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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCIII)

Portela de Unhais, 8 de novembro de 2041

A Berta era a encarnação do pessimismo. E, naquele dia, o seu semblante carregado não dava lugar a quaisquer dúvidas, edstava possuída por uma melancolia a condizer com a manhã chuvosa, ventosa, fria, muito fria. 

Acerquei-me dela com o cuidado que a situação requeria: 

“Bom dia, Berta!” 

“Bom dia?! O que é que o dia de hoje tem de bom?” – retorquiu. 

Mas o seu desprazer cedeu lugar a um sorriso, quando repliquei: 

“Berta, de que te queixas? Este é o melhor dia que vais ter hoje.” 

Deambulava pelo Brasil das escolas habitadas por professores, que recebiam salários indignos e lidavam com escassos recursos. Escutava as suas queixas: 

“Cada dia passado nesta escola é um inferno.” 

Adoptavam a sentença do Sartre, que nos dizia serem os outros o nosso inferno: 

“São mesmo os outros que nos fazem da vida um inferno. Só porque não cruzamos os braços, só por tentarmos fazer o nosso melhor, a maioria dos nossos colegas critica-nos. Na nossa escola, somos só três a remar contra a maré.” 

“Pois ficai sabendo que sois a maioria” – contestei – “Os restantes estão mortos. Ainda que o não saibam.”

Cortella falava-nos da resiliência necessária, da capacidade de atravessar as perturbações quotidianas sem resvalar para o desespero. Sabíamos ser alto o preço da transformação. Assumir ser diferente acarretava incompreensão, desconforto cognitivo e afetivo. Mas, “se nos faltar o vento, façamo-nos remadores”, como alguém, também, dissera. 

“Você é o professor Pacheco, não é?” – Eu ia responder à maneira do Borges: “Tem dias….” Mas, reparei na face ansiosa da professora e não arrisquei a chalaça. Disse ser o próprio. De imediato, veio a lamúria:

“Estou no momento um tanto desanimada. Em minha escola fizemos um projeto muito bonito e apresentamos à secretaria de educação. Porém, ele não foi aprovado, com as mesmas desculpas de sempre: espaço físico, necessidade de contratar pessoas etc. Até mesmo dentro da própria escola parece que se criaram dois grupos, um querendo mudanças, querendo fazer diferente, outro expressando sempre estar com medo! E eu me pergunto: medo de quê?” 

Como diria o Mia Couto, “os caminhos servem para sermos parentes do futuro”. E, quase sempre, os caminhos eram pedregosos, cortados por abismos e tocaias. Mas pelo sonho é que seguíamos. 

Sonho não era sinónimo de devaneio. Como nos disse o professor Gedeão, “sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança”. Se era pelas crianças e com elas que realizávamos utopias e lográvamos transcendermo-nos, soubéssemos aceitar o reverso, os sucedâneos da humana miséria. 

Àqueles que eram parte do lado saudável da educação do Brasil, eu confidenciava que existia uma espécie de fraternidade de que faziam parte, ainda que não soubessem (e já eram muitos!). Porém… 

“Professor, foi você quem disse que onde não existir uma pessoa não será possível colocar um profissional. Me corrija se estiver enganada. Uma pessoa inserida em um contexto profissional, onde o comprometimento em formar a inteireza do ser não seja considerado, onde a solidão de uma classe seja sua companheira diária, como pode não se desfazer enquanto pessoa? Hoje, por exemplo, pressinto que o meu dia será bem cinzento para a minha pessoa.” 

“Este é o melhor dia que vamos ter hoje” – respondi. 

Aprendíamos com Foucault a tornar visíveis as forças que impediam a mudança, a desocultar a violência visível (e a não-visível). Lamentar-se, ou vitimizar-se, nada acrescentaria, ou resolveria. Tínhamos, numa mão, as interrogações. Na outra, as possibilidades.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCII)

Telhada, 7 de novembro de 2041

Até à idade de seis anos de idade, uma criança já teria passado mais de cinco mil horas diante de um televisor. Sem fazer perguntas. A quem poderia perguntar, sozinha? Nem os adultos se interrogavam sobre o impacto formativo do uso excessivo da televisão, sobre passividade, alienação. Interrogar-se-iam sobre valores inculcados, por via de um acéfalo consumo de tv e computador? 

