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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXV)

Sabaúna, 9 de julho de 2041

Se o ser humano manifesta limites, possui, também potencialidades, que poderão, ou não, ser desenvolvidas e expressas a partir de ocorrências transformadoras. Foi no contexto dos processos de uma formação transformadora, que me redescobri herdeiro de uma herança crítica de professor primário a quem a Sociologia, a Psicologia, a História da Educação e outras ciências tocaram, num percurso profissional já meio feito.

Não era a experiência, enquanto tal, que contava, mas as aprendizagens que comportavam uma dimensão teórica e prática. O diálogo entre experiências complementares não consistia numa simples troca de conhecimentos empíricos. Era um exercício rigoroso, onde se jogava a totalidade da pessoa. A utopia fazia apelo a exigências antropológicas fundamentais, expressava o conflito entre concepções de Homem e de sociedade.

Ao cabo de vinte anos de Ponte, numa faculdade, me fizeram mestre. Percebi que aquilo que, na Ponte, havíamos feito com amor, desvelo e intuição pedagógica, também tinha fundamento teórico. E, desgostado, compreendi que os meus formadores universitários não praticavam a teoria que propagavam. Alguns tinham passado pelo chão de escolas, onde tinham tentado inovar. Em vão o fizeram. Desistiram de tentar. Se doutoraram. E se fizeram professores universitários.

Eram pessoas de alto gabarito intelectual, autores de vasta bibliografia e, entre eles, até contava alguns amigos. Vivêramos trajetórias trocadas. Fizeramos escolhas. Eles optaram por debitar teoria do alto da cátedra. Eu optara pela práxis (a prática com teoria) do chão das escolas. Abdicando de comparações maniqueístas, com extrema compaixão, busquei remir as suas contradições e incoerências. Reconhecia o mérito desses mestres e com eles aprendia. Mas, não fui capaz de lhes perdoar omissões perante a prepotência de lideranças tóxicas. Nem a perversa cumplicidade com burocratas ministeriais. Para eles, eu passara a ser um “incômodo”.

No tempo da Covid-19, com o apoio de áulicos, a formação assumiu um caráter literalmente virtual (no sentido de meramente teórico). A Internet se enxameara de empresas, sistemas de ensino e outras agências de deformação de professores, quase exclusivamente, sustentadas na modalidade curso, numa concepção autoritária, uniformizadora e anacrónica da ação pedagógica, incapaz de operar mudanças, ou de criar condições de inovação.

Atento à inutilidade da formação, que então se fazia, o amigo André aquiesceu a incluir no plano de formação da secretaria de Mogi um processo de reelaboração da cultura profissional dos professores, a que foi dado o nome de “aprender em comunidade”. Isomorficamente, homeopaticamente, círculos de estudo delineavam contornos de “círculos de aprendizagem”. Os processos de autoformação em equipe contemplavam a humanidade dos educadores, sendo coerentes com a indivisibilidade das dimensões biológica, mental e espiritual de cada pessoa.

A minha amiga Bianca tinha consciência da importância das mudanças operadas em Mogi. E me brindava com solidárias palavras:

“Fiquei tão feliz com o Projeto que está nascendo em Mogi.  Gosto de quem faz e não fica esperando acontecer! A Mogi desejo prosperidade. Às crianças eu digo: No início é difícil, mas com o tempo vão ver que era tudo que vocês sonham e merecem aprender a estudar. Aos pais desejo que não sejam tacanhos e que elogiem cada progresso. Aos profissionais de Mogi o meu carinho, a minha energia dourada, para os iluminar. E que o André e a vice-prefeita sintam o nosso ombro amigo”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXV)

Biritiba-Ussu, 8 de agosto de 2041

Entre os dias 9 e 12 do agosto de há vinte anos, a Revista Educação promoveu a homenagem de dois grandes educadores – os amigos Sérgio Cortella e Rubem Alves – e a eles juntou o meu nome.

Foi o meu amigo Rubem quem me deu a conhecer a Revista Educação. Acompanhei-no numa colaboração mensal e a mantive, após o seu falecimento. Foi no fraterno convívio, na sua casa brasileira e na minha casa portuguesa, que saboreamos crônicas e notícias, à mistura com cachaça de Minas e vinho tinto do Alentejo.

O Rubem me conduziu à descoberta de Anísio, que defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. O Rubem me levou ao encontro da Nise, do Florestan, da Nilde, do Lauro e de um íntimo Freire, sobre cuja integração na ortodoxa universidade o Rubem escreveu um…“não-parecer”.

