Passos, 31 de março de 2041

Em 2041, os sociólogos ainda não conseguem encontrar um modelo teórico que consiga explicar dinâmicas sociais dos idos de vinte. Os modelos descritivos até hoje utilizados, as análises objetivas, as sondagens, as estatísticas enviesam as conclusões dos estudos. Os antropólogos ainda se mostram impotentes para decifrar mistérios detectados no desenvolvimento físico, social, cultural, comportamental, nos hábitos, costumes e crenças, nessa época manifestados. Mas talvez possa afirmar-se que, nesses conturbados tempos, se preparavam transformações.

Na década de sessenta do passado século, enviei e recebi centenas de cartas, numa troca epistolar que cimentou uma grande amizade entre mim e uma jovem brasileira. No início dos anos setenta, a minha correspondência passava pelo crivo da polícia política da ditadura de Salazar. Preocupado com a possibilidade de, nessa circunstância, a ditadura brasileira vir a aborrecer a Maria Célia, suspendi o envio das cartas.

No início deste século, começava a minha segunda vida, a brasileira. Por essa altura, calhou de o meu andarilhar me ter levado até Uberlândia e me terem convidado para fazer uma fala em Araguari. À entrada da cidade, na visão de lugares que conheci pelos postais recebidos da Maria Célia, acudiu à memória um endereço centenas de vezes escrito em envelopes de papel fino da correspondência intercontinental. Sem CEP (ainda não tinha sido inventado, nos idos de sessenta e de setenta) a Rua Afonso Pena e o número de polícia me conduziram à presença de um velhinho, que me entregou um papel com o número do celular da amiga com quem deixara de me comunicar, há mais de trinta anos.

Liguei. Escutei um “Oi!”. Perguntei: “Maria Célia?” E a Maria Célia respondeu: “José Pacheco?”

No final dessa tarde, voltamos a conversar, como se o diálogo jamais tivesse sido interrompido. Quem bem se quer sempre se encontra e retomamos o convívio possível para quem, como eu, faz da vida uma constante peregrinação. Outros encontros e reencontros se sucederam. Num deles, o meu amigo Rubem Alves teve ensejo de saborear um sarau de piano, violino e canto, organizado pela Maria Célia. Há vinte anos, se confirmava que o amor verdadeiro não se extingue com o passar dos anos. E que o amor era o que movia os educadores autores de uma nova educação.

O conturbado início de 2021 obrigou a uma significativa mudança de rumo. Os áulicos prosseguiram na bajulação de um poder público intelectual e moralmente corrupto. Falastrões engordavam a conta bancária ao serviço de empresas, que transformavam o direito à educação numa mercadoria. Os auleiros permaneceram cativos de obsoletas práticas, subservientes dos burocratas da educação. E os teoricistas confinaram-se no Olimpo das teorizações de teorias, por lá ficando, alienados pelo “eu te cito e tu me citas”.

Era chegado o tempo de substituir a pedagogia pela antropagogia (ou antropogogia, como eu preferia designá-la). Estávamos num tempo em que a educação da criança deveria contextualizar-se numa educação do ser humano, ao longo da vida, num permanente aperfeiçoar-se. Porém, o debate teórico definhava face à normose instituída.

Num encontro virtual realizado neste mesmo dia, mas de há vinte anos, assumi o compromisso de acompanhar educadores éticos na criação das então chamadas “turmas-piloto”. Iria voltar ao chão da escola, ser tutor por mais um ou dois anos. Iria assistir a uma “reeducação axiológica”, dado que a cultura é um sistema vivo de valores.

Sobre valores e outras minudências vos falarei na cartinha de amanhã.

 

Por: José Pacheco