Se o seu estatuto socioeconómico lhes permitisse, a criança teria lidado com um computador, horas a fio, exercitando dois dedos, viciando o olhar numa profusão incontrolável de imagens. Em tenra idade, ficava exposta a subliminares influências consumistas, a uma erotização precoce, à violência e competição, que jogos idiotas estimulavam. 

Aos seis anos, ia para a escola, assistir a aulas. Com ou sem computador, senta-se numa sala e escutava respostas a perguntas que… nunca fizera. Regresso às interrogações das crianças: 

“Porque é que, às vezes, me dá vontade de chorar? 

O que é que há dentro de um buraco negro? 

Por que é que algumas meninas não gostam de mim? 

Por que foi o Bartolomeu Dias na armada do Cabral, se sabia que o caminho para a Índia era para o outro lado? 

Por que é que eu gosto de umas professoras mais do que de outras? 

Por que é que os anos têm doze meses? 

Porque é que eu, às vezes, perco a cabeça? E porque é que eu, às vezes, fico triste? 

De onde nasceu o mundo e por que nasceu? 

Por que é que os nossos dois olhos são da mesma cor? E por que é que você, professor, tem uns olhos diferentes dos meus?” 

O perguntar da criança era um ato inteligente. Quando a criança questionava, ela manifestava uma necessidade que subjazia à necessidade enunciada. Quando um aluno perguntava, ele tinha uma resposta, uma hipótese de resposta. Só pretendia testá-la. Sabia o que queria, perguntava e aprendia. Pois já dizia o saudoso João dos Santos, “se não sabe, por que é que pergunta?”

Juntava uma pergunta de professor à infindável lista: 

Porquê ser professor? Seria porque, em Educação, tudo estava ainda por fazer? Haveria maior desafio do que o de reinventar a Escola?

Dizia-nos Alberoni que muitos acreditam que, quando alguém não se interroga sobre aquilo que faz e só faz algumas coisas, repetindo-as, alcançará a perfeição. E acrescentava: “no entanto, essa ideia está errada, pois há uma lei fundamental na matéria viva, segundo a qual, em cada reprodução se perde um pouco de informação. Em cada repetição, os erros acumulam-se. De dentro não conseguimos ver o erro; quem se limita a repetir o que já sabe, no fim já nada sabe.” 

Regressava às interrogações, porque a minha amiga Erika me fez chegar uma missiva repleta de questionamentos. Mais do que isso, de disposição para perguntar, porque, como referia, tinha “pela frente dez anos para a aposentação”, mas não queria chegar lá em “certas condições”. Quais serão as condições? Ela explicitou: 

“Se nossa atividade profissional se distância do sonho que temos da pessoa que desejamos ajudar a formar e de nos formarmos enquanto educadores, é provável que, aos poucos, nos tornemos pessoas apenas cumpridoras de funções pré-estabelecidas, desprovidas de emoção. Perderemos autenticidade. E, ao perdê-la, perdemos tudo: a coragem arriscar, de questionar, de nos questionarmos.” 

Lendo a Erika, confirmava a minha convicção de que nem todos os professores morriam aos vinte e eram enterrados aos sessenta. O que impedia o questionamento era o incómodo do estranho que em nós habitava. Era a sensação do risco de nos expandirmos, de sacudir o torpor da acomodação, de nos libertarmos da tirania do pensamento fechado. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCI)

Esteiro, 6 de novembro de 2041

Nas escolas dos idos de vinte, muitos trabalhadores da educação se definiam, não como educadores colaborativos, iguais nas diferenças, mas pelo lugar hierárquico que ocupavam na estrutura social. Os professores estavam divididos até pelo quantitativo do salário. Eram trabalhadores, cujo exercício da profissão acontecia nos mesmos lugares e nas mesmas condições, mas que auferiam diferentes remunerações. 

Por que razões ocultas – nenhuma evidente eu conseguia enxergar – se estabelecia salários diferentes para tarefas equivalentes? Num tempo em que tanto se discutia a avaliação de desempenho, urgia questionar princípios e práticas divisionistas. E apelar ao bom senso. Utopia? 

Em Portugal, como no Brasil, a avaliação de desempenho estava na ordem do dia. Fundava-se no pressuposto de que a valorização pessoal e profissional dos educadores determinava a melhoria qualitativa do exercício da função. 

