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Estórias da Velha Escola (XIV)

Vargem Grande Paulista, setembro de 2039,

E aqui estamos, vós em Portugal e o vosso avô já regressado aos brasis, para assistirmos ao desfecho do episódio narrado na missiva anterior.

A Licinha e as companheiras estavam quase a desistir. A praga do pai do Chico Melro – que era o opinion maker da aldeia – arrastava os restantes para uma conclusão lógica e em tudo oposta às intenções das professoras. Isto é, sem livro de leituras ou de fichas, as criancinhas nunca haviam de chegar a doutores. As novas professoras deveriam seguir o exemplo da Dona Ofélia, mestra de gerações, que nunca se esquecia de rezar as orações que encimavam as páginas do livro único de leituras e de mandar fazer leitura continuada, enquanto corrigia as lousas e as sebentas. Ela é que sabia. E todos naquela sala lhe haviam passado pelas mãos (em sentido literal, aliás…).

Quase vencidas pelo pai do Chico Melro, as professoras ainda esboçaram uma terceira tentativa. O derradeiro e rebuscado argumento utilizado era o do desperdício que significa comprar vinte ou trinta livros todos iguais, se os alunos poderiam beneficiar do acesso a diferentes leituras, se comprassem livros de histórias, ou temáticos.

Se esta é uma ideia difícil de dar a entender a “especialistas”, era missão quase impossível de passar a pais. Mas, como se virá a concluir, tal como os professores, os pais dos alunos das nossas escolas eram seres inteligentes. E se tudo lhes fosse explicado de modo que entendessem, acabariam por perceber que as coisa não têm de ser como sempre foram.

Então, a Licinha interpelou a mãe da Ritinha, que já dormitava na última fila de carteiras:

Ó senhora Adélia, a senhora comprou a “Caras” desta semana?

Com certeza, minha senhora, mas em que é que isso vem ao caso?

Diga-me quantas pessoas são lá em casa.

Ora bem, somos eu, o meu Carlos, quatro filhinhos, o meu sogro (fora a minha sogra que Deus a tenha em eterno descanso…), mais os meus pais que ainda são vivos, graças a Deus, minha senhora. Mas olhe que não a estou a perceber…

Eu já lhe explico. Então, são nove pessoas ao todo, não é?

É, sim, minha senhora.

E a Dona Adélia só comprou uma revista?

Então, quantas havia de comprar? – retorquiu a Dona Adélia.

Não comprou nove, pois não? – atirou a Licinha, triunfante.

Agora é que você me lixou! – concluiu a D. Adélia.

Entendi, minha senhora. Você é professora, você é que sabe… – disse o pai do Chico Melro.

A assembleia não tugiu nem mugiu. E dali se foi a Licinha, ao encontro da Dona Glória.

Quando me perguntavam qual era o principal obstáculo à mudança nas escolas, respondia que o maior obstáculo era eu. O maior obstáculo era a minha cultura, era a cultura pessoal e profissional dos professores, que deveria ser somada à representação que as famílias e a sociedade tinham de escola.

Se os pais amavam os seus filhos e para eles desejavam o melhor, se os professores amavam os seus alunos e para eles queriam o que de melhor houvesse, a reelaboração cultural aconteceria.

Recordais-vos da carta anterior? Da troca de colheres mal não viria ao mundo e a Dona Glória poderia continuar essa troca até a último dos seus dias. Mas, o desfecho desse episódio poderia ser metaforicamente explicado. No dia seguinte, a professora Licinha mudou de tática: ao sair de casa, deixou a xícara com o café sobre a mesa da cozinha, sem a colher do açúcar e… sem a colher do café.

Em próxima carta, tentarei fazer uma moral da história. Mas podereis fazer a vossa moral…

Com Amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XIII)

Quinta do Conde, setembro de 2039,

Netos queridos,

Há uns vinte anos, andei por aqui, na companhia da Teresa e da Paula, duas maravilhosas educadoras, com quem também aprendi a criar comunidade. A recordação dessa boa companhia leva-me a contar-vos outra estória. Há por aí quem considere que os professores são criaturas em estado de graça, enquanto outros tendem a considerá-los uns desgraçados. Nem oito, nem oitenta. Os professores não são anjos nem demónios. São, como as outras pessoas, seres aprendentes. Se aprendem ou não, isso depende da vontade e da circunstância, como adiante iremos ver.

