Rio das Ostras, 20 de agosto de 2041

Aquilo que vos descrevi na cartinha de ontem foi obra de uma equipe de educadores éticos e aconteceu muito antes da incursão da Ferrero no construtivismo. As obras dessa extraordinária educadora, como “Psicogênese da Língua Escrita” revelaram processos de aprendizagem, que questionaram métodos tradicionais de alfabetização, colocando o foco da aprendizagem nos mecanismos cognitivos utilizados na iniciação à leitura e à escrita.

O processo de letramento é um processo de inclusão. O aprender a ler é feito de desejo e esforço, e a linguagem é aprendida socialmente, nas interações verbais, como nos avisam Bakhtin e Freire. Quando, uma professora reprodutora do método fônico quis ensinar aos seus alunos a letra fê, recorreu a uma daquelas frases de antologia, que só traduzem desprezo pela inteligência e criatividade da infância. Leu para toda a turma, ao mesmo tempo e do mesmo modo:

A mãe afia a faca.

A Fia sou eu!” – exclamou uma aluna.

Não é nada disso, Jéssica! Eu disse afia! Afia é como… amola. Percebeste?” “A mola?” – perguntou a aluna, com cara de nada entender.

Sim. Amola! Já vi que compreendeste!” – concluiu a mestra.

Por este fonético equívoco e por outros é que alguém chegou a dizer que a linguagem era fonte de mal-entendidos.

Comunicar é uma palavra que vem do latim “communicare”, pôr em comum, relacionar-se. Pressupõe o estabelecimento de laços. Mas como se poderia atingir esse desiderato, se as falas trocadas entre quem as emitia e quem as recebia estavam, quase sempre, em diferentes “comprimentos de onda”?

Enquanto visitava uma escola, perguntei a um pequenito:

Estás a ler essa revista?

Não. Eu estou só vendo e cortando. Não estou lendo!

Sábio moço! Tinha consciência de que cortar de uma revista, palavras “que tivessem o ca e o co”, como mandara fazer a professora, não era o mesmo que ler. A criança nunca lera o Boff, mas sabia que cada leitor era coautor, que cada leitor lia e relia com os olhos que tinha, porque compreendia e interpretava o mundo a partir do mundo que habitava.

Nos idos de vinte, a maioria dos professores continuava a reproduzir o instrucionismo e a condenar milhões de alunos ao analfabetismo. E se deixavam envolver em debates estéreis como os que visavam definir qual era “a melhor idade para começar o fundamental”. Talvez por isso, a alfabetização de adultos crescesse exponencialmente.

Já adultos, os alunos sabiam por que queriam aprender a ler:

Eu vim aprender a ler, para poder ler os bilhetes que estão nos bolsos do paletó do meu marido”.

Mas, também os mais jovens nos davam lições de pedagogia. Como a Luciana, do oitavo ano:

Ler é saber em silêncio”.

Em 1880, um punhado de irlandeses travou guerra contra um administrador chamado Boycott. O personagem (de cujo nome advém o vocábulo “boicote”) foi obrigado a abandonar o país. Creio ter sido mais fácil aos irlandeses terem-se visto livres do dito Boycott do que uma escola conseguir detectar e anular os boicotes que dentro dela se sucediam, pondo em risco a concretização do seu projeto (que escassos professores conheciam…) e a aprendizagem da leitura e da escrita.

Queridos netos, eu sei que estou sempre a dizer o mesmo. Mas não desisto de fazer lembrar pecados velhos. Mais de trinta anos de prática numa “sala de aula” diferente, onde todos aprendiam a ler “na idade certa” fizeram com que eu visse a “realidade” com diferentes olhares. E, se vos falo de situações de antanho, é porque acredito que, em 2041, lentamente, a memória desses conturbados tempos se vai apagando. Não poderemos correr o risco de esquecer.

 

Por: José Pacheco