À partida, a discussão era pacífica. Quem se iria opor a que fosse dada relevância à qualidade das práticas pedagógicas e das aprendizagens dos alunos, ou a que a avaliação devesse estar centrada na escola? Haveria, certamente, consensualidade. 

Se a avaliação fosse, efetivamente, de desempenho, por que motivo não se deveria valorizar “o exercício de cargos pedagógicos e as atividades desenvolvidas na escola, na comunidade educativa e no âmbito sociocultural”? E o que se poderia criticar na intenção de articular a avaliação “com a formação contínua, no quadro do enriquecimento e da valorização dos profissionais, das escolas e dos respectivos territórios educativos”

Os efeitos do “aproveitamento de módulos de formação” não eram de curto prazo, nem o acumular de créditos de formação pressupunha o aumento da qualidade de desempenho. Também não estava provado que a experiência acumulada “no decurso de tempo de serviço” conferisse maior qualidade ao desempenho.

Ao longo de mais de trinta anos, em congressos como no chão das escolas, sem querer polemizar, afirmei sem rodeios que nada se avaliou, que ninguém avaliou coisa nenhuma, e que ninguém foi avaliado. A avaliação de desempenho era retórica, nunca passou de mero ato de rotina administrativa. 

Estava estabelecido que a progressão nos escalões da carreira docente (nunca alguém me soube explicar, por que havia escalões) se fizesse considerando o decurso de tempo de serviço efetivo prestado em funções docentes; pela frequência com aproveitamento de módulos de formação e… por avaliação de desempenho. 

O diálogo entre os tecnocratas do ministério e os professores era de surdos. Os tecnocratas abominavam tudo o que cheirasse a pedagogia e ignoravam o discurso cientificamente fundamentado de pedagogos e sociólogos. O corporativismo sindical fazia coro com os burocratas, inviabilizando qualquer iniciativa séria de avaliação.

O blá, blá, blá teoricista sobrepunha-se ao bom senso, abafava vozes conscientes. De modo que, quando se chegava a tal ponto, a minha criança grande reagia. No decurso de uma mais do que tediosa reunião com técnicos “superiores” da função pública, rompi o impasse – contei uma conhecida fábula de Esopo.

Era uma vez… uns ratos, que viviam com medo de um gato. Resolveram fazer uma reunião, para tentar arranjar um jeito de escapar de perigos. Um rato tecnocrata propôs pendurar uma sineta no pescoço do gato. Sempre que ele chegasse perto, eles ouviriam a sineta e poderiam fugir. 

O autor da brilhante ideia foi aplaudido. Mas, um rato mais ladino perguntou:

Quem irá pendurar a sineta no pescoço do gato?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCC)

Seladinha, 5 de novembro de 2041

No novembro de há vinte anos, quando estava de passagem por Portugal, me convidaram para um evento, em Faro. Aproveitei para mitigar saudades dos netos. Embora por breves momento, convivi com a Alice e o Marcos. Pusemos as novidades em dia. Com todo o cuidado que a pandemia ainda inspirava, conversamos sobre as suas aventuras universitárias. Contaram-me alguns despropósitos em que a universidade era fértil, e que foram o mote da intervenção que faria no auditório de uma biblioteca pública.

Escutei, atenta e respeitosamente, as intervenções dos meus companheiros de mesa. Eram funcionários do ministério da educação. Os seus discursos, ornamentados de belas palavras, eram de uma vacuidade impressionante. Senti-me regressado aos anos setenta. Nada havia mudado. 

Pensava na Ponte e me perguntava: 

Por onde começar? Por que, ao cabo de cinquenta anos, não conseguimos que inovadoras iniciativas tivessem concretude? Com a autonomia conquistada, como seria vista a Escola da Ponte pelo sistema educacional português? As demais escolas reconheciam a Ponte como um projeto de sucesso, que atravessara continentes? 

A Ponte fora a primeira escola pública a assinar um contrato de autonomia com o Ministério da Educação, quando ainda não havia experiências nem modelos. O modelo foi sendo construído ao longo de trinta anos. Um período de tempo em que a Ponte concretizara mudanças e inovações. As mesmas que os funcionários do ministério diziam querer que acontecessem nas escolas dos idos de vinte. 

