Sesimbra,17 de junho de 2041
Quando já temos alunos que são professores, apercebemo-nos de que estamos mesmo muito velhos. O Filipe foi meu aluno e, depois, um excelente professor. Sempre que tropeçava nos absurdos das escolas que ainda tínhamos, nos idos de vinte, partilhava comigo as experiências. Partilharei convosco uma das histórias que o Filipe me contou.
“Um aluno perguntou-me: “Professor, o sumário é para escrever a azul ou a vermelho? Professor, deixo uma, ou duas linhas?”
“Decide tu meu rapaz, a escolha é tua”.
“Nas outras disciplinas, eu escrevo o sumário a vermelho e o resto a azul” – replicou o moço.
Eis o comentário do Filipe:
“Em cinco anos de escolaridade, não conseguiram ensinar a este rapaz se deverá escrever a azul ou a vermelho. A escola fez um trabalho notável neste aluno. Ele tem boas notas, é bem-comportado, não perturba a aula, nem faz perguntas sobre as matérias. Mas, se a escola não lhe ensinou a decidir entre o azul ou o vermelho, o que irá ele fazer, quando tiver que tomar decisões? Telefonará ao professor?”
O Filipe possuía um apurado senso crítico. E refletia:
“O pior de tudo, professor, foi que eu me revi naquela criança. Também me ensinaram que tudo estava pré-determinado. Nunca escolhi caminhos, porque a escola sempre me conduziu. Durante dezesseis anos, foi como se entrasse numa escada rolante de um shopping e, sem me mexer, conseguisse subir e descer andares”.
Durante a visita a uma escola, escutei as lamúrias de um novo velho professor, da mesma idade do Filipe:
“Nesta turma, tenho um aluno que faz muitas perguntas e que me quebra o ritmo da aula. Ainda se as perguntas tivessem relação com o meu plano de aula, ainda vá!… Mas nem isso! E ele até faz perguntas, que eu não sei responder!”
No tempo do Filipe, nos anos vinte, ainda havia professores que insistiam na prática de um modelo escolar falido, assente na sacrossanta aula, na cinzenta organização em turmas. Havia professores em tudo idênticos aos do tempo em que eu tinha a idade do Filipe. As aulas do tempo em que eu tinha a idade que o Filipe tinha eram da cor do quadro preto, o monocromático modelo se repetia.
Há quase um século, Freinet dizia que o único papel que o aluno desempenhava, no seu tempo, era o de uma fita magnética que gravava as palavras para as reproduzir, sem que existisse o menor processo de integração. E citava Montaigne:
“Saber de memória, não é saber”.
Montaigne reagia ao “costume escolástico de impor os conhecimentos como quem os despeja por um funil”.
Escutei o Filipe, com solidária atenção. Fiz-lhe ver que já era assim, no tempo em que eu era um jovem professor como ele era. Evoquei episódios semelhantes, para que compreendesse que nada mudara, desde há séculos. Por que razão os alunos faziam perguntas a preto e branco? Por que razão, nos idos de vinte, os professores elaboravam planejamentos de aula para um cinzento “aluno médio”, se cada aluno era um ser único e irrepetível, se uma turma era uma paleta de cores e era imensa a gama de tons?”
Eduardo Galeano colheu uma frase, escrita numa parede de Quito e divulgou-a no seu livro “Palavras Andantes”:
“Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas”.
No tempo do saudoso Galeano, tinham decorrido dois séculos sobre a criação da escola das respostas, de uma velha escola, que não se interrogava, que dava respostas, sem que se apercebesse de que as perguntas tinham mudado. Mas é grato recordar que, no périplo português de junho de 2021, encontrei professores que davam cor a escolas onde ainda reinava o preto e branco. Curados do daltonismo pedagógico, buscavam uma escola arco-íris.
Por: José Pacheco
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