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Estórias da Velha Escola (XLVII)

Seia, fevereiro de 2040

Ainda em terras portuguesas, ainda evocando o Holocausto, para vos falar de um educador de nome Korczak (pseudônimo de Henryk Goldszmit). Fixai bem o nome deste insigne pedagogo, médico, pediatra, escritor, ativista social e oficial do exército polaco. Foi precursor de iniciativas em prol dos direitos da criança. No seu diário e no clássico “Como Amar Uma Criança”, dizia-nos que nosso mais forte elo com a vida é o franco e radiante sorriso de uma criança.

Fundou e dirigiu um orfanato, em Varsóvia, destinado a crianças judias. No início de novembro de 1940, o orfanato foi transferido para o gueto. Numa manhã de agosto de 1942, o chamado Pequeno Gueto foi cercado pelas tropas da SS. Durante a principal etapa de exterminação da população do gueto de Varsóvia, recusou propostas para se salvar. No dia da deportação, pediu para as crianças colocarem suas melhores roupas e pegarem o seu brinquedo favorito. Acompanhou as crianças e, quando estavam perto do seu destino, um soldado nazista reconheceu Korczak e ofereceu-lhe, mais uma vez, a oportunidade de escapar da morte. Recusou. E morreu junto com as crianças, no campo de extermínio nazista de Treblinka.

Quero que saibais que, também no sul, houve campos de concentração, nos anos trinta do século passado. E que os guetos de Varsóvia dos anos quarenta tiveram versão equivalente, no Brasil. Quando uma das piores secas assolou o Nordeste, os governantes criaram campos de concentração para que os miseráveis fossem impedidos de prosseguir a sua retirada do território da seca. Milhares de pessoas famintas pretendiam chegar aos centros urbanos, na esperança de melhores dias. Mas, cerca de setenta e quatro mil seres humanos ficaram prisioneiras nesses campos de concentração. Centenas pereceram por falta de alimento e vítimas de doenças, que proliferavam no campo.

Vasculhando a biblioteca, que deixei em Portugal, reli o “Berço das Desigualdades”. A cada voltar de página do livro do Sebastião Salgado, novas imagens confirmaram o título e me fez tomar consciência, mais uma vez, da responsabilidade que cabe à escola, que nos cabe, na perpetuação de horrores. As palavras do Cristóvão são tão concisas quanto discretas, e não reduzem o impacto das fotografias que legendam. O olhar penetrante das crianças “desiguais” invade-nos e faz-nos crer que, somente por humana presunção, acreditaremos viver o tempo da História.

No tempo que nos coube em sorte viver, os homens dirimiam os seus conflitos pelas armas. Matavam em nome de um credo. Edificavam tribunais e prisões em nome da justiça. Usurpavam territórios, para deles extrair vantagens, mas… em nome da paz. Uma humanização precária tinha a Escola como instrumento de reprodução de um modelo social iníquo – as escolas eram berços de desigualdades.

Sucediam-se decretos e despachos, decorrentes das conclusões de gongóricos relatórios produzidos por inúteis grupos de estudo. Acumulavam-se nos arquivos dos ministérios e das universidades dispendiosos “estudos”, que não logravam ir além de óbvias “recomendações”.

Felizmente para os “desiguais”, nem todas as escolas e nem todos os professores eram “iguais”. A remissão das escolas, anunciada na Ponte, no Âncora, na Escola Aberta, na Maria Peregrina e outras escolas de há vinte anos, assumiu a dimensão de rede no Distrito Federal. A Escola resgatava o seu papel de “berço de oportunidades”. Falar-vos-ei desse projeto, tão logo chegue a Brasília.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLVI)

Santa Comba, janeiro de 2040

Enquanto estivermos vivos, é nosso dever falar aos que não eram nascidos, para que saibam até onde se pode chegar – palavras de Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz.

Um psiquiatra holandês, que assistiu à libertação do campo da morte dizia ser preciso anotar, “para todos ficarem a saber e nunca mais acontecer”.  E fez-se necessário contar e recontar o terror, há vinte anos, quando contornos de novas inquisições e ditaduras ressurgiam. Duas décadas atrás, quando a extrema-direita e o populismo aumentavam a sua influência, citando Goebbels, negando o desastre climático e as câmaras de gás, foi necessário refrescar memórias.

Auschwitz aconteceu numa Europa supostamente culta, humanizada, mas que sucumbiu numa orgia de violência e desintegração humana sem precedentes. Primo Levi sobreviveu a Auschwitz, mas não resistiu à recordação de horrores e se suicidou. O seu último livro – “Os que Sucumbem e os que se Salvam” – reflete o temor de que tudo viesse a repetir-se.

Após a segunda guerra mundial, os Estados Unidos lançaram um projeto de reconstrução e de reestruturação econômica de países europeus: o chamado Plano Marshall. Mas, por se ter aliado a Hitler, Mussolini e Franco, o ditador Salazar privou o seu país dessa preciosa ajuda.

Nasci, exatamente, seis anos após o primeiro dia do pós-guerra e a meio dos quarenta e oito anos da ditadura de Salazar. Passando pela terra onde nasceu o ditador (Santa Comba), dolorosas recordações me assaltaram: as fomes infligidas aos vossos trisavôs, a injusta prisão do vosso bisavô, os maus-tratos por que passou a geração deste vosso avô.