Em Portugal, a nossa escola permanecia quase invisível. Ainda bem, porque a visibilidade social que ela ganhara a fez perder tranquilidade. Eram muitos os visitantes, que, diariamente, chamavam a atenção e, ao mesmo tempo, atraiam inveja. A fama da Ponte se espalhara, mas a maioria dos portugueses não sabia da existência dessa escola, escondida num cantinho de Entre-Douro-e-Minho. Uma cortina de silêncio a rodeava, enquanto ela buscava encontrar uma gramática da sobrevivência. 

Havia provérbio que dizia que “santos da porta não faziam milagres”. Restava conformáramo-nos, embora soubéssemos que as escolas poderiam ser espaços de exercício de uma fraternidade redentora. Nas escolas que ainda havia, o leão ainda não aprendera a pastar com o cordeiro. E, quando professores ousavam agir, era frequente ver que o homem ainda era o lobo do homem. 

A Ponte ia criando raízes em lugares onde eu nem sonhava haver terra fértil. De um desses lugares, a Aurora enviou-me um e-mail: 

“Escutei a sua palestra. Não entendo como pode ir para o estrangeiro, sabendo que precisamos desesperadamente de ajuda. Em Portugal, a Ponte também é respeitada pelas pessoas que estão verdadeiramente empenhadas na educação dos seus filhos. O que eu mais gostaria de ensinar aos meus filhos é que o infinito está onde nós quisermos.” 

O Wilson e a Aurora não eram professores. O Wilson morava em Natal, no Brasil. Era pai da Stella, que foi aluna da Escola da Ponte. A Aurora morava na cidade do Porto, em Portugal. Era mãe de duas crianças e tentava ajudar os professores da escola dos seus filhos, na busca de caminhos novos. 

Havia pais e pais. Havia os que reforçam a mesmice e se aliavam a indivíduos sem escrúpulos, para destruírem projetos. E havia aqueles que apoiavam educadores, que arriscavam rupturas e interpelavam inércias.

Saí daquele encontro acometido de um estranho sentimento. Não sei bem como o definir. Talvez de frustração. O ministério insistia em reformas reformadas. Os professores eram coniventes com esse faz-de-conta.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCIX)

Malhada do Rei, 4 de novembro de 2041

Nos idos de vinte, diziam os estudos que, à entrada para a escola, muitas crianças já não faziam perguntas. No final da educação básica, a cifra caía para menos de dez por cento. E, nas universidades, quantos alunos faziam perguntas? Eram raros os jovens que interrogavam, ou se interrogavam.

Fui professor primário. Quando entrava na sala de aula, dizia:

Bom dia, meus amigos!”

Respondiam:

Bom dia, professor!”

Quando trabalhei na Universidade, entrava na sala, fazendo idêntica saudação: “Bom dia, meus amigos!”

Em silêncio, os jovens universitários escreviam nos seus cadernos: “Bom dia, meus amigos”.

Quem os havia feito assim? Quantos professores se interrogavam sobre as origens desse drama?

Dizia João Guimarães Rosa que “vivendo, se aprende; mas o que se aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas”. E um texto do Rubem falava de perguntas das crianças da Ponte. A lista era longa, de mais de trinta anos: “Professor, como posso tirar carrapatos do meu cachorro, sem o ferir?

Por que é que o meu vizinho está velhinho e passa fome?

Por que é que nós existimos?

Um sem-fim de interrogações. Porque as crianças da Ponte podiam interrogar:

“Professor, porque foi que os americanos invadiram o Iraque?”

“Por que me perguntas isso? – respondia e lá íamos à descoberta do berço das civilizações, dos povos que habitaram entre o Tigre e o Eufrates, da cultura de sumérios e babilónicos, reconhecendo a nossa cultura no estudo de outras culturas.

“Professor, é verdade que as árvores respiram pelas folhas?”

“Por que me perguntas isso?

O Miguel acrescentou:

“Estive a estudar a árvore que dá folhas para o bicho-da-seda. E a observar a caixinha dos bichinhos. Quando eles saíram dos ovinhos, a amoreira deitou as primeiras folhas. Quando os bichinhos morreram, a árvore deixou cair as folhas, ficou despidinha. Então, se é verdade que as árvores respiram pelas folhas, diz-me, professor, por onde respira a amoreira no tempo em que não tem folhas.

