Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DLVII)

Vila Nova de Poiares, 11 de junho de 2041

O étimo latino “cultura“ foi inventado para designar cuidados com vegetais. Só mais tarde derivou para outras significações. Para alguns autores, poderia subdividir-se em duas dimensões: enquanto realidade objetiva (produções culturais, trabalhos concretos) e enquanto realidade vivida (participação humana em função de modelos culturais). 

A chamada “cultura de massa”, de modelo industrial, acompanhou a “massificação” da Escola da Modernidade e culturalmente a condicionou, até por volta dos idos de vinte. E, quando os professores da Ponte ousaram reelaborar a sua cultura, começaram os questionamentos: 

“Qual foi o maior obstáculo que a Ponte enfrentou? Foi o ministério da educação? Os pais dos alunos?” 

Respondia que o maior obstáculo fora eu. Fui obstáculo, quando me assumi autossuficiente e me mostrei incapaz de identificar na tibieza de alguns professores as minhas próprias fraquezas. Fui obstáculo, quando não ousei divulgar confidências de professores, que me pediam para destapar a “caixa negra” da sala de aula. 

Muitas escolas eram como caixas negras. As salas de aula continuavam sendo cenário de mistérios por desvendar. Pouco ou nada transpirava dos redutos seguros das inseguranças. Pouco ou nada do que lá dentro acontecia extravasava para o domínio público. 

Havia nessas escolas professores conscientes do drama, que, ao longo de mais de trinta anos, me confidenciaram denúncias e me pediram que as divulgasse. Por que não o fariam eles próprios? Fácil era a explicação: se o maior aliado do professor era outro professor, o maior inimigo do professor era outro professor.

Por que não o fiz? Fácil é a resposta: cedo compreendi que, também nesse capítulo, a Ponte não estava sozinha. Os professores da Ponte eram feitos da mesma massa, dotados das mesmas virtudes e dos mesmos defeitos de quaisquer outros professores. Qualquer denúncia de humanas fraquezas em escolas alheias recairia sobre nós. Quem cospe para o ar… 

No tempo em que a Ponte acolhia professores “concursados”, o primeiro dia de aulas era uma “animação”. Os noviços saíam das salas e perguntavam: 

“Quando toca a campainha?”

“Não há campainha” – respondia eu. 

“Não há?… Mas… e pode? Então… e os horários?” 

“Também não há horários”. 

“Não há? E onde está o livro de ponto? Não consegui encontrá-lo”. 

“Não há livro de ponto”. 

Numa escola, onde pontificava o valor da autonomia, não fazia qualquer sentido a existência de mecanismos de controlo. Compreendêramos que, onde houvesse diretor para se fazer obedecer, horários de padrão único para cumprir, livros de ponto para assinar, faltas para justificar, não haveria professores autónomos. E, porque eram pessoas inteligentes, os novéis professores compreendiam e adaptavam-se à nova realidade. 

Testemunhei exemplos de elevado profissionalismo. Em contraponto, professores havia que, a pretexto de não haver livro de ponto, se a hora de entrada era às oito e trinta, chegavam às nove horas. Dificilmente corrigiam vícios sedimentados nas escolas por onde antes tinham passado, chegando pontualmente atrasados. E, porque não havia necessidade de justificar faltas, ausentavam-se, dias a fio, a pretexto de um qualquer tio materno ter morrido… pela quinta vez. 

Os quase setenta anos do bem-sucedido projeto da Ponte assentaram na reelaboração da cultura pessoal e profissional dos seus professores. Toda a mudança passa por aí. Se a pessoa não muda, como poderá mudar a escola? Dito de outro modo: onde não houvesse uma pessoa, seria possível encontrar um professor?

 

Por: José Pacheco

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