Durante a ditadura, muitos mestres educadores se exilaram. No julho de há cinco anos, a morte do Rubem significaria um novo exílio? Este português abrasileirado assistira à segunda morte de Anísio, a morte da memória. Encontrara Freire sequestrado nos arquivos de teses das universidades, quando a sua obra deveria inspirar o labor dos educadores e das escolas. Estranhava não encontrar os livros do Mestre Lauro nas bibliotecas das faculdades de pedagogia. Que Brasil era esse, que ignorava a obra dos seus maiores educadores? Que país era esse, que os mantinha no exílio?

Esses mestres regressariam do exílio e chegariam ao chão das escolas, durante a década de vinte. Muito pelo engenho e arte do Rubem, que me trouxe para o Brasil, nas páginas de um livrinho (“A Escola com que sempre sonhei”).

Na sua primeira visita à Escola da Ponte, Rubem Alves deteve-se a observar uma menina, que consultava um dicionário. Perguntou-lhe por que o fazia. A menina respondeu:

Estou a fazer uma lista de palavras “difíceis” deste texto e a escrevê-las de uma maneira mais simples”.

O Rubem insistiu:

Foi um professor que te mandou fazer essa tarefa?” 

“Não.” – disse a menina – “Eu sei o sentido destas palavras. Mas os meus colegas pequeninos ainda não sabem consultar o dicionário. E eu decidi ajudá-los. Assim, eles compreendem o texto”.

Tal como a solidariedade em ato, que o Rubem testemunhou, as crônicas publicadas na Revista Educação não foram mais do que exercícios de escrita solidária. Nelas eu mostrava aos educadores que no Sul morava a nova educação do mundo.

Diziam-me ser uma utopia aquilo que eu escrevia na última página da Revista Educação. Mas, uma utopia é uma possibilidade que pode efetivar-se no momento em que são removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização. Tal como o Rubem utópico, também eu desejava “uma escola em que o saber fosse nascendo das perguntas que o corpo fazia”. Ansiava por uma escola em que o ponto de referência não fosse o programa a ser cumprido, mas o inteiro corpo da criança que vivia, se admirava, se encantava, perguntava, provava com a boca, errava, se machucava, brincava – uma escola que fosse iluminada pelo brilho dos inícios.

“Kairós”, palavra grega, significa “o momento oportuno”, tem o mesmo sentido que “Aevum”, que significa “Eternidade”. Quando o amigo Rubem distinguia otimismo de esperança, dizia-nos que o otimismo era da natureza do tempo, enquanto a esperança era da natureza da eternidade. Esperançosamente, após a partida do meu amigo, continuei a perseguir a utopia que me dizia ser possível que aquilo a que chamamos “Escola” pudesse sair de um longo, muito longo Inverno.

Nos idos de vinte, o longo Inverno da Educação deu lugar a tempos luminosos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXIV)

Rio Grande da Serra, 7 de agosto de 2041

No final da segunda década deste nosso século, uma rede de projetos discretamente se prefigurava, esboçando novas construções sociais de aprendizagem, à semelhança de uma Finlândia, que optava o abandono do tradicional ensino por disciplinas.

No novo modelo, que seria aplicado nesse país, por volta de 2020, todos os assuntos estariam interligados. Entretanto, outro ministério da educação, o da França, lançou uma reforma assente em três pilares: flexibilidade, autonomia e interdisciplinaridade. Essa reforma sustentava que as escolas deveriam “alterar a sua forma de ensinar, dando mais importância aos trabalhos de projeto, aos trabalhos de grupo e proporcionando aos alunos oportunidades de procurar relacionar a sua aprendizagem com aspetos práticos do quotidiano, tornando as suas aprendizagens úteis, coerentes e significativas”. O ministério classificava a sua reforma como uma “refundação da escola”.

Outra grata surpresa veio da Catalunha. Os colégios jesuítas dispensaram aulas e testes, eliminaram cursos, exames e horários. Derrubararm as paredes de suas salas de aula e criaram grandes espaços de trabalho em equipe, onde se adquiria conhecimentos através de projetos, com “acesso a novas tecnologias”. Um alto responsável jesuíta afirmou:

Em vez de olhar para o diário oficial, olhamos para o rosto das crianças e ajudámo-los a desenvolver os seus projetos de vida, para descobrirem os seus talentos. Juntamente com a família e a internet, procuramos construir pessoas”.

