Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCIII)

Eldorado dos Carajás, 29 de agosto de 2040

Esta cartinha será feita de citações de mensagens recebidas no mês de agosto de há vinte anos. A primeira, do amigo José, que comentava deste modo o “Roteiro do regresso às aulas”, objeto da minha cartinha de há dois dias:
“Um Roteiro, para ser coerente, tinha a obrigação de ser menos prescritivo e incluir exemplos que integrassem todas as linguagens e saberes. É altura de comprovar textualmente a natureza prescritiva do documento: O verbo DEVER ocorre, pelo menos, 26 vezes nas suas 51 páginas. As ESCOLAS Devem (pelo menos 5 vezes); os Alunos devem (pelo menos 3 vezes); os PROFESSORES devem pelo menos 3 vezes; as estruturas/dispositivos devem pelo menos 7 vezes; e o sujeito indeterminado ocorre pelo menos 8 vezes. Curiosamente, o Ministério, a Dgeste, e todas as demais estruturas centrais não têm neste documento de orientações qualquer DEVER”.
O amigo Tuck abordava o “principal problema da aula”, o obsoleto dispositivo de ensinagem para onde a Dgest obrigava a voltar:
”O principal problema da aula é que trata muitos indivíduos como um só, como massa. Quando você critica a cultura de massa e não crítica a escola que força dar aulas, você está sendo muito mais a favor do que contra a cultura de massa, afinal o impacto negativo de uma escola ruim e aulista é mil vezes maior do que o de uma emissora de tv, um site ou uma rádio.
“Nossa, mas estamos falando de educação ou comunicação?” E eu te pergunto: existe educação sem comunicação? O grande problema da aula é que ela é pautada por ruídos, onde emissor e receptor estão quase ou completamente desconexos, ou com mal contato dando curto.
“Então como seria a outra forma, sem aulas?” Primeiramente, sem solidão docente. Segundo, baseado em convivência de qualidade (para isso ocorrer, algo tem que sair e esse algo é a aula pois preenche o tempo de forma desproporcional). Terceiro, criação de novos tempos e espaços, que permitam autonomia, que permitam pesquisa, que permitam subjetividade, convivência, criação, que permitam qualidade de vida. Quarto, autonomia. Fala-se muito de gerar autonomia em crianças, mas hoje, em 2020, podemos contar nos dedos da mão quantos professores, coordenadores, gestores e técnicos de educação são autônomos. Autonomia é uma coisa, independência é outra. A independência é algo nocivo, pois é alimentada por orgulho e individualismo. Não existe a educação, se não houver consciência de interdependência, e não existe educação de qualidade sem ação baseada em alteridade, pautada pelo diálogo. Sem isso tudo, nós temos esse caos, onde podemos tranquilamente colocar a aula como um dos grandes causadores”.
Por fim, um recado da Fernanda:
“Vivemos o triste momento em que a necropolítica apoia-se na naturalização da perpetuação do inaceitável número de mortes diárias registradas no país como consequência da Covid-19. A postura negacionista da gravidade da situação por autoridades governamentais, materializada em políticas públicas ineficazes, requer o questionamento crítico das determinações vindas desses órgãos. Nossa posição em defesa da permanência do ensino remoto é pautada em um motivo que entendemos estar acima de quaisquer argumentos ou mecanismos de pressão: a vida”.
A Fernanda recusava obedecer às imposições dos burocratas do “regresso às aulas”. Sabia que era urgente matar saudades de colegas e amigos, que era intenso o desejo de, não virtualmente, abraçar os professores. Mas, a Fernanda também sabia que não se tratava de “regressar às aulas”, mas de… desaular.

 

Por: José Pacheco

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