Tomar, 24 de outubro de 2041
Nos idos de vinte, as escolas careciam de espaços de convivencialidade reflexiva. Os professores careciam de procurar compreender que pessoas eram aquelas com quem partilhavam os dias, quais são as suas necessidades (educativas e outras). Seria preciso cuidar da pessoa do professor, para que ele se visse na dignidade de pessoa humana e visse os outros educadores como pessoas.
Seria preciso saber fazer silêncio “escutatório”, fundamento do reconhecimento do outro, rever a nossa necessidade de desejar o outro conforme a nossa imagem, respeitá-lo numa perspectiva não-narcísica, ou seja, aquela que respeita o outro, o não-eu, o diferente de mim, aquela que não quer catequizar ninguém, que defende a liberdade de ideias e crenças. Isso também seria um caminho para a inclusão.
Sempre que um professor se assumisse individualmente responsável pelos atos do seu coletivo… incluía-se. Mas, nas escolas, tardava o reconhecimento da divergência, da dessemelhança, enquanto abundavam exemplos do “faz de conta da inclusão” (escolar e social).
La Rochelle dissera que a cidade não era a solidão, “porque a cidade aniquila tudo quanto povoa a solidão – a cidade é o vazio”. Isso mesmo: um vazio com raízes que eu buscava esclarecer. E compreendi que os obstáculos que uma escola encontrava, quando aspirava a práticas de inclusão, eram problemas de relação.
Certa vez, fui fazer uma palestra, a convite de uma escola, que se dizia “construtivista e inclusiva”. Aguardei na sala dos professores a chegada do primeiro intervalo. Acidentalmente, escutei conversas sobre alunos “incluídos”:
“Tem algum jeito, colega, que os deficientes, agora, também venham para o 2º ciclo? Puseram dois incluídos na turma a que dei aula. Ficam o tempo todo lá no fundo da sala, que eu não tenho preparação para trabalhar com deficientes!”
O encontro com a Direção da escola ficara marcado para a tarde. Percorri espaços da escola. Ninguém me perguntou ao que eu ia, nem quem eu era. Presumo que me tivessem tomado por um dos muitos professores, que por lá havia. Da biblioteca à cantina, da reprografia ao bar, do recreio à sala dos professores, me assustei com a desorganização, me irritei com a indiferença de docentes, que testemunhavam agressões entre alunos, sem esboçar o mínimo gesto de intervir para as sanar.
Desviei-me de objetos, que cruzavam o ar, num espaço polivalente imerso no caos. Escutei impropérios, assisti a humilhações a que auxiliares foram sujeitas. Vi um pai ser recebido, de pé, no meio de um átrio, e ser repreendido, aos gritos, por uma professora (decerto a diretora de turma). E vi alguns “diferentes” segregados, numa sala de “Necessidade Educativas Especiais”.
A observação ocasional cessou, a partir do momento em que uma funcionária me interpelou. Tendo identificando o “Senhor do Conselho Nacional de Educação”, correu e chamar a “Senhora Presidente do Conselho Diretivo”. A partir desse momento, apenas vi o que me foi permitido ver.
Em nome da “inclusão”, assistia a muita aparência, identificava muita discriminação. Ainda nem os professores tinham sido “incluídos” e, talvez por isso, perguntassem a uma mãe:
“O seu filho é TDA, não é?”
A mãe não percebeu o que a sigla queria dizer, claro está. E para os leigos, devo acrescentar o seu decifrar: “transtorno de déficit de atenção”. Ou pior:
“O seu filho não é fichinho, pois não? Eu acho, minha senhora, que ele vai ser hipercinético! É melhor levá-lo a um psicólogo.”
E, entre a Ritalina e a mesmice de uma escola organizada para os “normais”, se tentava mitigar a “diferença”.
Por: José Pacheco
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