A Dona Glória trabalhava a dias em casa da Dona Licinha e era muito bem tratada. Não havia dia algum que a patroa lhe não deixasse sobre a mesa da cozinha o pagamento do serviço, uma chávena, um punhado de bolachas embrulhadas num guardanapo, o açucareiro e uma colher. Sob a colher, um papelinho com a recomendação de que não deixasse de a utilizar e não metesse no chá a colher que iria encontrar dentro do açucareiro. A professora Licinha bem porfiava na recomendação. Porém, quando voltava a casa, encontrava a colher do açúcar completamente envolvida no produto, numa placa dura que dificilmente descolava com a lavagem.

Só quando, por via de uma súbita enxaqueca, voltou para casa a meio da tarde, é que a professora Licinha descobriu que a Dona Glória não sabia ler. E, com o cuidado devido à situação, inteligente e atenta (como qualquer professora), a Licinha reflectiu sobre o episódio. E pensou que talvez tivesse alguma relação com um problema que vinha defrontando na escola.

Na escola da Licinha, as professoras tinham decidido dispensar os alunos do uso dos manuais. As queixas sucediam-se. A Dona Augusta, que era a auxiliar de acção educativa, servia de porta-voz à crispação dos pais:
Como é que podemos ajudar os catraios nos trabalhos de casa, se não temos livros para eles lerem a lição? Como é que os miúdos podem aprender se não tiverem livros?
Os mais atrevidos (ou assertivos, como agora se diz) iam mais longe no comentário crítico:
Estas modernices ainda vão acabar mal…
O ambiente naquela escola já não era dos melhores. E as professoras estavam prestes a ceder ao senso comum, de modo a não pôr em risco a sua sobrevivência profissional:

Que se lixe a pedagogia! Se os pais nos deram o seu dinheiro, deixemo-nos de modas. A ideia de comprar livros do Torrado, da Matilde e da Sophia fica para depois. Vamos mas é fazer a vontade aos pais. Compramos os manuais… e pronto!

A Licinha propôs que se fizesse uma reunião com os pais dos alunos, para resolver a situação. Os pais tinham correspondido ao convite. O horário correspondia aos seus interesses e ainda acabava a tempo da desobriga da missa vespertina. Mas a reunião não estava a decorrer do modo mais auspicioso. Às tentativas de persuasão da Licinha e companheiras, o pai do Chico Melro ripostava:

A senhora que me desculpe, mas não concordo com o que a senhora disse!

As professoras bem argumentavam que os manuais continham erros grosseiros, que o peso das mochilas era um perigo para as costas dos meninos etc. Bem insistiam num discurso de código restrito que lograsse chegar à compreensão dos pais, mas o pai do Chico Melro não desarmava:

Está tudo muito bem, as senhoras é que têm estudos e eu só fiquei com a terceira mal feita. Mas… os catraios aprenderem sem livros? Onde é que já se viu?

(continua na próxima carta)

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XII)

Cacela Velha, maio de 2041

Querida Alice e querido Marcos,

O prometido é devido… Começo esta missiva, explicando-vos (ou fazendo-vos recordar) o que era o facebook. Talvez já não vos recordeis de o terdes usado na vossa juventude.

No início do século, precedendo um tempo de pós-verdade, alguns estudantes de Harvard inventaram uma “rede social”. Nela, os usuários criavam perfis, trocavam mensagens privadas e públicas, fofocavam. Mais tarde, ela foi usada por gente sem escrúpulos semeadores e replicadores de fake news. Poderosos “sistemas de ensino” aproveitavam essas rudimentares tecnologias digitais de informação e comunicação, para congelar e vender inúteis “videoaulas”. E foi nesse tempo que surgiram as famigeradas startups…

Na época chamada de “bolha da internet”, entre o fim do século XX e o prelúdio do século XXI, o termo startup começou a ser usado por grupos de pessoas criativas do campo do empreendedorismo e do capitalismo selvagem. Mas a intervenção dessas startups no campo da educação foi desastrosa, quando contribuíram para confundir inovação com paliativos do modelo instrucionista.