O modelo educacional jesuítico reproduziu por séculos um ensino fomentado pela cátedra universitária e replicada pelo mestre escola. Mas, até mesmo os jesuítas o aboliam, assumindo que “o trabalho escolar precisa de outras ferramentas, outras relações, outras dinâmicas”.

É o Colégio Jesuíta João XXIII, da Catalunha, quem o diz. E outras vozes se indignam, como a do meu amigo António:

Não podemos deixar a escola bloqueada por uma pedagogia medíocre. Quando se fala em diminuição do currículo, isso não pode ser sinônimo da velha ideologia do “back to basics”, isto é, de dar só matemática e português. Trata-se de conseguir que, em cada uma das matérias, se valorize a dimensão das linguagens e não a dimensão dos conteúdos. Isto é, que nós tenhamos os instrumentos para ascender ao conhecimento. Aprender não é ter uma hora de aula de matemática, mas sermos capazes de incorporar nessa aula a dimensão da educação integral”.

Como vos disse, as escolas jesuítas da Catalunha apostaram na renovação do modelo pedagógico, para se adaptar a novos tempos. Tomaram consciência da defasagem do sistema educacional perante a complexidade dos fenômenos societais e de novas necessidades sociais. Também intuiram que não seria suficiente adaptar, suprir deficiências com paliativos. E transformaram as suas escolas.

O projeto Horizonte 2020 ajudou a criar equipes, a diversificar e flexibilizar espaços, estimulou a participação das famílias; levou a uma gestão flexível do tempo, integrou valores. Ao invés de estudar por matérias, os alunos passaram a trabalhar por projetos coletivos, com apoio de tutores. Sem tempo estabelecido para o “recreio”, os estudantes decidiam quando parar, fazer pausas. E os “deveres de casa” foram trocados por processos de pesquisa.

Nas escolas, que visitei em Mogi das Cruzes, algo semelhante se esboçava. Amanhã, vos falarei de intensas emoções colhidas em espaços de fraterno acolhimento. Os professores de Mogi me fizeram retomar o chão da escola, quando já ia nos setenta.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXIII)

Alto Tietê, 6 de agosto de 2041

Hoje, pela manhã, resolvi vasculhar o meu velho computador chinês (ainda funciona) e nele encontrei registros da viagem a Mogi das Cruzes. Os velhos choram por tudo e por nada e confesso que algumas lágrimas (de alegria!) desceram pelo meu rosto. Então, resolvi contar-vos, nas próximas cartinhas, o que lá fui fazer, vai para vinte anos. E, sobretudo, vos falarei das lições de humanidade que por lá recebi.

Quando o Michel me levou ao aeroporto, o amigo Wander me ofereceu uma cachaça, que a Ane afirmava ser a melhor de quantas Minas Gerais já produzira. E fez questão de ler uma carta, que uma professora havia publicado no facebook. Disse ao meu amigo que a Ana já ma havia dado a ler, na noite anterior, e que essa carta confirmava que ainda havia professores vivos em Mogi.

Nessa noite, enquanto degustávamos chocolate quente acompanhado de pão na chapa, confirmei a seriedade do André e o seu envolvimento na causa das crianças. No carro que me levou até ao hotel, a efusiva alegria da co-prefeita Pri me emocionou e mostrou que não tinha gastado o meu tempo em vão.

Em algumas secretarias de educação surgia um claro propósito de mudança, suportado em coerentes medidas de política educacional. Gente de coragem era aquela! Me devolveram esperança e me fizeram manter-me na ativa, já depois de completar setenta anos.

Mas, nos idos de vinte, habilidosas “cortinas de fumaça” enfeitavam a propaganda de empresas e sistemas de ensinagem, postergando uma efetiva assunção de projetos de mudança e inovação. As propostas de reorganização curricular reconheciam que a mudança nas práticas de gestão e nos modos de organização e funcionamento das escolas, pedra de toque da conceção do ensino básico como ensino complementar e sequencial, carecia de concretização. E, tal como o enunciado nos projetos político-pedagógicos (que a maioria dos professores nunca lera), nobres objetivos eram anunciados: “promover educação integral do estudante, seu pleno desenvolvimento como pessoa autônoma, o exercício da cidadania; investir no protagonismo de crianças, adolescentes, jovens e adultos”.

