Ribeirão das Neves, 1 de novembro de 2040

No início de novembro de há vinte anos, um novo capítulo se abria na saga da recriação da escola. Uma nova construção social de educação nascia no sul e tomava forma por mediação de educadores éticos, confirmando a existência de seres que o Brecht diria serem indispensáveis.

Educadores brasileiros libertavam-se da síndrome do vira-lata. Só faltava libertar do ostracismo a obra de pedagogos brasileiros de nomeada. Era escasso o conhecimento da extraordinária obra de Lauro Lima, que, na década de 1960, fez a reinterpretação brasileira do pensamento de Piaget. Urgia redescobrir Anísio Teixeira, que, já nos anos trinta, defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. Faltava rever as teses de Agostinho da Silva, companheiro de utopias de Darcy Ribeiro. Era preciso recuperar a obra, na prática, a obra de Paulo Freire, tão injustamente maltratado em tempos sombrios.

Uma nova geração de educadores surgia, uma ruptura paradigmática se anunciava, que não poderia prescindir do património que ignorados pedagogos nos legaram. Mas, se os professores eram formados em métodos passivos, poder-se-ia esperar que desenvolvessem métodos ativos? Se foram formatados numa inútil acumulação cognitiva, iriam adoptar o modelo transmissivo, perpetuar um modelo epistemológico falido.

Nas minhas deambulações pelo Brasil das escolas, encontrava muitos anónimos educadores, que não desistiam do sonho das suas vidas e teciam uma rede de fraternidade, fonte de esperança, num Brasil condenado a acreditar que, pela Educação, iria chegar ao exercício de uma cidadania plena. Com eles aprendi a amar este país e a respeitar e ajudar os educadores que o refaziam. Eles me instigavam a penetrar mais fundo em contraditórias realidades.

Poderia citar uma lista interminável de escolas onde a reelaboração cultural acontecia, onde as concepções e práticas educacionais, discretamente, evoluíam. Porém, em muitos outros lugares onde se deveria aprender, os vícios instrucionistas condenavam milhões de alunos à evasão, ao abandono intelectual… ao suicídio.

No último reduto da transmissão de informação, professores auleiros eram já uma espécie em vias de extinção. Por que resistiriam à mudança? Regressando a metáforas, vos direi porquê.

O sistema mais antigo de classificação de seres vivos que se conhece deve-se ao filósofo grego Aristóteles, que classificou e descreveu todos os organismos vivos, no seu tempo, conhecidos. Conta-se que Aristóteles deixou registrado ter a mosca doméstica oito patas.

Essa espécie era um dos insetos mais comuns, presença habitual nos mosteiros da Idade Média, onde, ao longo de muitos séculos, monges copistas reproduziram a aristotélica asserção. Até que alguém se atreveu a desafiar a autoridade científica de Aristóteles. Um copista suspendeu a cópia e foi procurar uma mosca. Apanhada a mosca, contou-lhe as patas. Aventou a hipótese de o animal ter sido amputado de duas patas. Quiçá, teria a mosca seis patas?

Seguindo regras básicas dos procedimentos que produzem o conhecimento científico, caçou mais dois insetos. E confirmou a hipótese levantada na captura da primeira mosca. Aristóteles se enganara. E o erro havia sido replicado por séculos de cópia do original. Voltou para a mesa, alterou a iluminura e escreveu: “a díptero braquícero  da família Muscidae tem seis patas”.

Quando chegará o tempo em que os protagonistas do absurdo modelo de escola instrucionista se decidirão a contar as patas de uma mosca?

Por: José Pacheco