A interrogação do Miguel foi pretexto para uma atitude de mediação. Conduzi-o à descoberta da rota da seda, ao estudo da China, dos tipos de folha, até à descoberta (partilhada por ambos) do modo como as árvores respiravam, quando não tinham folhas.

“Professor, o cristal de quartzo, que está na bateria do meu relógio, é um ser vivo, ou é um ser não-vivo?”

Quando respondi à pergunta com outra pergunta (Por que me perguntas isso?), a criança disse-me que tinha lido numa cartilha: “ser vivo é aquele que nasce, cresce, se reproduz e morre”. Argumentou:

“Pensa um pouco, professor! Se um ser vivo é isso, eu não sou um ser vivo, porque ainda não me reproduzi, nem morri. E uma pedra é um ser não-vivo? O quartzo nasceu quando a Terra nasceu. Não é? Quando visitei o museu, eu vi cristais pequeninos a nascer de um cristal mais crescido. E, quando a pilha do meu relógio acabar, é porque o cristal morreu. Então, professor, o quartzo é um ser vivo, ou não-vivo?

E eu, que nunca tinha pensado nisso, por ter andado em escolas onde não era permitido perguntar, aprendi que o conceito de ser vivo, aquele que me tinham “ensinado”, estava errado. Aliás, aprendi mais com as perguntas dos meus alunos do que em muitos anos de aluno.

Quase tudo que fui forçado a acumular cognitivamente, carecia de significado e foi esquecido. Os hectómetros quadrados e os dígrafos não me fizeram mais sábio nem mais feliz. E, se é comum dizer-se que só se escolhe ser professor por amor ou por vingança, eu quase reconheço ter sido professor por vingança – não quis que as crianças futuras fossem privadas do direito de questionar.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCVIII)

Covões, 3 de novembro de 2041

Reforçando as corajosas denúncias feitas pela minha amiga Tina, nos idos de vinte, invoco Schumann, que, numa das suas canções, nos dizia que “aqueles que são ignorantes são fáceis de conduzir, seguem os passos de quem os conduz, esquecem-se de si próprios.”

A adoção de manuais didáticos não era causa única do descalabro do sistema educacional e do desperdício do erário público. Vivia-se no tempo de “vender gato por lebre”. Sociologicamente, uma mentalidade coletiva apoiada numa “justificação científica” somente ficava receptiva às ideias veiculadas pelos “cientistas”, quando estes logravam vender tais ideias. E o tempo em que a Tina denunciava era propício à venda de ideias-feitas, à reinvenção da roda da educação.

Os “cientistas” e os “especialistas” eram tão hábeis nas palavras como impotentes nas decisões e ações, que as suas ideias implicassem. Vendido o produto a quem, ingenuamente, o consumisse, avaliações fictícias atestavam a sua “excelente” qualidade. E, volvidos alguns anos, novos-velhos produtos surgiam no mercado da educação, tão caros e tão inúteis quanto os anteriores.

Se fosse vivo, o Sigmund não conseguiria explicar esse fenômeno, nem os professores conseguiam libertar-se de “modismos”. Quase sempre, por detrás de uma pretensa “inovação” estava apenas a intenção de extrair vantagens de mais uma moda pedagógica. Ato bem mais reprovável, quando “justificado” por um discurso de caução “científica”. Havia quem fizesse apelo a uma argumentação “científica” que justificava o injustificável. E, após a adopção de um determinado comportamento, prevalecia a autopersuasão e a recusa de qualquer argumentação contrária.

Nos idos de vinte, no templo das ciências da educação, havia vendilhões assalariados por políticos manhosos. Assistíamos a campanhas eleitorais imersas na costumeira mesmice – promessas já prometidas, disparates proferidos por candidatos. Não me intrometeria nas contendas, não fora escutar alguns deles, besteirando nos palanques. Por exemplo, quando barafustavam contra os malefícios do que denominavam de “progressão continuada”. Sobretudo, quando apresentavam pretensos “doutores cientistas da educação” como assessores e consultores capazes de operar a quadratura do círculo da avaliação.