Aprazia verificar a consistência teórica dos projetos, mas o blá, blá, blá extraído de um qualquer compêndio de pedagogia em nada se assemelhava à prática das escolas. Em pleno contexto da quarta revolução industrial, as boas intenções das medidas de política educacional eram contrariadas por uma regulamentação do século XIX. Em preâmbulos feitos de eufemismos, aspas teorizantes e parêntesis supostamente caucionadores de cientificidade, o dito sistema ia deixando para os vindouros um rastro de reformas fósseis.

A meritórias intenções, como “assumir a educação como meio de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades”, se juntava a emissão de recomendações da OCDE: “construção de um currículo do século XXI, liberdade de atuação, para garantir melhores aprendizagens, respeito pela autonomia das instituições e dos seus profissionais”.

Nesse tempo, ainda havia quem insistisse em revestir o instrucionismo com falas de belo efeito, aulas invertidas, ensinos híbridos e outros paliativos. Havia quem acreditasse que as aulas (presenciais, ou online) servissem para alguma coisa. Convidei-os para um debate fraterno, fundamentado, a partir de uma pergunta: como poderia uma escola fundada no paradigma da instrução assegurar uma prática efetiva da “metodologia de trabalho de projeto”, de “educação integral”, “aprendizagens significativas”, “desenvolvimento de competências”, ou “metodologias ativas”?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXII)

Taiaçupeba, 5 de agosto de 2041

Um decreto-lei de 1967, assinado pelo ditador Salazar, consagrava o princípio de que experiências pedagógicas só poderiam acontecer com o beneplácito centralista. Mas, nos idos de vinte e a quase sessenta anos de distância, ainda se constituía em exemplo de inovação normativa. Vejamos.

No artigo primeiro, autorizava “a realização de experiências pedagógicas em estabelecimentos de ensino público”, experiências que poderiam consistir no “funcionamento experimental de novos tipos de estabelecimentos (escolas-piloto)”. E, no artigo terceiro, o Ministro até mandava colaborar nas experiências “agentes de outros estabelecimentos dependentes do Ministério”. Não tardou que uma regulamentação instrucionista e burocrática deitasse por terra as boas intenções do ministro.

O destino deste e de outros documentos de política educacional indiciadores de mudança e inovação dependia do modo como fosse interpretado e… regulamentado. De algum modo, buscavam dar resposta a desafios da “sociedade futura” e proporcionar aos professores oportunidades de maior realização profissional. Porém, os sindicatos concluíram que um projeto de autonomia e flexibilização curricular da segunda década deste século trouxera “mais burocracia e trabalho não reconhecido”.

Pesquisa concluíam que os currículos eram demasiado extensos, que os professores estavam desmotivados, que faltava maturidade aos alunos para o desenvolvimento de projetos, que havia aumento da carga de trabalho para os professores e que era elevado “o número de alunos por turma”. Assim se pronunciavam os pesquisadores:

“Não se pode mudar o paradigma sem mudar as condições nas próprias escolas”.

Quando questionada, a coordenadora de uma das pesquisas disse não haver condições para o implementar projetos nas escolas:

“O projeto não trouxe uma mais-valia em termos de aprendizagem dos alunos”. 

Tudo era remetido para o teor dos projetos político-pedagógicos. Mas, se era bem verdade que “as opções de natureza curricular, designadamente os critérios de organização e de gestão pedagógica”, estavam inscritas no projeto, saberia o ministério dizer-nos quantos professores conheciam o teor do seu projeto político-pedagógico?

Na década de 1990, integrei uma comissão do Conselho Nacional de Educação encarregada de emitir um parecer sobre uma proposta de base curricular. Organizamos debates e audiências. O “Parecer” apontava a necessidade de alteração do modelo escolar. Mais do que elencar propostas de alteração, reiterava a recomendação do relatório de avaliação: para concretizar a base curricular no chão da escola, seria necessário substituir práticas de “ensino tradicional” por práticas coerentes com o discurso teórico do preâmbulo da proposta de lei.

As nossas recomendações foram ignoradas. A lei foi aprovada. Visava-se a melhoria da qualidade da educação, mas a educação não melhorou. E, em 2017, o Ministério da Educação, lançou nas escolas mais um projeto de base curricular, que também não se cumpriu. Perdêramos vinte anos de oportunidades de mudança.

