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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXLV)

Amora, 10 de setembro de 2041

Rubem Alves propunha que a educação fosse romântica. E eu lhe propus que fosse, também, conspiradora. Sob esse signo, em 2004, nasceram os “Românticos Conspiradores”. Em 2013, eles elaboraram o “Terceiro Manifesto da Educação”. Esse documento foi aprovado na primeira C.O.N.A.N.E. – Conferência Nacional de Alternativas para uma Nova Educação – e acolhido pelo Ministro da Educação, na pessoa da minha amiga Jaqueline Moll.

A Jaqueline foi uma das subscritoras do “Manifesto para uma Educação Democrática e Humanizadora”, de 2021. Eu acompanhara o excelente trabalho que ela havia desenvolvido no “Mais Educação”. E me orgulhava por estar ao lado dela e de outros admiráveis mestres, na assinatura desse manifesto.

Nesse já distante 2001, pedi à Tina e à Amanda que o enviassem aos mais de mil educadores que, direta ou indiretamente, participavam do processo formativo de criação de protótipos de comunidade de aprendizagem. E convidei esses educadores para o subscrever. Porque o texto era um convite à participação:

Nós, professores e pesquisadores envolvidos em projetos e ações para uma educação democrática e humanizadora, queremos expressar aqui nossas preocupações em relação ao trabalho dos educadores em face do que vem acontecendo, neste momento, em nosso país, na política, na economia e, principalmente, na saúde e na educação.”

A elaboração do documento fora, também, um freiriano gesto de denúncia e anúncio, um ato de coragem:

“Em nome dos valores que compartilhamos em relação à vida, à saúde, à educação, ao ambiente, queremos expressar neste Manifesto nosso profundo desacordo com o que vem acontecendo em nosso país no campo político, econômico, cultural, sanitário e educacional e, ao mesmo tempo, chamar a atenção dos educadores brasileiros sobre os retrocessos atuais, principalmente nas áreas da educação e da escola.”

O manifesto denunciava “o desconhecimento por parte das autoridades do governo e dos políticos do Congresso Nacional do Plano Nacional de Educação 2014-2024”. Uma avaliação realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais revelara uma realidade preocupante. O Brasil apenas cumprira uma das vinte metas previstas para serem atingidas, entre 2014 e 2024. As restantes estavam longe de serem alcançadas ou apenas parcialmente tinham sido cumpridas.

A única meta integralmente atingida no PNE era aquela que se referia à formação de professores do ensino superior. E dessa nem é bom falar! O vosso avô teria muito que dizer sobre a deformação que se fazia. Se quiserdes, talvez o faça, mas em outra cartinha.

A crise gerada pela pandemia de Covid-19 “tinha as costas largas”, fora apontada como possível causa de afetação dos números do plano:

“Em que a pandemia influenciará o próximo período é uma incógnita” – rezava o relatório do Inep – “Não é resposta simples de se obter, para onde estamos indo.”

Essa ambiguidade não conseguia disfarçar a realidade – estávamos indo para “o fundo do poço”, como dissera um ministro. Quando deveriam procurar a sua maioridade educacional na obra de um Milton Santos, ou de uma Maria Nilde, os educadores brasileiros insistiam em importar inovações requentadas, de comprar gato por lebre, desde que o gato fosse estrangeiro.

Por falar em gato, recordemos Lewis Carroll, que pôs a Alice à conversa com o felino:

“Podes dizer-me, por favor, que caminho hei-de seguir? 

“Isso depende muito do sítio onde queres chegar.” – respondeu o Gato.

“Não me preocupa muito onde vou chegar”. 

“Então, não interessa por que caminho hás-de seguir.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXLIV)

Santo António da Charneca, 9 de setembro de 2041

Prometi falar-vos do Manifesto de 2013 e aqui cumpro o prometido. Ele começava por denunciar os péssimos resultados obtidos pela escola da ensinagem, que funcionava à revelia do disposto na Constituição, na Lei de Bases e em outros dispositivos legais.

A informação estava acessível aos jovens, como nunca estivera. Porém, as escolas mantinham-se presas a formas arcaicas de transmissão de informação. Os educandos não dispunham de tempo de aprender, porque estavam envolvidos numa competição por boas notas.

No frontal de anônimos coletivos, alunos enfileirados, em círculo, em semicírculo, ou outra modalidade de grupos estáticos, eram impedidos de se expressar, de produzir conhecimento e de o compartilhar. Urgia que educadores e gestores entendessem que escola era, também lugar e tempo de criação de vínculos afetivos. Como cultivar amorosidade no atribulado cotidiano das salas de aula e nas agendas lotadas dos professores?