Sobre os efeitos dessa perversão, os políticos apoiavam a sua “argumentação”. Iniciavam o seu exórdio, repetindo a ladainha de carpideira habitualmente usada pelos profetas da desgraça, em que o sistema educacional era pródigo. E todos os candidatos afinavam pelo mesmo diapasão, dado que o disparate se democratizara. E, porque os candidatos a eleitos não falavam com conhecimento de causa, eu imaginava o tipo de assessores que redigiam os seus discursos. Supostamente, os associavam a certos “teóricos da educação”. E a eles regresso, a eles me refiro, vinte anos depois. Para começar tecendo algumas breves considerações sobre a avaliação que, então, se fazia.

Aquilo que acontecia na maioria das escolas não era progressão continuada. O que acontecia era confusão contínua e não avaliação continuada, era aprovação automática e a perversão automática dessa “avaliação” sob a forma de escalas de classificação. Confundia-se avaliação com aplicação de provas e com classificação. Confundia-se avaliação formativa (contínua, sistemática, centrada em processos, participada) com o facilitismo de uma “progressão automática”, que pervertia qualquer esforço no sentido de colocar algum rigor no ato de avaliar.

Até que, certo dia…

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCVII)

Ereira, 2 de novembro de 2041

A “turma do lixo” era formada por alunos, que não tinham conseguido aprender a ler. Perguntei-lhes por que não tinham aprendido.

“As professoras que tivemos ensinavam bem. A gente é que não tem cabeça para ler. No ano passado, a senhora professora até disse que nós éramos uns burros.”

“Dizei-me como as professoras ensinavam.”

“Era assim… Todas ensinaram o a e i o u. E nós fizemos carreirinhas de as, de es, is…”

“E… depois?”

“Depois, davam a lição do p, a lição do t e a lição do v. Do livro. Está a entender?”

“Sim. Estou.”

“E nós juntávamos: pa, pe, pi, ta, te, ti… va, ve, vi, o pipi, o pato, o titi e o pópó, o vovô viu a uva…”

Vi-me numa situação delicada. Até àquela altura, eu sempre ensinara pelo “método fônico”, o mesmo que as anteriores professoras da turma tinham utilizado. Era certo que, se continuasse a ensinar a ler do mesmo modo, aqueles jovens estariam destinados à educação de adultos ou marcados pelo estigma do analfabetismo. Que fazer?

Um dilema se impôs. Num cruzamento da minha vida profissional, dois caminhos se abriram: modificar a metodologia da alfabetização, ou… abandonar a profissão de professor. Optei por tomar a decisão ética de mudar. Nisso não tive qualquer mérito. Mas, mais tarde, essa decisão se traduziria em, não só mudar o modo de ensinar a ler e a escrever, mas de fazer escola.

Fui aprender a ensinar a ler. Dos silábicos “ti-jo-lo, tu-já-lê” ou “das 28 palavras” ao “método natural de leitura do Freinet”, aprendi mais de vinte metodologias. Com máquina de escrever e cartolina, fabriquei os materiais necessários. Apercebendo-me de que, quando os jovens chegavam à escola, já sabiam ler (por exemplo, palavras como Big Brother, Mcdonalds, Coca-Cola, Toyota, Rá-Tim-Bum…)  aprendi a fazer o levantamento do repertório linguístico dos alunos. Muito antes do Gardner, explorei diferentes “estilos de inteligência”.

No tempo de um isolamento político imposto pela ditadura, não sabia que, no sul, uma senhora chamada Emília Ferrero formara um grupo de pesquisa e publicara uma tese de doutorado sobre alfabetização. Sem saber que o Piaget existia, apenas com a intuição pedagógica, que Deus me deu e muito antes da Ferrero, me apercebi de que a capacidade de diferenciar ou reconhecer sons e sinais, ou a leitura de palavras simples, não eram suficientes para modificar o esquema de assimilação das crianças, promovendo aprendizagem. Seria necessário que a criança compreendesse o sentido do que fazia, que experimentasse e construísse conhecimento.

Sem o saber, eu entrava em meandros construtivistas e socioconstrutivistas. O conhecimento era construído por meio de experiências, que eu lhes facultava. Aqueles jovens construíam interpretações pessoais do mundo, num processo ativo de construção de significados. E tudo aprendiam solidariamente. Começava, aí, na solidariedade, a gênese da matriz axiológica do que mais tarde viria a ser… a Escola da Ponte. E cada qual no seu ritmo.

