São Sebastião, 10 de julho de 2040
Dissestes que a anedota do cachorro era “muito divertida”. Mas ela tem um fundo bem triste. Em 2020, era frequente encontrar quem ainda acreditasse que “dando aula” ensinava. Enfim! Se a anedota do cachorro vos divertiu, outra vos irei contar – a do “gravador”.
Um professor universitário se cansou de, ano após ano, repetir as mesmas lições, em aulas expositivas. Gravou as aulas – naquele tempo, usávamos um aparelho de gravação e reprodução de áudio – e, no início de cada aula, carregava na tecla “play”, e voltava para o seu gabinete, deixando os alunos na sala de aula, escutando a voz (gravada) do professor e escrevendo o que o aparelho ditava.
No intervalo, o professor voltava à sala, virava a cassete para o lado B e lá ia para o seu escritório. Os alunos continuavam a escrever o ditado, na ausência do professor. Até ao dia em que, quando o professor foi mudar a cassete para o lado B, os alunos também foram mudar a cassete para o lado B, nos seus gravadores e reprodutores de áudio-cassete.
Essa anedota era contada, há cinquenta anos. Mas, há vinte, deparei-me com uma anedota da vida real, quando tive conhecimento de um processo seletivo para contratação de um professor de pedagogia. O meu primeiro impulso foi o de, apesar da minha provecta idade, me candidatar. Residia próximo da instituição de “ensino superior” e me disponibilizaria para colaborar. Estava aposentado, mas queria sentir-me útil.
Recebi um “recado” de um responsável dessa instituição:
“Conheço o trabalho do professor, sou adepto da inovação, mas neste ponto não há como inovar. A lei e as regras do Edital (força de Lei) são claras. O tratamento e a cobrança serão as mesmas que tenho com todos os demais docentes”. Não dar aula? Sem chances!” (sic).
Eu estava na posse de todas as condições para ser admitido como professor. Porém, se a inscrição do candidato implicava a “tácita aceitação das normas e condições”, por lealdade e coerência, não apresentei candidatura. Se o tivesse feito e fosse admitido, não “daria aula”, nem cumpriria outras imposições e pressupostos de um modelo obsoleto de ensino, cujos contornos se encontravam, implícitos e explícitos, no edital de concurso.
De notar que o teor do edital entrava em contradição com o projeto político-pedagógico da instituição em causa. A expressão “sou adepto da inovação, mas neste ponto não há como inovar”, como a exigência imposta aos professores – a de “dar aula” – demonstrava incoerência e até mesmo falsidade ideológica. Lamentável!
Enviei um e-mail à instituição, lamentando que, em 2020 e num curso de pedagogia, ainda se recorresse a práticas fundadas no paradigma da instrução. Não obtive resposta. Em 2020, na universidade, nas “escolas de aperfeiçoamento de profissionais da educação”, na Internet, nos “centros de formação” e em outras instituições de deformação de professores, se comprometia a mudança e se impedia a emergência de inovação.
Foram situações como a que acabo de vos expor que, no Brasil de 1964, levou Agostinho da Silva a dizer: ” nas chamas se consumirão hierarquias e autocratas; o que esperamos que surja é o lugar único de educação e de vida, para adultos e para crianças, em que o criar vá muito além do saber e lhe seja este puro servo, em que a liberdade crie sua própria disciplina; (…) que das máquinas de fabricar adultos nem as ruínas sobrem; que a criança cresça harmoniosamente e livremente, sem as deformações que lhe infligimos, na vida que lhe fabricámos; que seja perfeita, na perfeição de suas conscientes intenções, não na perfeição do modelo que lhe demos”.
Por: José Pacheco