Alertados pelo caos provocado por políticos irresponsáveis, educadores conscientes preparavam caminhos para uma sociedade solidária, justa, sustentável. Apontavam diretrizes para uma Educação do século XXI: o efetivo cumprimento da lei; passar de gestão hierarquizada para práticas colegiadas, de autonomia, envolvendo a participação das comunidades; operar transformações nas estruturas de comunicação, intensificando a colaboração entre instituições e agentes educativos; praticar educação integral em tempo integral; ressignificar o papel da instituição escolar, para que agisse como locus de construção de conhecimento; garantir condições de gestão democrática; concretizar a efetiva diversificação das aprendizagens, tendo por referência uma política de direitos humanos, que a todos garantisse as mesmas oportunidades educacionais e de realização pessoal; organizar um debate público fraterno e fundamentado, auxiliando a família e a sociedade a discutir vivências; trocar a competição pela colaboração; considerar a escola como espaço-tempo de relações sociais, reafirmando que a inclusão escolar era também social.

Era como que um arrojado programa de conversão da Escola aquele que o Manifesto de 2013 propunha. O Manifesto de 2021 recuperaria esse rol de intenções. E eu me questionava sobre o modo de as concretizar.

Em 1932, já se escrevera que “na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobrelevava em importância e gravidade ao da Educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podiam disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional”.

Quase um século decorrido, muitos dos principais problemas apontados pelo Manifesto, como a equidade no acesso e na qualidade do ensino, estavam longe de ser resolvidos. A “libertação espiritual e econômica do professor, mediante uma formação e remuneração equivalentes, que lhe permitissem manter a dignidade indispensável aos educadores” ainda continuava comprometida por uma formação de professores deformadora e por um estatuto social depreciado. A profissão envelhecia. Pouca gente desejava ser professor.

Em 2021, o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” completava 89 anos. Tal como os manifestos seguintes, o documento assinado por alguns dos maiores intelectuais da época assustava pela sua atualidade, mostrava que a discussão sobre a Educação não era recente e que quase nenhum impacto tivera nas práticas escolares e educacionais.

Subscrito, também, por eminentes educadores, o manifesto de 2021 corria o risco de sofrer idêntico destino.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXLIII)

Palmela, 8 de setembro de 2041

Quando arriscaríamos um “golpe de asa”, quando partiríamos do que éramos para sermos algo mais? Sem prescindir do debate sobre a necessidade de mudança, quando mudaríamos?

Como vos disse na cartinha de ontem, um novo paradigma emergia no caos do setembro de vinte e um. Não sugeria um corte radical com a tradição, em nome de caprichos modernistas, porque debaixo do Sol, não havia coisas novas, mas feitas de uma nova maneira: “non nova, sed nove”.

Tudo se transformava, assumia novos contornos, mas não poderia haver mudança no fazer sem uma concomitante transformação no modo de pensar. No oitavo dia desse setembro, partimos do fazer, para uma freiriana dialética, que nos levaria da mudança para a inovação. O “paradigma emergente” tomava forma concreta na educação.

A adoção de um determinado paradigma educacional e consequente assunção de uma prática, não é neutra. Reflete a opção por uma determinada visão de mundo. Num mundo em que imperavam princípios de disjunção, um pensamento simplificador impedia a conjunção do uno e do múltiplo, anulava a diversidade. Um paradigma humanista predominava nos documentos de política educacional. Porém, na prática, pontificava o paradigma racional, a par do tecnológico, que ganhava relevância, por efeito da ingenuidade pedagógica de entusiastas do uso das tecnologias digitais.

A produção científica no campo das ciências da educação dizia-nos que o ato de aprender não deveria estar centrado no professor, nem no aluno. Que aprendíamos na intersubjetividade, mediatizados pelo objeto de estudo e pelo mundo, a partir de necessidades pessoais e sociais. Anunciava-se a aprendizagem centrada na relação, geradora de vínculos. Mas, alheada da dimensão científica, a escola da aula criara raízes culturais de difícil erradicação. E o velho modelo prolongou a sua agonia, até meados de vinte.

A vida foi para mim generosa. Apesar de me oferecer algumas passagens pela universidade, me manteve no chão da escola e isso me protegeu de “cegueiras brancas”, me ofereceu oportunidades de ultrapassar crises de profissionalidade. Bem cedo me obsequiou com a influência de três professores, que eu recordo com ternura.

