São Tomé das Letras, 3 de janeiro de 2041

Vai para uns trinta anos, ouvi o Perrenoud falar sobre o tema: “Os alunos são diferentes – Porque tratá-los como se fossem semelhantes?”. Perante uma plateia atenta, o eminente teórico repetia um discurso semelhante àquele que eu escutara na década de sessenta, em outros congressos e seminários dirigidos a plateias igualmente atentas.

Apesar de tantos congressos, inexplicavelmente, as práticas mantinham-se idênticas àquelas que eu conhecera na década de sessenta. Nos livros que eu lia, nas palestras que escutava, era quase consensual a crítica do modelo epistemológico que predominava nas escolas desde há séculos. A crença na transmissão linear de saberes sobrevivia na agonia do modelo de escola que ainda tínhamos nesse tempo. Se o modelo epistemológico falira, restava saber por que razão, ainda que moribundo, se mantinha o modelo organizacional que o suportava. Se havia muitos modos de fazer escola, tinham sido experimentados? Se havia disponível tanta teoria crítica, por que ainda havia sala de aula, nos idos de vinte?

Já Bachelard dissera que o ato de conhecer se dava contra um conhecimento anterior e que seria impossível anular, de um só golpe, todos os conhecimentos habituais. Detectávamos causas da inércia às quais dávamos o nome de obstáculos epistemológicos. O discurso continuava a contrariar a prática do discurso – para um pensamento único, vigorava um modelo único.

A mesmice das teorias era da mesma natureza da mesmice das práticas predominantes em aulas de saliva e power point. A síndrome do pensamento único não questionava uma normose, que tendia a perenizar rituais sem sentido.

Há trinta ou quarenta anos atrás, foram muitas as teses que elegeram por objeto de estudo os obstáculos à mudança. Os doutorados desse tempo leccionavam como os doutorados de há cem anos. Obstáculos epistemológicos os impediam de agir em coerência com as conclusões das suas teses. Dissertavam sobre diversidade perante turmas que supunham ser “homogêneas”; ensinavam métodos ativos a alunos inativos; criam fazer “educação inclusiva”, quando ensinam a todos como se de um só se tratasse.

E eu me quedava perplexo face a teóricos que dissertavam sobre mediação sem jamais a praticarem, ficava confuso perante “construtivistas” cujas práticas eram a negação do construtivismo. Esses personagens do drama educacional eram como Mister Jekyll na teoria e Mister Hyde nas práticas.

Creio que começo a entender o êxito comercial dos livros de autoajuda pedagógica, best-sellers desse tempo.  Presumia-se que se pudesse ajudar professores a melhorar as suas aulas, quando o necessário seria acabar com elas.

Após alguns anos de experimentalismo reformista e de tentativas de psicologização das escolas, tínhamos nas escolas mais do mesmo. Gilles Ferry buscava explicar o drama, contextualizando-o no campo da formação de professores: Existia uma analogia estrutural entre o vínculo da formação e o vínculo da prática profissional que essa formação produzia, uma isomorfia. Resultava dessa isomorfia que, qualquer que fosse o modelo adoptado pelos formadores, ele tendia a impor-se como modelo de referência dos “formados”. Os efeitos de estruturação e de impregnação produzidos pelo dispositivo de formação eram mais fortes do que o discurso.

Não era necessário inventar novos conceitos, rebatizar conceitos antigos. Necessária, como vos disse na cartinha do primeiro de janeiro, era a reinvenção das práticas. Então, sobre a reinvenção de algumas práticas vos falarei.

 

Por: José Pacheco