Gurus do digital, empresários e outros debutantes da educação apropriaram-se do termo “inovação” e o deturparam, apoiados por autores de teses sobre inovação, sofisticações teóricas aprovadas por bancas constituídas por quem nunca inovara e legitimadas por instituições que raramente inovaram. Adulterado o conceito, converteram-no em slogan para fins mercantis, curandeirismo, espécie de magia branca, capaz de impressionar as massas, como diria o mestre Lauro. Mas, nesses tempos sombrios, havia quem resistisse, pelo que vos darei exemplo de boa utilização da Internet.

Charles Péguy foi um escritor francês, que faleceu em 1914, na Batalha do Marne. Num dos seus cahiers, escreveu: As escolas existem, disse Deus. Penso que é para desaprender. Inspirado nesse aforismo, há cerca de vinte anos, o meu amigo José publicou no seu facebook um texto com o título “Uma radical desaprendizagem”. Encontrei-o num velho arquivo de computador. Não “viralizou”, porque não convinha a quem, sob o manto diáfano de pseudo-inovações, mantinha a escola e a educação no domínio da ensinagem. Mas não resisto a reproduzi-lo:

Milhares de páginas registam o que é preciso ensinar. O que o preciso aprender. Milhares de horas se despendem na prossecução destes objetivos. Mas antes disso há um vasto programa que é preciso realizar. O de desaprender: os modos de ver, de olhar, de respirar, de pensar, de tocar. O de raspar a tinta com que nos embotaram os sentidos, como dizia Caeiro. Pois, o que é aprender senão desaprender, mudar uma rotina, um hábito, uma crença?

Desaprender o modo magistral de dar aulas. Desaprender uma relação pedagógica fundada no medo. Desaprender a indiferença, a alienação. Deitar fora milhares de conteúdos que não servem para nada. Resistir à tentação de criar novos territórios disciplinares de clausura. A escola precisa de se libertar da imensa quinquilharia que a atormenta. Desaprender os modos tradicionais e formais de prestar os serviços públicos de educação. Ser cada mais pública no sentido de responder às necessidades, às expectativas, às urgências das pessoas. Liberta do jugo e da asfixia das credenciais. Da certificação obsessiva. Desaprender para ousarmos construir uma casa de humanidade.

Naquele tempo, como vedes, havia gente digna, avisada e que avisava.

Com amor (e continuando a desaprender para aprender),
O vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XI)

Curitiba, agosto de 2039

Há cerca de vinte anos, li esta notícia: Vestibular na Índia levou 23 jovens ao suicídio.

Venkatesh lutava para segurar as lágrimas, enquanto tirava a carteira para mostrar a foto da irmã. Em 18 de abril de 2019, o dia em que ela descobriu que tinha sido reprovada no vestibular, Thota, de 18 anos, se matou.

Vennela tomou veneno. Chorando, a sua mãe lembrava: Ela continuava repetindo: “como eu pude falhar?”

A competição para entrar no ensino superior na Índia era feroz. E os exames eram cruciais para garantir um lugar em boas universidades, que eram vistas como um caminho seguro rumo a um emprego bem remunerado.

Assim se despedia uma das jovens suicidas: Eu só queria fazer as coisas certas, mas é como se eu fosse uma completa incapaz. eu choro por todas as músicas, livros e filmes q eu amo e q nunca mais vou ver. eu sinto muito, eu sinto mt deixar vcs. eu odeio viver, é só isso.

Não era apenas na Índia que o drama se desenrolava: o dia de volta às aulas era o que mais tinha suicídio de jovens no Japão. De 1972 a 2013, 131 alunos em média tiraram a vida no dia 1º de setembro.

No mesmo ano, a notícia encimada por esta frase denunciava uma muralha de silêncio: Mais uma aluna da UnB tira a própria vida. A estudante era extremamente simpática, muito inteligente, uma pessoa querida, tomou um uma overdose de comprimidos.

Naquele tempo, os professores do Ensino Superior queixavam-se dos baixos índices de proficiência dos alunos do ensino “inferior”. O Ensino Secundário projetava a culpa no Básico. O Básico atirava culpas para a Educação Infantil, que responsabilizava as famílias, não podendo as famílias responsabilizar o Criador…

O exame de acesso à universidade era mero instrumento de darwinismo social e de morte. Já, então, era tempo de trocar um ensino pretensamente superior (superior em quê?) por uma aprendizagem igualitária. Mas ainda levaria muito tempo e muita morte até que esse inútil e nefasto exame fosse erradicado.