O primeiro foi um professor padre, que entrou na sala e perguntou:

O que quereis aprender?” 

Desse padre-professor herdei a inquietação, que me conduziu ao primeiro passo de uma aprendizagem que também lhe fiquei a dever: a da escutatória.

Tive um professor-poeta, que me ensinou que existe beleza na arte de ensinar a aprender. Guiou-me pelas palavras que estavam para além das palavras, através das ideias que as palavras ocultam.

A mais importante das aparições aconteceria quando já eu fizera dezessete anos. Apaixonei-me pela professora de francês, logo na primeira visão – amor platónico, como é bom de ver. Era uma mulher fantástica, que se envolvia no que ensinava. Sentíamo-la presente, autêntica, apaixonada. As suas aulas – que eram mais uma espécie de liturgia – produziam em mim um efeito mágico. Eu ficava a contemplá-la, vinculado ao que ela dizia, antropofagicamente exaurindo tudo o que ela era.

Também fui professor universitário e isso me ajudou a compreender as origens de um oculto drama. Ao longo de meio século, desenvolvi vária incompetências. Uma delas foi a de prescindir da arte da oratória e a de venerar a da escutatória

Na escola da aula, fui aluno de nutrir afetos. Em tempos sombrios, com um padre, um poeta e uma professora de francês, aprendi a ver e a escutar.

Bem haja quem em mim acendeu memórias de um tempo de profundas transformações.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXLII)

Portalegre, 7 de setembro de 2041

Queridos netos,

O início dos anos vinte foi marcado pela instabilidade política. A administração educacional agia com laivos de autoritarismo, anulando todo e qualquer esboço de inovação. Ao poder constituído de então interessava manter um sistema de ensinagem reprodutor de ignorância. Desprovida de senso crítico, parte da população era manipulada pela praga das “fake news”. Muitos bons educadores se deixavam controlar por uma administração corrupta. Famílias abdicavam de reivindicar para os seus filhos o direito à educação. Sobre milhões desses filhos o Estado lançava o anátema do abandono intelectual. Impunemente!

No agosto de há vinte anos, quando a covid ainda ceifava centenas de vidas e menos de vinte por cento dos brasileiros estavam vacinados, o negacionismo decretava o “regresso às aulas”. Prudentemente, o CNE se manifestara por manter aquilo a que chamavam “ensino remoto”, até ao mês de dezembro. A administração dependente dos caprichos de um ministro excludente fez orelhas moucas à sábia recomendação. Outro ministro da educação admitira que o ensino médio “estava no fundo do poço“.  No 3º ano do ensino médio, só 4% dos alunos sabiam o que deveriam saber no domínio da matemática. O índice de proficiência em língua portuguesa ia pelo mesmo caminho.

Entre os corredores do ministério e os gabinetes das secretarias passeava a corrupção intelectual e moral. Nas escolas, reinava o autoritarismo. Na Internet, a educação passava de direito para mercadoria.

Por esse tempo, me lançaram um desafio. Talvez por malícia, talvez não. Convidaram-me para redigir um prefácio para um livro que dava pelo título de A Arte da Aula. Logo a mim, que me livrara de dar aula, há mais de meio século!

Nunca recusei um desafio. Aceitei-o e agradeci.

Considerei um privilégio me terem sido dados a ler depoimentos de mestres da arte de “dar aula”. Eram exercícios de uma escrita sensível, reflexos de uma tomada de consciência do destino da escola e da necessidade de humanização do ato de ensinar.

Falavam-nos do ofício de professor universitário e das marcas que esse exercício imprimiu nas suas vidas e nas dos seus alunos. Sobretudo, demonstravam uma verdade nem sempre evidente: havia professores que não usavam a pedagogia como mera ciência, mas como a arte de ensinar a viver.

Mesmo exercendo o seu múnus profissional num tempo em que não tiveram que competir com máquinas inteligentes, não ficaram imunes à necessidade de transformação da educação. Apenas se decepcionavam com a falta de interesse de muitos alunos, que, inertes, prenunciavam o surgimento de uma crise de relações humanas, o anúncio da falência de um determinado modelo de sociedade e de escola, que a universidade, desgraçadamente, perenizava.

As omissões das ciências da educação tinham aberto um campo fértil para o aventureirismo negacionista. Num triste setembro dos idos de vinte, uma avenida ficou repleta de bonsais humanos, subprodutos de um modelo educacional imposto por ridículos tiranos. Talvez esse incidente – ou sinal de alarme de aproximação à barbárie – tivesse sido o despertar da consciência da necessidade de gestar uma nova educação para o mundo.