Até aos idos de vinte, o Brasil havia produzido mais de um milhão de leis. Mas, no campo da educação, parecia que a única lei que se cumpria era a “lei da gravidade”, a burocracia imperava e a pedagogia continuava adiada. Em 2021, durante uma visita a Taiaçupeba e ao projeto “ecofuturo”, radicou em mim a certeza de que, em Mogi das Cruzes, o tradicional “fatalismo pedagógico” daria lugar a um projeto de mudança e inovação. Disso vos falarei, numa outra cartinha.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXI)

Mogi das Cruzes, 4 de agosto de 2041

Queridos netos,

Raros serão os seres humanos que entendam a subtil sapiência dos pássaros, mas eu sei que vós compreendereis a “lição”. Sei que o vosso pai vos ensinou a escolher caminhos. Imagino que os vossos caminhos se hão-de cruzar com outros caminhos, com ou sem rotas definidas. Sei que não estais condicionados por sentidos obrigatórios e que sabereis inventar e reinventar venturosos mapas, respeitando os que optarem por inventar os seus.  

O mais certo será que, nas vossas deambulações, vejais passar pequenos gansos recém-saídos do ovo, seguindo um homem como se fosse o pai-ganso. Um sábio chamado Lorenz fez essa experiência e a Etologia diz-nos haver pássaros que seguem o bando que lhes trouxer maiores vantagens, ou que mudam de rumo, ao sabor das aragens.  

Sempre que eu subia ao chão da escola, ao encontro de éticos e amorosos educadores, deparava com lamentos como estes:

“Sou professor substituto. Não sei se poderei continuar neste projeto”.

“Não sou concursado. No próximo ano, certamente, já estarei em outra escola”.  

Nos anos que se seguiram ao teu nascimento, os vossos pais não tinham poiso certo. Ano após ano, viviam a incerteza da “colocação”. E muitos projetos se perderam só porque, por via de “concursos” e “colocações”, lhes faltou o humano que os concretizasse.

“Colocação” era o final feliz de uma angustiada espera. A “colocação” dava aos vossos pais a certeza de que, pelo menos durante um ano, poderiam fazer o que gostavam de fazer. E era também nessa diária aventura de ensinar a aprender que os vossos pais amealhavam o seu sustento e asseguravam o vosso futuro.

“Concurso” era um estranho jogo, um jogo de acasos, que os professores eram obrigados a jogar naquele tempo. O “concurso” era impiedoso e, no final de cada “ano letivo”, impunha a violência da separação àqueles que se começavam a conhecer e a compreender. O “concurso” era cego, pouco se importava com os afetos e nada entendia de criar laços.

“Ano letivo” era uma estranha divisão do tempo. No Brasil, ia de fevereiro a meados de dezembro, com “recessos” pelo meio. Em Portugal, durava de setembro a junho, obrigando os professores a se aglomerarem nas praias e a fazerem fila nos restaurantes, entre julho e agosto.

Era certo e sabido que nada se aprendia na escola de aula de cinquenta minutos, nos intervalos de todos fazerem xixi, ao mesmo tempo, e em duzentos “dias letivos” – por que não trezentos e sessenta e cinco dias? Sem qualquer explicação plausível para a sua existência, o “ano letivo” sugeria que a inteligência das crianças deixasse de funcionar em dezembro e só voltasse a funcionar depois do Carnaval. Estranho era que os seguidores dessa paradoxal subdivisão do tempo se levassem a sério.

Os vossos pais conheceram-se, amaram-se e quiseram que viesseis ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados daqueles que aprenderam a amar, os vossos pais mudavam de casa, ano após ano. Dentro da casa, levavam o vosso berço para longe das paragens habitadas pelos vossos avós.

Sabemos bem das nefastas consequências de afastar avós dos netos, mas era isso que acontecia nesses recuados tempos. Só por isso, não pude estar junto de vós, para vos contar o mundo pelo caminho dos bosques e palácios de sonho habitados por duendes e príncipes encantados. E vós não pudestes ensinar-me a gramática de tempos que serão vossos e que, certamente, já não poderei ver.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCX)

Mogi das Cruzes, 3 de agosto de 2041

Escrevo estas linhas onde a génese de uma nova educação aconteceu, cumprindo a profecia do Mestre Agostinho. Um artigo seu, publicado ainda no tempo em que foi professor da Universidade de Brasília, rezava assim:

Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América; só falta a Portugal desembarcar em… Portugal”.

Foram proféticas as suas palavras. Depois de me ter emancipado de um soberbo etnocentrismo europeu, me apercebi de que esse “desembarque” iria acontecer através de uma nova educação, que estava a nascer no hemisfério sul. E lamentava que os educadores brasileiros continuassem padecendo da “síndrome do vira lata”, indo procurar no hemisfério norte modismos pedagógicos e os adotassem, quando dispunham, aqui, de uma “finlândia” ignorada.

