Arroteias, 23 de setembro de 2041

A “Escola X” era uma instituição da rede particular de ensino da capital de um dos estados do Brasil. Acolhia alunos provenientes de famílias de classe média-alta. Dispunha de um belo projeto (escrito), no qual pontificavam valores inscritos na Lei de Diretrizes e Bases: autonomia, respeito, democraticidade.

O projeto (escrito) continha abundantes citações de autores consagrados, num discurso feito de pedagogia pseudo-humanista e de caricaturas de construtivismo. A prática era a negação daquilo que estava escrito no projeto.

Acompanhados de pais que, conscientemente, aderiram ao projeto, alguns professores da Escola X tomaram a iniciativa de rever práticas e lhes conferir coerência. Crentes de que a autonomia seria construída através da cooperação, perguntavam:

“Como será possível desenvolver autonomia numa aula, quando se considera o professor como objeto, mero executante de determinações vindas de superiores hierárquicos?”

Foram instalando dispositivos, refletindo efeitos, trabalhando gratuitamente, fora do horário de aula, em equipe. Excelentes resultados não demoraram a surgir. Logo, também apareceram torpes reações. Professores (não sei se poderei dar-lhes tão digno estatuto) sabotaram o trabalho dessa equipe. E todo o esforço se perdeu entre os caprichos do dono da Escola X e a conivência de serviçais “professores”, que, para não perderem o emprego, perderam a dignidade. “Professores”, cuja desonestidade intelectual foi recompensada com tablets oferecidos por um chefe que cria que o dinheiro poderia comprar consciências.

Decisões com obediência bovina comunicadas (ou, melhor dizendo, impostas) por uma coordenadora aos professores.

Um diretor ignorante do que a pedagogia fosse tomou decisões carentes de fundamentação pedagógica, científica, ou de mero bom senso, e que feriam os valores consagrados no projeto da instituição. Herdeiro de uma cultura autoritária, impôs os seus caprichos, beneficiando a representação conservadora que muitas famílias-clientes tinham do que fosse uma escola e um projeto.

Aliás, verifiquei que os pais dos alunos ignoravam o conteúdo do projeto. Aquela escola transformou-se numa fraude. Conceitos como democraticidade, diálogo e responsabilidade ética continuavam a enfeitar o projeto (escrito), enquanto os padrões de comportamento cotidiano refletiam uma herança civilizatória calcada na dominação, no autoritarismo.

Os educadores, que ousaram não concordar com absurdas decisões, não puderam fazer ouvir a sua voz. Foram intimidados, ostracizados e até mesmo despedidos. O trabalho sério de reflexão sobre as práticas, um acervo de rica documentação arquivada num computador, desapareceu misteriosamente. Ninguém soube indicar o seu paradeiro.

A Escola X continuou cativa de uma concepção de produção em série, do papaguear instrucionista. Alguns pais, os mais conscientes dessa situação, reagiram, exigiram o cumprimento do projeto. Porque não foram escutados, levaram os seus filhos para outras escolas.

Denunciei as contradições, mas isso de nada serviu. Afastei-me da Escola X. Mais uma iniciativa de professores sérios fora frustrada.  Mas não pense que os pais e professores desistiram – foram recomeçar em outro lugar.

Nos idos de vinte, a situação atrás descrita não era inédita; era bem comum, aliás. E permitia-nos perceber uma das razões pelas quais o Brasil atravessava tempos sombrios. O sistema de ensinagem estava imerso numa profunda crise, afetado pela corrupção intelectual e moral.

 

Por: José Pacheco