Nesse mesmo setembro, enquanto a UNESCO retomava retóricos debates sobre a “educação do futuro”, essa educação se fez presente, sob a forma de protótipos de comunidades de aprendizagem. Uma nova construção social de educação, a humanização do ato de aprender e de educar, adiada por mais de cem anos, emergia do caos.

Desse e de outros prodígios vos falarei em próximas cartinhas.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXLI)

Comporta, 6 de setembro de 2041

Que a memória de idoso não me traia, pois, hoje, recordarei uma conversa entre avô e neta.

A Alice era uma jovem avisada e previdente. Num dos muitos anos de estudos que ainda teria pela frente, do Jardim de Infância à Faculdade de Psicologia, poderia sair-lhe ao caminho um mestre fóssil, como o vizinho Quim, professor na casa dos cinquenta e nostálgico “dos tempos em que a escola era escola, do tempo em que se aprendia a ler e a fazer contas de dividir por dois algarismos logo na segunda classe”.

A Alice queria tirar tudo a limpo, não fosse o diabo tecê-las. E era uma máquina de fazer perguntas:

“Mas por quê, avô? Por quê? Diz-me!”

A Alice fazia as perguntas fundadoras de qualquer reflexão sobre a Escola. Perguntas que, em recuados tempos, poucos ousavam fazer, por quase todos se terem esquecido de que também tinham sido crianças, que também tinham passado pela idade dos porquês.

As perguntas da Alice eram perguntas do senso comum, que não deixavam de ser perguntas de bom senso. A pequena não se cansava de me interpelar sobre usos e costumes. Não lhe escapava mesmo nada.

No intervalo da manhã, escutou uma conversa entre professoras (“por acaso”, segundo ela me disse) e sobressaltou-se com uns zunzuns.

“Ó avô, é verdade que, no teu tempo, as escolas tinham campainhas penduradas nas paredes?”

“É verdade, Alice”.

“E para que serviam as campainhas?” 

Como se poderia explicar a um ser inteligente como a Alice o que não tinha explicação? Poderia a Alice acreditar que, nas escolas de antigamente, alunos e professores andavam a toque de campainha? Seria possível que a Alice entendesse as razões pelas quais havia um toque para ir para a aula de Matemática, outro toque que mandava ir para a aula de Ciências, outro toque que reencaminhava corpos para uma aula de História, e por aí adiante?

Pensando em voz alta, murmurei a palavra “aula”. Ó palavra, que disseste!

“O que eram “aulas”, avô?” – disparou a Alice.

“Depois, eu explico” – respondi, tentando ganhar tempo, pois não estava certo de conseguir explicar à Alice o sentido de velhos artefatos como “aula”, “tempo letivo”, ou “carga horária”.

“Está bem, tu depois explicas. Olha que eu não me esqueço! Mas juras que é mesmo verdade que, quando as campainhas tocavam, os meninos tinham de entrar, ou sair, ou chegar, ou ir embora?”

“É verdade, Alice”.

“Mesmo que não lhes apetecesse?” – replicou.

“Sim. Mesmo que não quisessem. Mas não vês que isso era antigamente, minha querida? Não vês que na tua escola já não é assim?”

“Pois! Mas, eu ouvi dizer que ainda há algumas escolas onde…”

“São poucas, que eu sei. Sossega!” 

Numa universidade onde decorria um congresso, um “palestrante” aluno da Ponte referiu que, na sua escola, não havia horários iguais para todos. Logo foi interpelado:

“Não acredito! Como é possível não estares colocado num terceiro, ou num quarto ano?”

A criança contestou:

“O senhor não entendeu. O que eu disse foi que na minha escola não se faz como em outras, não se divide os meninos por turmas e por anos. Porque isso não interessa”. 

O universitário cortou-lhe a palavra e atirou, num tom a roçar o cinismo:

“Não interessa? Está bem! Vá lá! Diz lá em que ano estás!” 

O moço respirou fundo e olhou na direção do seu professor, como quem pergunta: “O que hei-de fazer desta chata criatura?” 

O professor encolheu os ombros: “Faz como quiseres!”

E o aluno “palestrante” perguntou:

“O senhor não sabe mesmo em que ano eu estou?” 

Triunfante, o universitário usou o imperativo com ênfase redobrada:

“Não sei, não! Diz lá!” 

