de livros que nos chegavam. Entretanto, sem um enquadramento jurídico que salvaguardasse as estruturas criadas, sem um estatuto definido, a administração educacional tudo fez para destruir algo que pressentiam fugir ao seu controlo. A equipe em que me integrava resistiu até onde pôde. Depois, pediu demissão. A Biblioteca foi conferida, fechada, e voltou para a arrecadação de onde viera.

Volvida uma década, era criado o “Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo”. A equipa eleita pelos professores da região voltava a integrar alguns dos que, no hiato entre as duas iniciativas do ministério, haviam resistido à degradação pedagógica das escolas.

Coube-me, de novo, o papel de coordenar o programa. Fui encontrar a Biblioteca Pedagógica tal qual a havia deixado. Retirado o pó, verificámos que apenas faltavam os dicionários. E não havia qualquer registo de requisição no decurso de uma década.

Precisamos de algum tempo para recuperar dessa ingrata surpresa e voltar a acreditar. Concluído mais um programa de formação, voltei a ser apenas o professor de chão de escola, que sempre fui. Mas, dessa feita, a Biblioteca Pedagógica não voltou para os cafundós dos anexos da secretaria. Ao cabo de muitos meses de conflito com a burocracia, a recém criada Associação PROF, constituída por professores que haviam sobrevivido aos maus-tratos de quase duas décadas, tomava a seu cargo a gestão da Biblioteca.

A Literatura preserva a nossa humanidade. Mas, em tempos sombrios – que, felizmente, já lá vão! – clássicos como ”Macunaíma” eram considerados subversivos. Um governo de estado colocou essa obra-prima da literatura num inquisitorial Index Librorum Prohibitorum. E Rubem Alves, Machado de Assis, Franz Kafka, ou Euclides da Cunha eram autores de livros considerados “inadequados às crianças e adolescentes”.

Talvez os funcionários não tenham lido os livros. Ou, talvez, apenas tivessem lido resumos, na escola da sala de aula. Ou, quiçá, apenas tivessem lido as orelhas dos livros e os títulos.

Tamanha barbárie talvez tivesse ocorrido porque, na maioria das escolas brasileiras, os professores não dispusessem de tempo para ler os excelentes livros de uma Biblioteca Pedagógica, que o MEC lá pusera, no início deste século. Talvez…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXVI)

Quatro Barras, 2 de outubro de 2040

Em meados da década de noventa, logo após a Conferência de Salamanca, publiquei um livro que tinha por título “PATHWAYS TO INCLUSION – A Guide to Staff Development” (foi publicado em Manchester). Voltando a Portugal, fui formador de professores que tentavam fazer a transição entre a escola excludente e a escola da inclusão. No Brasil, colaborei com a Fundação Síndrome de Down. Ajudei a minha amiga Darclé a cuidar do Rafa. Acompanhei muitas famílias na busca de uma escola que respondesse às “especiais necessidades” dos seus filhos.

Em 2020, com pompa e circunstância, foi apresentada uma nova lei da “inclusão”: “Política Nacional de Educação Especial, Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Logo nos primeiros artigos se lê que “escolas especializadas – instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos (…)”. Contemplar, logo “à partida” que havia pessoas que não beneficiavam das escolas regulares, era abrir portas para a… exclusão.

Quando se referia aos deficientes, o ministério designava-os por “público-alvo”, quando deveria tratá-los como sujeitos-cidadãos. Aliás, eram frequentes no discurso ministerial sinistras expressões, como “recursos humanos”, porque a linguagem produzia e reproduzia uma determinada cultura. Sub-repticiamente, se induzia as famílias das crianças “diferentes” à “sevirologia” – “Família, se vire!” – mas, o dilema não estava em escolher uma escola comum, particular ou especial. Não havia escolha, mas falta dela. Faltava o cumprimento de uma política de direitos humanos, que a todos desse condições de ser e de aprender. A nova lei era velha, era apenas mais um retrocesso normativo. Nada acrescentava e, sob pretexto do direito à escolha, segregava.

