Novo Hamburgo, 27 de dezembro de 2040

A Clarice dizia-nos que aquilo “que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo”. Talvez por isso, em plena ditadura, o Mestre Agostinho recusou assinar um documento, que os esbirros da época exigiam de qualquer candidato ao exercício da profissão de professor. Esse e outros corajosos gestos valeram-lhe o exílio no Brasil (o que acabou sendo benéfico para o Brasil).

Um ativista indiano entrou em greve de fome e disse estar disposto a morrer contra a corrupção. E, no Brasil, a OAB criou um site: “Observatório da Corrupção”. Perante a ética deturpada dos idos de vinte e a inversão de valores como não há memória, esses sinais diziam-nos que nem tudo estava perdido.

Na contramão desses esperançosos gestos, o correspondente no Brasil do jornal “El País” escrevia:

Que país é este que junta milhões numa marcha gay, outros milhões numa marcha evangélica, muitas centenas numa marcha a favor da maconha, mas que não se mobiliza contra a corrupção?”

Quando o seu time perdia, o brasileiro reclamava, ia ao aeroporto, de madrugada, para xingar os atletas. Por que não se exigia a reforma política, o acabar de aposentadorias milionárias, a prisão de políticos corruptos? Vivíamos numa sociedade enferma de uma total inversão de valores. Quase não fazia sentido distinguir honestidade e desonestidade, valia tudo na senda de um “vencer na vida” que tudo permitia, deturpava, corrompia. O medo se instalara na sociedade brasileira. O medo provocava o esquecimento, como se jamais algo hediondo tivesse acontecido.

A palavra ética deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma pessoa), representa um conjunto de valores morais e princípios da conduta humana. Sempre que me perguntavam qual fora o maior obstáculo à concretização do projeto da Escola da Ponte, eu respondia: o maior obstáculo fui eu. Fui eu, enquanto não me indignei, enquanto não agi, para assegurar o saber e a felicidade aos meus alunos.

Sem o saber, nos idos de setenta, eu adotara o princípio do Darcy: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Num agir não-solitário, poderia mudar algo. Ainda que alguém acreditasse que o esforço de um só nada valia, era preciso agir. Mesmo que o medo nos assaltasse, era preciso reagir. Sem a coragem da indignação, a sabedoria é estéril 

Nos idos de vinte, dezenas de projetos surgiram, a educação do século XXI chegava (enfim!) ao Brasil e a Portugal. Em breve, vos contarei a estória da minha ida a Portugal, do meu regresso a Escola da Ponte. Viajei na companhia de educadores brasileiros. Levamos na bagagem utopias concretizadas nas terras do sul, para que fossem inspiração de utopias realizáveis nas terras do norte. Através de uma nova educação, se provou que a corrupção, o consumismo, o negacionismo, o racismo e outros ismos não eram fatalidades.

“Tropa de Elite 2” foi um dos meus filmes do Natal de 2020. Nada melhor, para escapar ao frenesim neurótico dos shoppings, do que mergulhar num caos de violência e morte, assistir às tentativas vãs de um Capitão Nascimento idealista, que se apercebia de que a guerra que travava não era dos bons contra os maus, que o mundo não era a preto e branco.

O filme terminava com a câmara de filmar sobrevoando Brasília. E o público irrompia numa entusiástica ovação. Depois, toda aquela gente, que aplaudira um herói entregue às suas lutas contra policiais e políticos corruptos, voltava para as suas casas, para a segurança de um emprego, para vidinhas feitas de novelas e big brother. Onde acabava a realidade? Onde começava a ficção?

Por: José Pacheco