O jovem obedeceu. E disse:

“Estou no mesmo ano em que o senhor está. Em 1996.”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXL)

Setúbal 5 de setembro de 2041

Antes que chegasse um setembro de maus augúrios e bons auspícios, alguns mestres da universidade de antanho confessavam surpresa, incômodo, inquietação:

Eu me esforço para dar uma aula muito concentrada. Mas, ao longo desses anos todos, enfrentei muitas vezes a apatia dos alunos. Os alunos mudaram muito. Não sei o que faria hoje, se tivesse que voltar a dar aula na universidade. Tenho a impressão de que os alunos não me respeitariam nem um pouco. É outra geração, outro tipo de gente. Você precisa de técnicas de como despertar a atenção deles. É difícil, viu? Como lido com a apatia na sala de aula?”

Mais de metade dos docentes não se sentia profissionalmente realizada, não se sentia valorizada e apontava causas do desgaste como: “turmas com elevado número de alunos”, “comportamento indisciplinado”, “desmotivação”, “falta de apoio”.

Não se identificava a raiz do dito “bournout”. Mas, já Bauman falara de uma cegueira moral, de uma cegueira ética, a cegueira daqueles que veem. E Saramago, metaforicamente, referia-se a uma cegueira social, quando apelava ao dever moral dos que enxergavam.

Kant afirmava que o objetivo principal da educação era o de “desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele fosse capaz”. O professor universitário deveria reconhecer que se constituía em exemplo e que a prática da aula não permitia alcançar o desiderato kantiano. Cedo se sentia o embaraço:

Considero que as minhas primeiras aulas foram uma coisa muito próxima do desastre. Eu me lembro que ouvi muita reclamação. Os alunos reagiram, querendo, enfim, uma mudança daquilo. Mas os outros que davam aula também não eram muito diferentes de mim.

O pessoal gosta de ouvir a aula, mesmo que ela não seja muito agradável ou inteligível. E, aí, entravam esses vícios, não é? E os alunos sentiam isso e absorviam isso como um modo de dar aula. O aluno sente que você está fazendo aquilo burocraticamente”.

A tentação da disseminação em escala de paliativos do instrucionismo e de mostrar efeitos de curto prazo provocavam cegueira branca naqueles que detinham os recursos e o poder de decidir. Mas, o que mais concorria para a manutenção da “escola da modernidade” era o obsceno silêncio dos universitários das ciências da educação. Não denunciavam. Nada anunciavam.

Dirigi-lhes convite para um debate construtivo, fundamentado, fraterno. Em vão o fiz. Alguns eram inacessíveis, pois habitavam o Olimpo da teorização. Outros eram como freirianos não-praticantes. Cultuavam Habermas, Papert, Freire, publicavam literatura de ficção científica, dado que a teorização de teorizações não fertilizava as práticas do chão de escola.

Decorria o mês de maio de 1968, quando Agostinho da Silva assim falou perante os deputados da Câmara:

Na Universidade, o professor tem sido um sujeito que entra para dar aulas. A Universidade ficou no século XIX e os alunos já estão no século XX”.

Meio século decorrido, a Universidade permanecia vetusta, instrucionista. Milhões de alunos estavam em situação de abandono intelectual. Professores adoeciam. A OCDE promovia inúteis cimeiras sobre o “bem-estar dos professores”. O que se discutia nesses encontros era a manutenção de um profundo mal-estar.

Um secretário-geral afirmou:

Não se deve perder a oportunidade de colocar o bem-estar dos professores no centro das políticas de todos os países. O bem-estar terá de ser percebido como um tema político de primordial importância”.

Estava eminente o “bem-estar dos professores”, porque já se anunciava o “canto do cisne” da velha escola.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXXIX)

Paio Pires, 4 de setembro de 2041

A “Declaração universal para a responsabilidade humana” dizia-nos que a humanidade, em toda sua diversidade, pertencia ao mundo vivo e participava da sua evolução. Confirmava que os seus destinos eram inseparáveis e propunha princípios gerais, que poderiam servir de base para um novo pacto social.

Esse pacto nada mais era do que a utopia agostiniana. O Mestre dizia que o que mais importava não era educar, mas evitar que os seres humanos se deseducassem.

No discurso sobre educação, a palavra utopia era, geralmente, sinônima de impossibilidade. Mas o vosso avô a encarava como algo que requeresse intencionalidade e ação. Concretizar utopias – recriar vínculos, rever e re-olhar, reelaborar as práticas – reconfigurava a metáfora do Mito de Sísifo, o inédito viável freiriano.

