Oliveira, 4 de janeiro de 2041

Quando me perguntavam quais foram as “inspirações” para conceber o projeto da Ponte, eu respondia que, antes de conhecer o Piaget e o Freire, três extraordinários seres humanos me influenciaram: Francisco de Assis, Krishnamurti e… o Padre Américo.

Apesar de ser muito jovem quando o conheci, recordo perfeitamente a figura desse padre medicante. Batina velha, rosto iluminado por uma estranha candura. Nos anos trinta do século passado, o Padre Américo  recolhia proventos para a “Sopa dos Pobres”. Em 1948, abriu a primeira Casa do Gaiato, onde acolhia crianças da rua, jovens abandonados. No ano em que o vosso avô nasceu, ele deu início ao projeto de construção das primeiras casas do “Património dos Pobres”. Mas os gastos com as suas obras eram avultados, e Américo passava grande parte do tempo calcorreando a cidade, pedindo ajuda.

Numa tarde de 1956, passou pela minha rua, pedindo esmola. Um merceeiro entregou-lhe um envelope contendo exatamente a quantia que Américo precisava depositar naquele dia. Porém, já passava das três e meia da tarde, o banco fecharia às quatro, e o velho Padre Américo não conseguiria correr de modo a chegar ao banco a tempo de fazer o depósito.

Um jovem entrou na mercearia. Américo perguntou-lhe se lhe poderia fazer o favor de ir ao banco e depositar o dinheiro. Escreveu os dados da conta no envelope, entregou-o ao moço e disse:

Vai, meu filho! Corre! Tenta chegar ao banco a tempo de entregar esse dinheiro.

O jovem saiu correndo. E o merceeiro comentou:

“Padre, esse jovem é o maior ladrão deste bairro. Você foi roubado”.

“Não fui, não, meu amigo. Eu sei que esse jovem irá fazer o depósito”.

Decorrida uma dúzia de anos, já adulto, esse jovem era o diretor da “Obra da Rua” e contava o episódio, que havia protagonizado:

“Quando peguei no envelope, pensei “Este padre é um trouxa”. Mas, alguma coisa me impelia para o banco. Apressei o passo, corri, pensando: “O que se passa comigo? Não consegui parar. Alguma “coisa” me empurrava. Cheguei ao banco a tempo de fazer o depósito”. 

No Maranhão de seiscentos, no auge da luta dos jesuítas contra a escravização dos índios, outro padre, de nome Vieira, embarcava para Portugal, em busca de apoio para a sua missão. Num dos seus “sermões”, assim falou:

Vós, diz Cristo, sois o sal da terra. E chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção”.

Um professor foi encarregado de vigiar uma prova. O “manual do aplicador” instruía-o a colocar os alunos a uma “distância prudente” uns dos outros. Inteligente, como qualquer professor, apercebeu-se de que, mesmo permanecendo em silêncio, dentro da sala, o não-verbal falaria mais alto do que o verbal. Agiria como quem considerasse estar na presença de seres potencialmente desonestos. Com tal procedimento, estaria a praticar o chamado “currículo oculto”, a transmitir valores negativos aos alunos.

Diz a sabedoria popular que cesteiro que faz um cesto faz um cento. Tínhamos razões para nos preocuparmos com a degenerescência da honestidade em pessoas encarregadas de educar as novas gerações. Mas, nos corrompidos idos de vinte, tínhamos mais razões para acreditar que, pelo exemplo, poderíamos operar “milagres”.

O professor desta estória ousou transgredir. Disse aos alunos que se sentassem onde quisessem. Distribuiu as “provas”. Olhou os jovens, um por um, com olhos de compaixão. Depois, saiu da sala.

Não constituiu surpresa que, nessa prova, nenhum aluno tivesse “colado”. Acreditai, queridos netos que isso aconteceu. Eu conheço bem esse professor.

 

Por: José Pacheco