Após publicar o meu livrinho, mantive o diálogo com educadores conscientes, que sabiam que na escola instrucionista, na escola da aula, nunca haveria condições de assegurar uma efetiva inclusão. Professores brasileiros, de visita à Ponte, questionavam:

A Escola da Ponte vem fazendo um trabalho de grande relevância, isto é indiscutível. Receber os alunos rejeitados pelas suas escolas, abraçá-los com suas dificuldades, agrupá-los, respeitando o seu ritmo, trazer às famílias à escola, deixar que construam o seu saber focando questões de seu interesse, sem, contudo, deixar de construir as regras da conviver. Mas, em um dos livros do Pacheco, ele afirma que a Ponte ainda não pode ser considerada uma escola inclusiva, mas uma escola que tende à inclusão, fundamentada no trabalho com a heterogeneidade…”

Ao que respondi:

“Perdoa o tom que utilizo para concordar contigo. Mas apetece-me dizer que, infelizmente, a “inclusão” é um termo fabricado em Salamanca, mas que até hoje somente serviu para enfeitar teses de doutoramento. Como referes, há muitas “pessoas conceituadas” a produzir teoria inútil (no MEC, nas universidades e em outras torres bizantinas) e há muito faz-de-conta “inclusivo” nas escolas. Devo acrescentar que também há gente séria nas universidades e no MEC. Não generalizemos. As escolas terão de reconfigurar as suas práticas, para que a inclusão (que já é um termo excludente…) aconteça.

Queridos netos, como vedes, apenas adentrei o assunto. Se não for para vós uma maçada, continuarei a falar-vos de inclusão escolar e social, nas próximas cartinhas.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXV)

Itanhandú, 1 de outubro de 2040

Quando jovem professor, repetiram aos meus ouvidos a estafada frase “sempre assim foi e sempre assim será”. As realidades que vivenciei no início do exercício da profissão compeliram-me à aceitação de tão antiga sentença. Porém, pouco a pouco, entre desilusões e esperanças, fui testemunhando transformações em seres humanos, que ajudaram a me refazer e, concomitantemente, a questionar a velha máxima.

Meio século decorrido, já podia afirmar que, acaso sempre tivesse “sido assim”, assim não poderia continuar a ser. Acompanhei processos de ruptura com velhas crenças e práticas. Vi emergir culturas em tudo diversas daquela que estávamos condenados a reproduzir. Hoje, eu sei que o desenvolvimento pessoal e social dos educadores não é algo utópico. Será, talvez, mais um inédito viável freiriano.

Numa tarde de outono, por volta de 1976, uma “superiora hierárquica” em visita à Ponte, estava visivelmente exaltada:

“Por que razão não fazem planejamento na na sua escola, se todas as outras escolas o fazem?”

Expliquei à exaltada “superiora” que outro tipo de planejamento era feito. Não aquele que era comum “em todas as escolas”. Repetidamente, lhe fiz recordar que não advogávamos o improviso, que considerávamos a escola como lugar de aprendizagem significativa, de produção de conhecimento.

A “superiora” reagiu, num brado agressivo, que augurava grossa discussão, pelo que tentei reatar o diálogo, num registro de afabilidade:

“Vamos conversar? Até poderemos fazer aquilo que a senhora manda. Mas precisaremos que nos explique por que teremos de fazer desse modo. Se a senhora nos explicar…”

Foi peremptória:

“Eu acho que deve haver planejamento! E pronto! Sempre foi assim!”

Respirei fundo, contei até dez e reiterei o convite:

“Se a senhora nos explicar por que acha que deve ser assim, até poderemos rever aquilo em que acreditamos e mudar o modo como o fazemos. Mas peço que fundamente a sua opinião.

Aquele era mais um diálogo de surdos. Gorou-se a possibilidade de nos entendermos, porque a “superiora” se quedou furiosa e muda. Estava possuída de forte convicção e não se permitia testar as nossas convicções, escutando discordâncias. A conversa ficou por aí:

“Não se esqueça, senhor professor de que sou sua “superiora hierárquica”!”

“Não nos esqueceremos. E, com todo o respeito que temos pela hierarquia, não faremos aquilo que a senhora manda.”

Prefiro não vos contar, queridos netos, o que a seguir, se passou…

Os professores eram suficientemente inteligentes para compreender que cada ser humano era único, irrepetível, dotado de ritmo próprio e de diferentes estilos de aprendizagem e que o planejamento de aula não contemplava a diversidade. Por que continuavam agindo como se não compreendessem, planejando para um “aluno médio”, que não existia? Por que impediam que o aluno objeto se assumisse como sujeito de aprendizagem?