Numa viagem ao Norte, havia exposto essa intenção a europeus e norte-americanos. Etnocêntricamente convencidos de que era no Norte que morava a novidade, desdenharam. Estava nascendo na América do Sul uma Nova Educação, aquela que muitos visionários tinham anunciado, desde há mais de um século. Acompanhei uma evolução silenciosa, que já não poderia ser silenciada. Convertido ao sul, buscava fazer a minha parte num projeto iniciado pelo meu amigo André, em Mogi das Cruzes.

A partir de 2021, para além de satisfazer a curiosidade dos professores brasileiros e o interesse manifestado pela academia, visitei municípios brasileiros, realizando “palestras” (eram mais oportunidades de diálogo), formações e transformações, desfrutando da oportunidade de adentrar a espantosa obra do Agostinho da Silva em terras do Sul.

Esse saudoso Mestre foi ícone de passagem para Lauro Lima, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e muitos outros ilustres educadores brasileiros. À semelhança de Freire, esses e outros mestres me mostraram caminhos de transição para um terceiro paradigma – o da comunicação. Com eles, aprendi que aprendemos uns com os outros, mediatizados pelo mundo, que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, e que aprendemos na intersubjetividade.

Decorridos mais de quarenta anos sobre o início de um projeto, que colocou Portugal no mapa-múndi da boa educação, voltei a esperançar. Reaprendi que escolas são pessoas e não edifícios. Confirmei que as pessoas são os seus valores e que esses valores seriam transformados em princípios, dando lugar a projetos de uma nova construção social de aprendizagem e de educação.

O meu amigo André me levou a conhecer o que de bom já se fazia num dos maiores municípios do meu país de adoção. Num agosto dos idos de vinte, antes de rumar a Portugal em mais uma fraterna viagem, participei num encontro de anúncio e de convite, ao lado do André e da Priscila. E, durante cerca de três anos, ajudei devotados trabalhadores da educação a colocar alicerces no sonho de um Caio prefeito.

Nos anos seguintes, Mogi viria a ser um locus de inovação e até mesmo de formação e polo de turismo educacional. No exercício de uma exigente coerência praxeológica, os professores mogienses não confundiam mudança educacional com a adição de contraturnos de “atividades complementares, além das aulas regulares”. No início do projeto, respeitando a atitude conservadora daqueles professores que não queriam mudar, valendo-se da intuição e da amorosidade, não fazendo das crianças cobaias de laboratório, os professores de Mogi deram forma concreta às palavras do Mestre Lauro:

“Tudo está fluindo, o homem está em permanente reconstrução, por isso é livre: Liberdade é direito de transformar-se”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCIX)

Itaquaquecetuba, 2 de agosto de 2041

Parece ser consensual que os alunos devam dominar “habilidades” considerados essenciais, como: pensar de forma autônoma, comparar o raciocínio próprio com o de outros, saber escutar e avaliar opiniões, tomar decisões de acordo com a informação disponível, comunicar-se eficientemente, entre outras. Mas, como desenvolver tais “habilidades” em situação de sala de aula? Nunca alguém soube dizer como o fazer.

Nos idos de vinte, medidas de política educacional como a espúria “base nacional curricular comum”, continuavam a contrariar o espírito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, inviabilizando a complementaridade e sequencialidade entre ciclos da educação básica.

Por que razão os manuais didáticos eram destinados ao “2º ano” do “1º ciclo”? Afinal, o que vigorava? Ciclo? Ano? O quê? Se a lei estabelecia a organização em ciclos, poderíamos concluir que a prática do ano de escolaridade colocaria as escolas à margem da lei?

Outras perguntas poderiam ser formuladas, mas estas bastavam para justificar urgentes intervenções. Não seria mais possível encarar como “fatalismo” o “fracasso escolar”. Se o modo como o poder público geria o sistema de ensinagem negava a muitos seres humanos o direito à educação (inscrito na Declaração Universal e na Constituição), o poder público teria o direito de manter esse modo de organização? Se o modo como as escolas e os professores trabalhavam não garantia esse direito, as escolas e os professores não poderiam continuar a trabalhar desse modo.

Seria possível conciliar a ideia da articulação entre ciclos com a sua segmentação em anos de escolaridade? Seria possível pensar a coesão entre ciclos, se nem a articulação entre anos de escolaridade no interior de cada ciclo estava assegurada? Afinal, se os livros didáticos estavam concebidos por anos, o Fundamental estaria organizado em ciclos? E, se o problema de articulação entre ciclos só existia porque havia ciclos, por que se mantinha essa subdivisão do considerado “fundamental”?