O mestre Morin falava da necessidade de uma metamorfose, de uma reforma moral, lograda através de profundas mudanças no modo de educar e numa economia ecológica e solidária. No setembro de há vinte anos, a nova educação, que emergia do sonho de todos nós, deveria formar o cidadão democrático e participativo, o ser humano sensível e solidário, fraterno e amoroso.

Da universidade, já recebíamos indícios, frágeis indícios de que havia professores que aprendiam. Que se apercebiam da sua incompletude e sabiam que o ser humano estava em permanente estado de projeto, de reelaboração da cultura pessoal e profissional. Congratulava-me com a iniciativa de universidades, que se assumiam como “multidiversidades”. E reconhecia, no afã de alguns companheiros e companheiras da UNIPROSA alguns pontos de luz, pontos de partida para uma reflexão necessária e urgente: quando e como se aprende?

Alguns universitários das ciências da educação já manifestavam consciência de que chegara o tempo da pós-aula velha de há duzentos anos. Outras “aulas” se revelavam necessárias – quando o discípulo estava pronto, o mestre surgia:

“O aprendizado é sempre um jogo de convivência social, de inteligência civil. Acredito que os professores dão aulas sem saberem muito bem como e por que conseguem se equilibrar no arame das experiências das suas aulas.

Muitíssimas não dão certo e imediatamente se percebe quando isso acontece na cara e no corpo dos alunos. Todo aprendizado bom supõe que o aluno não tenha sua aula, mas que ele aprenda, que ele leia, que ele estude. E esse ler e estudar pode ser ler um livro, pode ser ver um vídeo, pode ser estudar em casa, pode ser estudar em outro qualquer lugar”.

Três rupturas paradigmáticas se sucederam em vertiginoso ritmo, sem que a Universidade se desse conta. Após décadas de adaptação de teorias existentes a realidades que se transformaram e perante aceleradas mudanças sociais e inovação tecnológica, os dados da pesquisa no campo da neurociência e da inteligência artificial, ou a sutil convergência entre a teoria da complexidade e a produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigiam que, para além de uma tomada de consciência da obsolescência do modelo escolar, fosse assumido um compromisso ético com a educação.

A transição entre paradigmas, que a Universidade parecia iniciar, talvez fosse mesmo o prenúncio do “canto do cisne” da aula. Estaríamos perante os últimos lídimos representantes do “aulismo”? O ensino iria conseguir, finalmente, lograr gerar aprendizagens? A nobre arte de ensinar se reafirmaria, sob novos formatos? Aproximar-se-ia o derradeiro ato da obsoleta ensinagem? A universidade se redimiria de velhos pecados?

O início de setembro de há vinte anos nos daria resposta.

 Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXXVIII)

Almada, 3 de setembro de 2041

Admiro os mestres de antanho, exímios na arte da aula. Mas, sem negar a pertinência desse modo ancião de fazer escola, perguntavas-lhes se haveria outros modos. E, se nesses eventuais e ignorados modos se daria… aula.

De passagem, também lhes demandava:

“Por que dais aula? O que são “escolas”?

À primeira das perguntas nada respondiam. À segunda, invariavelmente, diziam ser um prédio composto de salas de… aula.

Havia ruído na comunicação. Não era a falar que a gente se entendia –desentendíamo-nos. A representação mental da palavra “escola” estava alojada na gaveta do “pensamento único”, impedindo de ver realidades com olhos que veem muito para além da aparência das coisas.

Aqueles extraordinários mestres eram traídos pela intenção de se reverem como protagonistas do fim de uma era: a era da arte da aula. Esse era o único modo de ser professor de que tinham conhecimento:

Dar aula, para mim, como lhes disse antes, foi um desdobramento da minha vida de estudante. Passei de estudante para professor sem perceber. Eu era aluno e depois virei professor. Não tinha a menor ideia de como virei professor e comecei a dar aula. 

Eu me lembro de como foi minha primeira aula. A gente se assustava muito e esse susto permaneceu durante algum tempo. Alguém chegava em uma sala e falava. Quem entendeu, entendeu. Quem não entendeu, que entendesse. Não havia propriamente uma preparação metódica para aquele que iria ser professor. A maioria dos meus professores achava que dar aula não é uma coisa que se aprende a fazer. Se faz. E cada um faz do seu jeito”. 

Carentes de formação em domínios como a Pedagogia, a Filosofia da Educação, a Psicologia da Educação, ou a Sociologia da Educação, alguns mestres lograram instruir. Mas, ignoravam que o seu múnus profissional ia muito para além da instrução. A paixão de ensinar e o profundo conhecimento científico das áreas de especialização lhes tinha permitido transcender-se, sem deixarem de lamentar “a fraca preparação de muitos dos seus alunos”:

Não tinham preparo. Elas tinham que recuperar muita coisa, para poder acompanhar minimamente um curso. Me mostravam com dados bastante objetivos que o gap de aprendizado não seria facilmente sanado nos dois anos previstos para o curso. Tinham uma visão mais pessimista sobre a possibilidade de contornar essa formação deficiente”. 

