Itapoá, 22 de março de 2040
Ao passar pelo local onde, há vinte anos, existia a Escola Zilda Arnes, lembrei-me da minha amiga Carol, que nela semeou humanização. Esses eram tempos de confinação de crianças em prédios a que chamavam “escola”.
Arquitetas de novos tempos, a Carol e a Cláudia repensavam o papel da escola e se preparavam para ressignificar espaços de aprendizagem no Paranoá e no Itapoá, de modo a que a instituição cumprisse a sua missão de produzir conhecimento e de reelaborar cultura, em diálogo com outros lugares de criação cultural. Até que chegou o vírus corona…
Na semana anterior e na Itália, o arquiteto do Centro Cultural de Belém, o criativo Vittorio Gregotti, fora a primeira vítima ilustre da covid-19. Em 2019, nesse CCB se havia reunido um grupo de educadores, que buscavam alternativas à escola-prédio. E, no mês de março de 2020, com o alastramento da pandemia e talvez não por coincidência… as escolas-prédios viraram desertos.
Os jovens residentes em condomínios passavam os dias no interior das suas casas, polegares batendo tecla de ifone e celular. Ou assistiam a “vídeo-aulas”, prodigamente enviados pelos seus professores, através da Internet. Por seu turno, aturdidos pela súbita alteração do seu papel, os professores, refugiavam-se nas suas casas, passando os dias frente ao computador, na busca de informação sobre a evolução da pandemia e a exportar os ditos vídeos.
Assim como os prédios das escolas haviam sido guetos de infância, lugares de suposta segurança, os altos muros do condomínio pareciam proteger os condôminos de assaltos e vírus. Se alguma faxineira ainda nele entrasse, todos os objetos tocados eram lavados e supostamente desinfetados. Se o carteiro entregasse alguma correspondência, as mãos de quem a recebia eram cuidadosamente lavadas e passadas por um milagroso protetor em gel.
O mundo demandava uma nova maneira de nos relacionarmos, um vírus nos oferecia a oportunidade de conviver na experiência da dádiva, para resgatar a fluidez da partilha. Na cooperação encontraríamos caminhos de uma nova economia. Mas, parecia que a humanidade não entendia a mensagem… Nesses idos de 2020, o vírus de nome “corona” não era o maior dos perigos. Perigosos eram os vírus do egoísmo e do medo.
As faxineiras e os jardineiros, cuja sobrevivência dependia dos serviços prestados nos condomínios, foram dispensados. As manicures e barbeiros entravam em desespero, por não haver mais clientes para cuidar e já faltar o sustento das famílias. E o egoísmo e o medo faziam com que já faltasse o álcool em gel e o papel higiénico nas gôndolas dos mercados…
Na Idade Média, as pestes dizimaram o povo. Mas também mataram gente da nobreza e do Clero, quando penetraram nos castelos. Muitas das muralhas de pedra foram substituídas por muralhas simbólicas. E os residentes em condomínios acreditavam estar protegidos. Estariam?
Uma narrativa Sufi descreve o modo como havia sido destruída uma inexpugnável fortaleza islâmica do século XII. Outro conto Sufi nos avisa de que nem as mais altas muralhas resistem ao desgaste operado pelo egoísmo e pelo medo.
A Peste ia a caminho de Bagdá quando encontrou Nasrudin, que lhe perguntou:
Aonde vais?
A Peste respondeu:
Vou a Bagdá, matar dez mil pessoas.
Dias depois, a Peste reencontrou Nasrudin. Muito zangado, o mullah disse-lhe:
Mentiste-me. Disseste que matarias dez mil pessoas e mataste cem mil.
A Peste respondeu:
Eu não menti, matei dez mil. O resto morreu de medo.
Por: José Pacheco