Felizmente, há cerca de duas décadas, uma nova geração surgia, cuidada por seres humanos sensíveis, capazes de buscarem a perfeição possível e que viam com olhos que veem muito para além da aparência das coisas. Assim escrevia a Amanda no seu facebook (um dia, vos explicarei o que era uma “rede social”):

Ontem ganhei o meu melhor presente. Meu afilhado nasceu e tive a honra de poder participar e registrar essa chegada tão pura e emocionante. De longe, o momento mais sublime que já presenciei. Te apresento o mundo, Lucas. Com todo meu amor, te recebo de braços e coração abertos, para cumprir meu papel de madrinha da maneira mais singular que puder! Te desejo um feliz início de ciclo, recheado de conquistas e alegrias. Que você desfrute de todas as doçuras da vida, aprenda com os tropeços e jamais tenha medo de sonhar e voar alto. Para tudo, estarei aqui. Te guiando e protegendo, entre erros e acertos, mas acima de tudo, te amando incondicionalmente.

A modernidade remetera-nos para uma ética individualista. Mas, seres sensíveis como a Amanda ajudaram educadores a exercitar a consideração positiva incondicional, de que falava Carl Rogers, a praticar a confirmação do Martin Buber e o amor incondicional postulado pela Alice Miller. O Lucas está na universidade, sem passar por inúteis e nefastas provações, pois, há já muito tempo, os vestibulares foram extintos.

Com Amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (X)

São Paulo, agosto de 2039

Netos queridos,

Encontrei o seguinte texto na revista O Ocidente:
“O Governo pugna pelo bom carácter civil, moral, do ensino. O aluno cheio de maldade não obedece à palavra e tem a certeza da impunidade. O professor quer restabelecer a ordem e não consegue, porque a onda de insubordinação cresce. Os mestres quase nada ensinam à falta de disciplina que não há. As crianças que são bem comportadas e desejam aprender pouco aprendem. Que interessante é uma escola bem disciplinada! Mas onde a há que deixe de ser perturbada por algum de entre muitos que, saindo do seu tugúrio [leia-se: “periferia”, “favela”] vem incorporar-se na comunidade limpa e asseada e eivá-la dos vermes da destruição moral, corrompendo pelo mau exemplo os corações bem formados, as consciências limpas.

Esta notícia foi publicada em maio de… 1887.

Também li o depoimento de um anônimo, escrito no início da década de 1950: Tínhamos que estar com respeito e atenção. A professora mantinha a disciplina com uma palmatória. E, quando a professora já estava cansada, mandava um dos alunos bons bater nos colegas que soubessem menos. E, se batessem devagar, ela batia neles e batia a nossa cabeça contra o quadro. O anônimo autor deste depoimento dá a entender que, por via dos métodos em voga, andavam “tolhidos de medo, era medo por todos os lados, tinham medo de ir para a escola e medo de ir para casa”.

Dado que o professor não ensina aquilo que diz, mas transmite aquilo que é e porque a aprendizagem é antropofágica – não aprendemos o que ouvimos, mas aprendemos o outro – muitos alunos se transformaram em adultos medrosos e egoístas. Dado que a aprendizagem acontece por imitação e pelo exemplo, políticos e outros bonsais humanos, que ignoravam a existência de uma educação humanizadora, impuseram a escola da violência simbólica, a escola “militarizada”, a mesma de que foram vítimas.

Há vinte anos, não nos surpreendíamos quando, no fim de uma sessão da Câmara, o chão do plenário ficava coberto de lixo, víamos o chão do auditório juncado de copos plásticos e outros detritos, ali deixados por ilustres deputados.

A escola hegemônica e “militarizada”, que tínhamos, ia semeando ignorâncias e outras violências. Ela fora concebida no início da Primeira Revolução Industrial, correspondendo a necessidades sociais da Prússia Militar: treinar jovens para a guerra, jovens obedientes a um regime disciplinar inquestionável, respeitadores de uma hierarquia imposta. A escola nasceu “militarizada” e os professores do século XIX não sabiam que a autoridade não rimava com autoritarismo. Que a escola não deveria preparar para a cidadania, mas que se aprende cidadania no exercício da cidadania, no exercício de uma liberdade responsável, na autodisciplina, na verdadeira disciplina, que não resulta de imposições e submissões, mas pressupõe o exercício do diálogo, a desocultação de perversos modos de relação.