Os professores do Ensino Superior queixavam-se dos baixos índices de proficiência dos alunos do “ensino “inferior”. O “preparo” do Ensino Médio era condicionado pelo Enem. O Ensino Médio projetava a culpa no Fundamental. O Fundamental atirava culpas para a Educação Infantil e Educação Infantil responsabilizava as famílias, não podendo estas responsabilizar o… Criador.

O aulismo estava na base da sequencialidade regressiva, que condicionava as iniciativas dos legisladores e deitava a perder todo e qualquer esforço de mudança. Pela via da sequencialidade regressiva, o Ensino Médio determinava os objetivos do ensino básico, contribuindo para a perenização de fenômenos como a elitização, a discriminação e a exclusão social. Mas… a Universidade não seria a matriz do sistema?

Era imensa a sua responsabilidade:

“A aula é o principal acontecimento da universidade. A universidade gira em torno da aula. Ela é o acontecimento para o qual você se prepara, os alunos se preparam. Se o professor que dá a aula presencial se torna monitor, seu papel diminui. Isso afeta o seu prestígio, a sua valorização”.

O exemplo vinha de cima, do ensino superior. Diretamente, isomorficamente, para o ensino inferior.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXXVII)

Costa da Caparica, 2 de setembro de 2041

Nos idos de vinte, o desgaste emocional, o cansaço, o desânimo, a desmotivação dos professores, talvez fossem sintomas do final de um tempo – do tempo da arte da aula.

“Sinto que hoje há um medo, uma insegurança no ar, uma falta de confiança entre aluno e professor, que não havia no meu tempo, ouço-me dizer coisas que já pensei no passado, que já escrevi, que estavam no meu entendimento anterior, mas que não haviam se evidenciado no presente daquela aula. É o pior momento que posso imaginar numa aula. Parece que você mesmo se perdeu no passado. Você começa a se sentir clonado por uma voz antiga em que, lá, talvez, havia inteligência, mas não mais aqui. Então é uma luta contra aquilo que você já pensou até. Você não pode ficar naquilo que já pensou alguma vez, pois você está reproduzindo como autômato uma experiência do texto que não está mais ali. Quando isso ocorre, a aula vai por água abaixo. Eu tendo a pensar nos efeitos negativos do flautista de Hamelin: se você está fazendo alguma coisa de que todo mundo na classe está gostando, alguma coisa você está fazendo de errado”. 

Apreciava a honestidade e até mesmo a humildade desses mestres, meus contemporâneos. Aposentado, eu empreendia tentativas de compreender por que razão, ao longo de uma longa carreira, esses insignes mestres sempre “deram aula”.

Aula tanto poderia significar “sala onde se lecciona”, como “lição”. Era suposto que, se o professor leccionava, uma aula serviria para que o aluno aprendesse a lição. Alguns amigos comentavam que as aulas que davam já não eram “como antigamente”. Diziam-me que as preparavam ainda com maior cuidado e precisão. Eu sabia que havia quem preparasse bem as suas aulas, quem definisse, criteriosamente, os objetivos, rigorosamente elaborassem planos e materiais auxiliares de ensino. Não duvidava de que fossem profundos conhecedores dos assuntos que leccionavam. Mas, em algum momento, teriam pensado bem para quem iriam “dar a aula”? Todos os alunos estariam “aptos a recebê-la”? Todos iriam aprender no mesmo tempo, do mesmo modo, no mesmo ritmo?

A partir do século XVII, a Pampaedia influenciou o formato da Escola, sendo determinante na emergência da Escola da Modernidade, no apogeu da Primeira Revolução Industrial. Nessa obra, Comenius afirmava ser possível ensinar a todos como se fosse um só. Depoimentos de insignes mestres eram prova contrária:

Para uma aula, a presença é fundamental, mas nem sempre ela se traduz como interlocução real. Por exemplo, quando só o professor fala – nem é porque ele queira, só. Falar de uma coisa que você está cansado de saber, de cor, e chega lá e despeja. Uma aula magnífica, mas que não chega a ninguém, não tem nada. Então, é uma coisa complicada”. 