Aqueles jovens, nos seus sete aninhos, tinham chegado à escola sabendo ler. Quando os encontrei, já levavam sete anos de desaprendizagem, eram tratados como “burros”, estavam a um passo de sair da escola na condição de analfabetos. Ao compreender que eles não tinham “dificuldades de aprendizagem” e que eu padecia de dificuldades de ensinagem, conseguimos – exatamente, no plural, porque sozinho, nunca o conseguiria – em equipe, com o “quanto baste” de amor e intuição, besteirando e acertando, aqueles jovens se alfabetizaram.

Por que vos conto tudo isto?

Estou certo de que sabereis a resposta.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCXCVII)

Machio, 1 de novembro de 2041

O sistema educacional nada aprendeu com a primeira pandemia deste século. Após uma longa crise, manteve-se na rota da reprodução de um modelo enfermo de corrupção intelectual e moral.

Nos idos de vinte, encontrei centenas de livros didáticos, dentro de invólucros de plástico, num canto da biblioteca de uma escola. Outros, amontoados num corredor de uma secretaria, prontos para serem impingidos a crianças de… três anos!

Os manuais escolares, na sua maioria, não se recomendavam à inteligência, nem ao bom senso. Alguns anos atrás, uma ministra da educação parecia, finalmente, ter percebido o óbvio. Faltava apenas saber como desembrulharia o negócio das editoras.

Vozes esclarecidas, como a da minha amiga Tina, remavam contra a maré deseducativa. Numa velha pen drive, encontrei registro de uma das suas corajosas denúncias. No velho Facebook dos idos de vinte, deixava oportunas interrogações. Com a devida vénia e gratidão, aqui as deixo:

“As editoras atendem as necessidades dos professores, ou as editoras geraram nos professores uma cultura de dependência absurda de apostilas? Você decidiu ser professor, pois sua paixão era aplicar apostilas? Era robotizar todas as crianças para fazerem as mesmas coisas, com o mesmo método e no mesmo ritmo? Quando jovem você passou 4 anos na graduação aprendendo a ser aplicador de apostilas? Apesar de admirar Paulo Freire, decidiu aplicar a educação bancária, a ser o detentor do saber e a tratar as crianças como tábulas rasas? A pós-graduação te ensinou que as respostas estão no caderno do professor? As apostilas e o caderno do professor viraram a sua Zona de Conforto e sair dela lhe causa desestabilidade?

Você é marionete das grandes editoras e nem percebeu. Nos últimos 60 anos, acompanhamos uma crescente padronização educacional. Nos anos 50 uma cartilha se popularizou em todo Brasil e “o Ivo viu a uva” até nas regiões que não tinham uvas. Desde então, gigantescas editoras firmaram parcerias com o poder público. Acompanhamos a padronização sendo imposta em âmbitos municipais, estaduais e federais, com aprovações de grades curriculares cada vez mais formatadas, rigorosas e inalcançáveis. Quanto mais as grades padronizadoras avançam, menos aprendizagem significativa vemos… e ninguém vê relação entre esses movimentos? E há professores que pedem mais padronização? Não entendem que fazer mais do mesmo não irá gerar um resultado diferente? Qual a dificuldade de entender que a padronização é causadora de exclusão?

Vemos o avanço das padronizações dos saberes, dos métodos, das apostilas, das sequências, dos ritmos, dos comportamentos, dos horários, que pasteurizam até as músicas e as brincadeiras e sufocam as expressões culturais e regionais. Forçam que a criança deixe de ser ela mesma e passe a se comportar como o “indivíduo ideal” desejado pelos adultos, ou como diria Rubem Alves em Pinóquio às Avessas, robotizada, com comportamento subserviente, capaz de obedecer sem contestar, com boa memória para reproduzir feito papagaio o que foi definido pelos governantes e entregue pelas grandes editoras.

A padronização controladora extrai da criança a essência criativa e criadora e no lugar gera sentimento de inadequação, de incapacidade, de inferioridade, de fragilidade, de dependência, de impotência e de insegurança. A quem interessa uma nação formada por pessoas papagaios do saber alheio, frágeis emocionalmente e intelectualmente, sem capacidade de desenvolver o pensar crítico, analítico e criativo? Indivíduos ideais para quem?

Por: José Pacheco

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