Na escola do tempo de ditadura, o professor enchia-nos de pontapés, socos na cara e, pegando-nos pelos cabelos, batia a nossa cabeça contra o quadro negro. Nos idos de sessenta, conheci um professor que distribuía tapas pelas razões mais comezinhas. Mas do que ele gostava mesmo era da cruel “chamada ao quadro”. Quando o “Senhor Engenheiro” – ele não permitia que o tratassem por professor e nisso estava certo – sadicamente acariciava a caderneta dos alunos e a abria numa página ao acaso, um silêncio tumular prenunciava a tormenta – quem seria a vítima do dia? O suspense era quebrado, quando um nome era pronunciado e muitos suspiros de alívio se ouviam em surdina.  “Fulano de tal! Ao quadro! Já!” – E o fulano lá ia, como ovelha para a degola.

O Dimas fazia parte do grupo dos mártires. Já havia sido contemplado com humilhações, que lhe deterioraram a auto-estima de jovem com quinze anos feitos.

Naquele dia, o “Engenheiro” estava mais carrancudo que o habitual. As tábuas do estrado rangeram de um modo mais tenebroso que o habitual. Os momentos que precederam o momento fatal pareceram ainda mais longos que o habitual. O “Engenheiro” apoiou os cotovelos na secretária e os seus dedos passearam pelas páginas da caderneta. A sua voz saiu mais cavernosa que o habitual. Mas o que era habitual não aconteceu.

O Dimas escutou o seu nome, mas não se levantou. Ouvimos um gotejar semelhante ao da chuva no telhado. Mas, lá fora, o dia estava solarengo. Era o Dimas, sentado na sua carteira, hirto… urinando.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLV)

Caldas da Raínha, janeiro de 2040

Escrevo esta cartinha no dia em que se comemora os 95 anos da libertação de Auschwitz. Para que não se mate a memória do holocausto, para recordar que, no final da segunda década deste século, alguns bonsais humanos incentivavam práticas escolares reprodutoras da proto-história da humanidade.

A militarização da escola operada pela Prúsia do século XIX era reforçada por medidas absurdas emanadas de um poder público, que desconhecia que o adestramento não define a educação, que a educação é incompatível com uma organização autoritária da vida.

Há cerca de vinte anos, num tempo de pós-verdade, assistimos a um “regresso ao passado”. O pesadelo cessou, felizmente. Hoje, libertos de “militarizações”, os tempos são outros. Mas continua a ser necessário denunciar o autoritarismo, que fez do sistema educacional alemão do Terceiro Reich o ninho da serpente.

Nas cartas, que escrevi à Alice, vos falava depássaros. Nesta, evocarei a simbólica pomba da paz, com ramo de oliveira no bico. Simbolicamente, anunciava o nascer de um novo tempo, onde práticas educacionais fósseis não faziam mais sentido.

Hoje, estão nas prateleiras dos museus da pedagogia. Mas, vinte anos atrás professaurios as reproduziam, condicionando sementeiras de humanidadecondenando sucessivas gerações de aves a uma sub-vida. Mesmo com o pombal aberto, as jovens aves não se arriscavam em voosdivergentes.

Confirmando essa metafórica evidência, em pleno século XXI, ainda eram muitas as escolas onde se “dava aula”, na ignorância de que a aula não ensinava e de que havia muitos modos de aprender. No século XIX, num tempo em que já se questionava se seria possível ensinar a todos como se fosse um só, o Eça das Conferências do Casino escrevia: As crianças, enfastiadas, repetem a lição, sem vontade, sem inteligência, sem estímulo. O professor domina e põe todo o tédio da sua vida na rotina do seu ensino.

Mais de cem anos decorridos, a pretrexto de juvenis indisciplinas, de curriculares flexibilizações, ou de baixos índices de proficiência – que a escola da aula produzia! – burocratas e políticos boçais criavam a aparência do novo e deixavam tudo como dantes.

Mas, au bout du chagrin, uns fenêtre ouverte, une fenetre eclairé … e o amigo João, pai amoroso, responsável, preocupado com o futuro dos seus filhos, procurou e encontrou uma escola onde algumas professoras éticas ousaram criar um núcleo de projeto. Com os jovens a seu cuidado, começaram a construir projetos de vida e a produzir conhecimento útil à comunidade. Na produção de currículo, contemplaram a dimensão da consciência planetária, para obstar à destruição da vida em comum. Porque, nesses sombrios tempos, a Austrália estava sendo devastada pelo fogo. As geleiras estavam derretendo. Tragédias provocadas pela humana incúria, faziam perecer milhões de animais e aceleravam a extinção de espécies. Os Estados Unidos e o Irão ameaçavam começar aquilo que poderia ser a terceira (e última) guerra mundial…

Na contracorrente, o João, o Manuel, o Diogo, a Magda, a Conceição, o António, o André, o Bernardo e tantos outros amorosos educadores, anunciavam tempos de paz, a ultrapassagem da proto-historia da humanidade.

 

Por: José Pacheco

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