Alterosa, 6 de janeiro de 2041

Voltemos à Filosofia. Não para filosofar, mas para vos narrar um episódio exemplar.

Nos cursos de Pedagogia de antanho, afirmava-se o primado da autonomia, do protagonismo do aluno. “Ensinava-se” propostas escolanovistas – Montessori, Freinet, Steiner, Férrière, Decroly, Dewey… Anísio –, porém, havia um sub-reptício ressentimento relativamente à escola que havia posto em prática as propostas desses autores. Me contaram que uma professora dissera aos seus alunos do curso de Pedagogia:

”Está provado cientificamente que o modelo da Escola da Ponte dá maus resultados”. 

Essa professora nada conhecia do que nessa escola acontecera. Não havia lido teses (cientificamente comprovadas!) produzidas sobre essa escola. Não lera, certamente, as conclusões de avaliações externas, mas ousava caluniar. A ética andava ausente desses lugares mal frequentados. Mas, vamos ao episódio…

Sempre gostei de estudar. E, quando lia no cardápio de um curso universitário matéria que me interessasse aprender, candidatava-me ao curso e frequentava as disciplinas desejadas.

Não concluía cursos, porque não precisava de diploma. Assim, fui estudar inglês e antropologia no curso de Relações internacionais. Fui aprender Etnologia no curso de Arqueologia, Estudos Culturais no curso de Línguas e Literaturas Modernas. Psicologia, Sociologia, Etologia e muitas outras disciplinas do curso de Ciências de Educação. Talvez vos conte a saga vivida neste curso.

Apeteceu-me estudar Filosofia e me matriculei numa escola de Ensino Médio. Como ireis ver, a docente dessa disciplina não entendera que ser filósofo era uma coisa, ser professor de filosofia era outra coisa… ser licenciado ou doutorado em Filosofia não era condição bastante para se ser professor de Filosofia. E o mesmo deveria valer para um engenheiro, ou um advogado, que ingressasse na nobre profissão.

À entrada para a primeira aula, um jovem avisou-me:

“Eu sei que o senhor trabalha numa escola diferente. Mas, aqui, não pode falar, nem interromper a aula da professora”.

Fiz, exatamente, o contrário da recomendação. Ainda a aula ia no início e já eu erguia o braço, pedindo a palavra. Esperei, esperei, até que a professora me dirigiu a palavra:

“Diga! Quer ir lá fora, é?”

“Não, minha senhora” – respondi – “Quero que a senhora me explique o que quis dizer com a expressão…”

Interrompeu-me a fala. E disse:

“Fique sabendo que, aqui, é bico fechado. Nunca mais me interrompa a aula! Ouviu?”

Acabada a aula, fui até à Biblioteca e à Sala dos Professores. Já adulto, creio que os professores, que por lá estavam, supuseram que eu fosse um colega e permitiram que consultasse a programação das aulas da professora de Filosofia. Em casa, anotei num papel algumas frases do Ortega & Gasset, que seria o assunto da aula do dia seguinte. E voltei a erguer o braço…

“Outra vez? Eu não lhe disse que não gosto de ser interrompida?”

“Eu sei, minha senhora, mas só queria fazer um comentário a algo que a senhora disse”.

“Um comentário?! – gargalhou – “Diga lá! Deve ser alguma besteira…”

Estrábico que sou, com o olho direito olhando a professora e o esquerdo fixado num papel, li uma das frases do Ortega & Gasset. A reação não se fez esperar. Ainda não havia concluído a leitura, fui interrompido:

“O que você disse é uma grande besteira. Mais valia estar calado!”

“Não fui eu quem disse a frase. Foi Ortega e Gasset. Está no livro didático” – repliquei – “A senhora acha que o filósofo dizia besteiras?”

O que, a seguir, aconteceu talvez vos conte em próxima cartinha. Mas já vos digo que não foi edificante…

 

Por: José Pacheco