A compartimentação entre ciclos era mais uma manifestação absurda dos cânones de um paradigma educacional mecanicista – o paradigma da instrução. A tradição de segmentação cartesiana originava rupturas traumáticas, perniciosos efeitos na psique dos alunos, que não transitavam entre ciclos de um mesmo ensino básico, mas entre comunidades escolares autistas.

Hutmacher afirmou que, ao entrarem no ciclo seguinte, os alunos experimentavam uma espécie de regressão. Se estavam conscientes dessa “regressão”, se os professores e legisladores eram de opinião de que a articulação era fundamental para a unidade da educação básica, por quanto tempo se prolongaria o predomínio da justaposição formal entre ciclos e a dependência de uma matriz curricular reprodutora de cartesianos vícios?

Nos idos de vinte, uma récua política e burocrática execrava Paulo Freire. Sem terem lido uma linha dos seus escritos e ignorando quão ampla era a sua projeção universal, desconheciam palavras conciliadoras do Mestre:

“Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar. Mas é escutando que aprendemos a falar com eles”. 

A lei integrara proposições de escuta, sempre ostracizadas pelos detentores do poder. Através do Plano Nacional de Educação, um projeto de autonomia fora regulamentado. A recomendação da Meta 19 era explícita. O poder público a ignorou.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCVIII)

Poá, 1 de agosto de 2041

Fiquei perturbado, após ter conversado com um jovem professor, que era a personificação da amargura. Confidenciou-me que estava a pensar em mudar de profissão:

“Estou a pensar mudar de profissão. Na escola, os outros professores nem me querem ouvir. E, na última aula, eu saí desesperado. Deram-me uma turma com mais de trinta alunos. Nem mesas há para todos, naquela sala!”

Perguntei:

Quantos alunos tem a tua escola?”

“Cerca de seiscentos” – respondeu.

“E quantos professores?”

“Mais de setenta”.

Fiz uma divisão simples e concluí que havia menos de dez alunos por cada professor.

“Então, por que há turmas com mais de trinta alunos?”

“Você sabe por quê! Ou não sabe? Tudo continua igual. Os professores não conseguem dar aulas aos alunos dessas turmas. Os meus colegas dizem que os alunos podem estar a pensar em tudo menos no que o professor está a dizer, mas o que importa é que não os aborreçam e que os deixem dar a aula. Se não deixarem, há sempre a falta disciplinar. Rua com eles!”

“E o que fazem os outros professores da tua escola, os teus colegas?”

“Os outros? Quais? Na sala dos professores, só os ouço a dizer mal dos alunos e a preparar processos disciplinares”.

Instaurar um processo disciplinar, suspender ou expulsar um aluno era tarefa fácil, era a regra. Quando puniam um aluno, os professores agiam sobre as consequências, não sobre as causas. A solução administrativa, burocrática dos problemas disciplinares era deseducativa, porque não resolvia o problema (do aluno, do professor e da escola) e impedia a aprendizagem. Não era entendida por mentes revoltadas, nem prevenia futuras e previsíveis situações de conflito.

Muitos professores vacilavam entre uma permissividade humilhante e um autoritarismo medroso. Pareciam estar receosos de exercer autoridade. Poucos a exercem com maturidade, serenidade, bondade. Se a alfabetização linguística ou a alfabetização matemática era aquilo que se sabia, da alfabetização emocional nem era bom falar! O pieguismo pedagógico usurpava o espaço onde deveria haver amor maduro. Não nos surpreendia, por isso, assistir a diálogos deste jaez:

“Professor, você não consegue entender os meus problemas, as minhas emoções!  Dominar a sala de uma classe de seis anos é difícil. É muito difícil mantê-los sentados, quanto mais conseguir dar aula!

Sabemos que o problema tinha raízes profundas, no ventre e no leite materno. Conheci pais imaturos, reféns dos seus filhos, da ditadura da infância. Como uma mãezinha que se queixava de não ser capaz de “aguentar o filho”:

Não sei o que hei-de fazer, senhor professor. Tem de me indicar um bom psicólogo. Já fui a dois, mas não gostei. Eu sei que ele só tem seis aninhos e que eu não o posso contrariar. Se eu o contrario, ele começa a chorar, a gritar. E eu já não sei o que fazer”.