Um século após a publicação do texto na revista O Ocidente, no ano de 1988, uma “Proposta Global de Reforma” dizia-nos que o adestramento não define a educação e que a educação é incompatível com a organização autoritária da vida. Mas, há cerca de vinte anos, num tempo de pós-verdade, assistimos a um “regresso ao passado”, assistimos a novas “militarizações”.

O pesadelo cessou, felizmente. Hoje, libertos de “militarizações”, os tempos são outros… Disso vos falarei em próxima carta.

Com amor,
O vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (IX)

Sintra, abril de 2040

Hoje, falar-vos-ei dos conturbados do tempo em que o vosso avô se iniciou na arte e ciência de aprender e de ajudar a aprender.

Já lá vão mais de setenta anos, andei por terras do meu amigo António. Quando ele me permitiu partilhar a sua “sala de aula”, pude testemunhar a relação de respeito e autoridade, que ele mantinha com os seus alunos. O respeito, que permitia garantir o direito à aprendizagem. A autoridade, que dispensava atitudes autoritárias. O António fez-me evocar outros professores…

Conheci um, que me afiançou que, no primeiro dia de aulas de cada ano lectivo, “dava toda a corda à turma”, esperava que a desordem se instalasse e que o líder da desordem se revelasse. Então, “parava a romaria e aplicava no mariola uma sova monumental, que era remédio santo para todo o ano”.

Tal e qual me disse esse professor de “pedagogia musculada”. Mas, foi-me concedido o privilégio de reconhecer a distância que vai da violência “disciplinadora” desse professor de antanho à ternura dos braços de uma Ana, que viveu por dentro o quotidiano de um bairro degradado. Entre outros dramas, conheceu o de uma criança por todos considerada “violenta”, hóspede quase permanente de um “quarto escuro”, onde cumpria longas horas “de castigo”. Porém, nem o negro isolamento domava a juvenil fúria. Em sucessivas vagas, a soco, a pontapé, à dentada, forçava a fuga das companheiras, abreviava o seu regresso ao “quarto escuro”.

Recém-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele círculo vicioso de violência, “crime e castigo”. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento de distracção da endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braços. A pequena ainda esperneou, sem conseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de recolher à punitiva escuridão. Tremeu, quando a Ana a beijou na face. E já quase não opôs resistência. Sentiu o abraço como abraço. Mas não demorou a procurar mais sarilhos. Voltou – qual pássaro sem ninho – ao aconchego dos braços e ao afago dos lábios da paciente Ana. Algumas idas e vindas depois, o íman do afecto prendeu-a definitivamente. A pedagogia do abraço vencera a da punição.
A vida dos professores está recheada de acontecimentos dignos de narrar e, como não há duas sem três, aqui deixo registo de outra peculiar experiência, protagonizado por um “professor primário”.

O dia começou num vaivém entre vinte e tal crianças a chorar e meia dúzia de ansiosas e renitentes mães, coladas ao umbral da porta, ora espreitando a descendência pelos interstícios, ora penetrando, para assoar o nariz do herdeiro, ou dar-lhe um beijo de despedida. Era o primeiro dia de aulas.

Respeitosamente, o professor Rui encaminhou as ansiosas progenitoras no sentido da saída. Ao cabo de uma longuíssima meia hora, logrou encostar a porta: “com licença, desculpe, faz favor, minha senhora, sim, sim, pode ficar descansada, claro, pois, é natural, coitaditos, não é? As gotas, pois, não me esquecerei, pois, dá-me licença, se fazem favor, sim, minha senhora, não me esquecerei, com certeza…” Com mão firme e beijinhos nas crianças, conseguiu fazer descolar da porta os dedos da última mão da última mãe, deitou um olhar àquela que seria a sua “primeira classe” e respirou tão profundamente quanto a ansiedade lho permitia.

Cuidou de acalmar os pequenitos que, a todo o momento, ameaçavam retomar o choro. Depois da tempestade, parecia ter chegado o merecido sossego. Era assim, o dia-a-dia de um “professor primário”, feito de paciência e de beijos.

Recebei um beijo à moda da Ana e do Rui, mas do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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