Antes da chegada das novas tecnologias, já sabíamos que determinar o modo de existir de outrem era tarefa de computador, não de professor. A única certeza que poderíamos ter, quando trabalhávamos com gente concreta – e não com a abstração “turma” – era a de que tudo era imprevisível. Uma das competências do professor seria a da gestão da imprevisibilidade. A predeterminação de conteúdo, tempo e espaço de ensinagem era adequada para autómatos, não para seres humanos.

Não nos demos mal com a nossa opção. Ensinávamos o aluno a planejar-se, para que se tornasse capaz de planejar a sua existência. E muitos projetos de vida de seres autônomos e solidários foram concretizados.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXXXIV)

Icaraí de Minas, 30 de setembro de 2040

Netos queridos, trago-vos duas estórias, que nos falam de amor e de…cabelo.

Nos idos de setenta, aquela era uma escola de deserdados. Longe dela, recordo o momento em que o projeto tomou novos e irreversíveis rumos. Muitos alunos chegavam à escola sujos, com fome ou com excesso de vinho, com a cabeça cheia de preocupações e de… piolhos.

O meu filho André foi um dos primeiros alunos oriundos de famílias ditas “remediadas”. Outros foram chegando, porque muitos pais começaram a ver aquela escola como o lugar apropriado para a educação dos seus filhos. O André recebeu a sua dose de parasitas capilares, num tempo em que aquela escola pública deixou de ser uma escola dos pobres, para ser uma escola de todos.

Experimentamos vários tratamentos, retiramos milhares de lêndeas do couro cabeludo, enchemos de pó as cabecinhas dos nossos alunos, até à chegada de alunos provindos de famílias de maiores recursos.

Se algumas crianças traziam a cabeça cheia de piolhos, outras traziam-na cheia de gel. Esse produto estava na moda, nos idos de setenta. O gel grudava no cabelo, dando-lhe um aspeto reluzente. No trabalho de grupo, os parasitas tinham livre circulação e seguiam o seu instinto, passando de cabeça para cabeça. Era, porém, uma via suicida, pois os bichinhos acabavam presos no gel, liquidados.

Os atalhos tradicionais nem sempre nos conduzem a destinos predeterminados e o trabalho de pares, que havíamos introduzido no quotidiano da escola havia provado essa tese. Os piolhos que o digam! Juntou-se o gel com o piolho e o piolho com gel, num capilar diálogo entre diferentes estatutos sociais, diferentes culturas, tornando o ser humano… mais humano. Esse desiderato poderia ser uma utopia? Talvez não, como iremos ver.

Há quem creia que o bullying foi inventado neste século, mas ele era cruel realidade já em meados do século XX. Muitas escolas eram espaços de desumanização. O Rui sofria de leucemia. A quimioterapia fizera desaparecer todo o seu cabelo. Usava um boné, para disfarçar a calvície. Brincando no pátio da escola, o boné voou, caiu no chão. Logo sentiu o escárnio de colegas:

“Careca feio! Careca feio!”

Tanto bastou para não querer voltar àquela escola. Meses a fio, as sessões de tratamento tinham operado um enorme desgaste emocional. E, a partir desse dia, nem sequer saía do seu quarto, chorava, dizia querer morrer.

A mãe do Rui buscou ajuda na nossa escola e foi ajudada. Diariamente, uma professora passou a visitar o Rui, no seu quarto, conversando, devolvendo-lhe vontade de viver… e de aprender. Até ao dia em que ele quis conhecer de perto a nossa escola e conviver com os seus colegas. Até então, apenas deles ouvira falar a professora. Chegou, rosto triste, fechado. Estudou no seu grupo de projeto. Brincou, correu e o boné voou, caiu ao chão.

Apressou-se a apanhar o protetor adereço, olhando em redor, receoso da reação dos seus colegas de brincadeira. Não enfrentou novo coro de “Careca feio! Careca feio!” e a brincadeira continuou. No dia seguinte, quando chegou à escola, viu que todos os seus amigos tinham rapado o cabelo. Estavam tão carecas como ele.

A leucemia é uma doença cruel. O Rui passou por um transplante de medula, que foi rejeitado. Foi definhando, amenizando as dores com a alegria do saber cuidar dos seus companheiros. Faleceu rodeado do carinho, que lhe votavam seus colegas e professores. Passou a viver na memória de quem lhe quis bem, porque um ser humano não morre quando o coração para. Morremos subitamente, quando deixamos de amar. Morremos lentamente, quando deixamos de ser amados.

 

Por: José Pacheco

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