Compreendido: a criancinha gritou, ganhou. Mas o que me interessava era saber da mãe da criança por que razão ela não sabia estar na mesa com as outras crianças, almoçando como as outras crianças. E a mãe da criança me esclareceu:

“O meu filho não usa o garfo e come com a mão porque no jardim infantil não o ensinaram a comer…”

Não poderíamos negar a existência de famílias desestruturadas, de pessoas que não davam conta da educação familiar. Talvez porque a não tivessem recebido na infância, não possuíam estrutura intelectual e ética para educar seus filhos, e terceirizavam a educação. O tempo que sobrava para “educar” os filhos, se eles não estivessem na escola, ou dormindo, era escasso. Não seria já tempo de cumprir a lei de bases e re-ligare a família, a sociedade e a escola?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCVII)

Suzano, 31 de julho de 2041

Certo dia, quando conversava com o dono de uma empresa de produção de plataformas digitais, o meu interlocutor enalteceu a sua obra nestes termos:

“Professor Pacheco, veja bem onde nós conseguimos chegar! Agora, já não é o professor que diz o que os alunos devem aprender. Os alunos podem escolher”.

Pedi-lhe que me desse um exemplo. Respondeu:

“Por exemplo, há dias, eu soube que um estudante de um colégio, que trabalha por projetos e tem uma plataforma das nossas, quis estudar a raiz quadrada”.

“Por que razão ele quis estudar, nesse dia, a raiz quadrada?” – quis saber.

O empresário olhou para mim com ar de surpresa e objetou:

“Nunca tinha pensado nisso, professor. Mas não é assim que se faz na Escola da Ponte?”

O empresário não tinha pensado “naquilo”. E pensava que “era assim que se fazia na Escola da Ponte”. Estava crente de que as crianças faziam o que queriam, quando o que acontecia era que as crianças queriam aquilo que faziam, isto é, quando atribuíam significado ao objeto estudado.

Nas escolas que compravam as plataformas do empresário estava enfeitada de projetos, mas não se praticava a metodologia de trabalho de projeto. Apenas acontecia um sofisticado consumo acéfalo de currículo, porque a plataforma digital daquele bom empresário não era de aprendizagem, era uma plataforma de ensinagem

Na Ponte, os alunos não decoravam matéria contida num livro didático, ou veiculada por um professor aulista. Não se consumia um currículo pronto-a-vestir. O saber era construído, acontecia produção de currículo. A partir de sonhos, necessidades e desejos de cada ser humano, e integrando conteúdos, competências e capacidades de uma base curricular, se visava estimular talentos e cultivar os dons de cada sujeito aprendente.

Dado que um ser humano é único e irrepetível, no desenvolvimento do currículo da subjetividade era respeitada a especificidade do seu repertório linguístico e cultural, os estilos de inteligência predominantes, o ritmo de aprendizagem. Algo em tudo idêntico ao que acontecia numa escola brasileira, eu ajudei a conceber.

A tutora perguntou a uma menina:

“O que queres ser?”

Não perguntou “o que queres ser, quando fores grande?”. Esse tipo de pergunta assemelha-se a um xingamento, porque a criança é, não vem a ser.

A mocinha respondeu:

“Quero ser rapper”.

Com a jovem, se construiu um projeto de vida pessoal, se elaborou um roteiro de estudo, se fez pesquisa:

“Onde nasceu o rapp? Como se compõe um rapp? Como se declama e canta…?”

O que deveria a jovem a prender da língua portuguesa, da matemática, da educação musical e outras disciplinas?

Com o objeto de estudo bem definido, aprendeu a selecionar, a analisar, a criticar, a comparar informações; a avaliar, a sintetizar, a comunicar informação. Aos treze anos, atuou ao lado de outra rapper, na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.

Não aprendeu a ser rapper sozinha, mas na intersubjetividade, na comunicação entre consciências individuais, confrontando modos diferentes de pensar e de ver o mundo. Paulo Freire o dissera e, no “Eu e Tu”, Buber nos falava da capacidade do ser humano de se relacionar com o seu semelhante, da capacidade de inter-relacionamento, do diálogo, do encontro entre sujeitos e na relação entre o sujeito e objeto.

Tão longe estava aquele empresário (e muitas escolas) da essência de processos de aprendizagem! Mas, com a humildade que lhe reconheci (e no intuito de lucrar, claro!), se acercou de práticas efetivas de trabalho de projeto, concebeu (e passou a vender, claro!) plataformas digitais… de aprendizagem.

Por: José Pacheco

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