Fão, 21 de junho de 2041
Há uns trinta anos, publiquei um livrinho, que deu a conhecer aos educadores brasileiros alguns pedagogos insignes, para que não continuassem a ser ilustres desconhecidos. À semelhança dos brasileiros, os educadores portugueses desconheciam a obra de vultos como Adolfo Lima, ou Faria de Vasconcelos. Convivi com alguns mestres de antanho, que visitaram a Ponte, nas décadas de oitenta e noventa. Entre eles, o Eurico.
A Ponte foi fonte de inspiração de muitos educadores. No junho de 2021, quando o projeto “Fazer a Ponte” já contava 45 anos, era eu que os visitava. Reencontrei o “espírito da Ponte” na Associação TERRA, da Ana e da Carina. Com outras educadoras minhotas, buscavam a forma ideal de educar integralmente. Na casa dos pais da Ana e da Maria da Luz, encontrei sinais da educação que o mestre Eurico propunha e a Ponte concretizou. Fiz-me amigo da Helena e foi ela que me explicou como a educação pode ser tão saborosa como uma “Clarinha de Fão”.
Quando perguntaram à Helena, adorável mocinha de três anos de idade, se o dia tinha sido bom, a Helena respondeu:
“Foi espetacular!”
“Por quê?” – insistiram.
“Porque não fiz nada”.
“E em que é que estás a pensar?” – quis o adulto saber. A resposta da petiza foi desconcertante:
“Eu penso em cor-de-rosa”.
Eurico Lemos Pires foi relator da Lei de Bases do Sistema Educativo. Personalidade marcante no campo da afirmação da identidade plural das ciências da educação, gestou o conceito da escola básica integrada. O seu heterodoxo pensamento abriu caminhos para pensar a educação de diferentes modos. Investigador incansável, foi autor de livros basilares, dos quais se destacam: “O ensino básico em Portugal”, “Da inquietação à quietude”, “A construção social da educação escolar” e “Nos meandros do labirinto escolar”. Neste livro, fez um relato sucinto da sua visita à Escola da Ponte.
Foram marcantes as imagens da sua passagem pela nossa escola. Logo à chegada, surpreendeu-se com o fato de não haver portaria nem porteiro e por encontrar um portão aberto. Antes que eu pedisse a uma criança que lhe mostrasse a escola, pediu-me que o “deixasse deambular pelos lugares onde houvesse crianças”. Acedi ao pedido.
A meio da manhã, fui encontrá-lo, sentado junto de uma mesa onde crianças preparavam o “guarda-roupa” de uma peça de teatro. As crianças tinham colado fitas de todas as cores nos escassos cabelos brancos do “amigo Eurico”. Paciente e feliz, o mestre com elas conversava.
Não quis interromper o diálogo. Discretamente, me retirei dali. Só no início da tarde, quando o mestre Eurico parou o seu deambular, consegui chegar à fala com ele. Visivelmente comovido, me disse:
“Professor Pacheco, durante a minha já longa vida, visitei muitas escolas. Apenas nesta me foi permitido estar com crianças, brincar com elas”.
Eurico escreveu um romance com o título “Sant’Ana do Mar”, “onde a cidadania era obrigatória”. Livro escrito numa fase adiantada da vida mereceu de Valter Hugo Mãe este comentário:
“Gosto imediatamente da ideia de alguém, depois dos oitenta anos de idade, escrever o seu primeiro romance, e gosto que aconteça para corresponder a uma espécie de apelo, ou prova de sapiência maior, para a construção de uma sociedade melhor, mais justa.”
A Ponte recebeu a visita de ministros e até do Presidente da República. Eurico esteve entre as mais ilustres. Na despedida, ainda deixou uma recomendação:
“Professor Pacheco, a Ponte não está, nem nunca esteve sozinha. Ainda ireis defrontar muita inveja e mediocridade. Mas ireis resistir.
Este projeto só poderá acabar… por dentro”.
Por: José Pacheco
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