Itaguara, 30 de outubro de 2040

Nos idos de vinte, a escola permanecia estagnada, imersa num pântano de absurdos. Arcaboiços da escola da modernidade tinham perdido sentido e legitimidade. Lamentavelmente, o discurso acadêmico insistia no recurso a conceitos e práticas fósseis, ainda que assumindo um “novo visual”. Nos idos de vinte, estava em voga o chamado “ensino híbrido”.

Explorando a ingenuidade pedagógica da “sociedade líquida”, empresas assaltavam o mercado da educação com o novo “produto”. Iludindo professores de boa-fé, fundações se propunham formatá-los no “ensino híbrido”. As aclamadas “boas experiências” de educação híbrida eram caricaturas de práticas centenárias ornamentadas com computadores e Internet.

Não poderia faltar a famigerada “sala de aula invertida”. Dela se dizia “colocar o aluno como protagonista”. Grosseira mentira! Era o professor quem “sugeria” (belo eufemismo!) o conteúdo a consumir. Quanto muito, havia uma ou outra busca feita pelo aluno. Em sala de aula (instrucionista!), alunos e professor discutiam em grupo. Celestin Freinet havia feito o mesmo – e fora mais além! – utilizando ficheiros autocorretivos, no início da década de vinte… do século XX. Em 2020, era ridículo chamar “inovação” à aula invertida.

A prática “híbrida” do modelo “Flex” – como era chamado – consistia em fornecer ao aluno “uma série de atividades a serem realizadas on-line”. Os professores estariam à disposição do aluno, para tirar dúvidas. Isso havíamos feito na Ponte, já nos idos de setenta, num tempo em que ainda não havia computadores. E de modo bem mais elaborado, porque as “atividades” não eram concebidas pelo professor e impostas aos alunos; eram construídas com os alunos, segundo a velha tradição escolanovista.

Outro modelo indevidamente designado de inovador era o “laboratório rotacional”. Os híbridos” eram hábeis a criar termos de belo efeito, criativos apenas no discurso. Em que consistia o “laboratório”? Num “giro dos alunos em estações, por diferentes modalidades de aprendizado”. Skinerianamente, em cada estação, poderia ser utilizado um recurso diferente.

Aqui cabe uma pertinente observação: não se tratava de “aprendizado”, mas de “ensinado”, dado que as “estações” eram planejadas pelos professores, o número de estações e o tempo em cada estação eram determinados pelos professores. Cadê o “sujeito de aprendizagem”? Cadê a “inovação”?

Os “híbridos” do século XXI apropriavam-se do discurso escolanovista, para maquiar o instrucionismo de entre a primeira e a segunda revolução industrial, em práticas do tempo da máquina a vapor. A escola “híbrida” continuava tão obsoleta como no tempo em que o telégrafo dera lugar ao telefone.

Com a descoberta do computador, a segunda revolução industrial emergiu, para logo dar lugar a uma terceira, aquela que surgiu com a internet e a automação. Foram criadas empresas fornecedoras de sistemas de ensino, quando deveríamos já dispor de sistemas de aprendizagem. As escolas passaram a adotar a lousa digital, fez-se “ensino à distância”, quando já se poderia fazer aprendizagem na proximidade. Foram criadas redes de ensinagem, quando seria necessário criar redes de aprendizagem.

No início deste século, hábeis mercadores mantinham um cadáver adiado: o da escola instrucionista. Enriqueciam, vendendo subprodutos educacionais a consumidores de currículo, que haviam sido formatados pela escola da aula. Colocavam nesses produtos o rótulo de “práticas inovadoras”. Como se no contexto do instrucionismo pudesse acontecer… inovação.

 

 

Por: José Pacheco