Nunca demonizei a prática de “dar aula”. Apenas perguntava por que alguém a “dava”. Jamais alguém me deu resposta fundamentada. Sempre que um professor me perguntava como poderia ensinar um aluno a elaborar roteiros de estudo, ou portfólios de avaliação, invariavelmente, lhe respondia: “Dando aula”. Perante a réplica do professor – “Mas, eu poderei continuar a dar aula?” – eu acrescentava:

Se sabes dar aula, se és competente a “dar aula”, é isso que terás de continuar a fazer, até que te sintas disponível para mudar”.

Comenius não estava errado, se situado no seu tempo e no tempo da emergência da Escola da Modernidade, que correspondeu, com eficiência e eficácia, às necessidades sociais do século XIX. Nos idos de vinte, o que estava errado e fora de época era a manutenção de um modelo educacional do século XIX, em pleno século XXI.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXXXVI)

Alcântara, 1 de setembro de 2041

Certo dia, lançaram-me um desafio. Talvez por malícia, talvez não. Convidaram-me para redigir um prefácio para um livro que dava pelo título de “A Arte da Aula”. Logo a mim, que me livrara de dar aula, há mais de meio século!

Nunca recusei um desafio. Aceitei-o e agradeci.

Li e reli os capítulos do livro. E me considerei um privilegiado por me ter sido dar a ler depoimentos de mestres da arte de “dar aula”. Eram exercícios de uma escrita sensível, reflexos de uma tomada de consciência do destino da escola e da necessidade de humanização do ato de ensinar.

Falavam-nos do ofício de professor universitário e das marcas que esse exercício imprimiu nas suas vidas e nas dos seus alunos. Sobretudo, demonstravam uma verdade nem sempre evidente: havia professores que não usavam a pedagogia como mera ciência, mas como a arte de ensinar a viver.

Mesmo exercendo o seu múnus profissional num tempo em que não tiveram que competir com máquinas inteligentes, não ficaram imunes à necessidade de transformação da educação. Apenas se decepcionavam com a falta de interesse de muitos alunos, que, inertes, prenunciavam o surgimento de uma crise de relações humanas, o anúncio da falência de um determinado modelo de sociedade e de escola.

Isto escreveu um dos insignes mestres:

“Ao longo desses anos todos, enfrentei muitas vezes a apatia dos alunos. Sempre há uma meia dúzia que faz a diferença, que faz o curso valer a pena. Mas a maioria sempre foi, acho que sempre é, mais ou menos apática. Eu me esforço para dar uma aula muito concentrada e, em geral, me irrito com qualquer comportamento dispersivo dos alunos. Como lido com a apatia na sala de aula? Esse é um grande problema. Ouço o que meus ex-alunos, agora professores, me dizem. Me ponho na pele deles e fico pensando: meu Deus, acho que sofreria demais. Porque mudou muito, os alunos mudaram muito. Não quero nem dizer que sejam piores, não é isso. É outra geração, é outro tipo de gente. Mas, pensando naqueles meus alunos antigos, que eram apáticos – e eram apáticos por quê? Você precisa de técnicas de como despertar a atenção deles. É difícil, viu?”

Essas interrogações eram em menor quantidade do que os excertos que refletiam satisfação, realização profissional, num tempo em que mais de metade dos docentes não se sentia profissionalmente realizada, não se sentia valorizada e apontava causas do desgaste como “turmas com elevado número de alunos”, “comportamento indisciplinado”, “desmotivação”, “falta de apoio”:

“Eu não tinha ideia de quanto o tempo da minha juventude já podia ser ignorado pelos jovens de hoje. Dá impressão que você está continuamente fora do assunto, que não vai chegar lá, pois a distância cultural é muito grande e não há um discurso suficientemente formulado sobre esse fosso. Não sei o que faria hoje, se tivesse que voltar a dar aula na universidade. Tenho a impressão de que os alunos não me respeitariam nem um pouco. Eles têm uma linguagem que, provavelmente, eu teria dificuldade de acompanhar. Há uma diferença de geração muito grande”.

Já nesse tempo, a OCDE promovia inúteis cimeiras sobre o “bem-estar dos professores” e o que se discutia nesses encontros era a manutenção de um profundo mal-estar.

Um secretário-geral afirmou:

Não se deve perder a oportunidade de colocar o bem-estar dos professores no centro das políticas de todos os países. O bem-estar dos professores terá de ser percebido como “um tema político de primordial importância”.

Estava eminente o “bem-estar dos professores”, porque já se anunciava o “canto do cisne” de uma velha e doente escola.

 

Por: José Pacheco

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