Sintra, 11 de março de 2042
Saí da casa do meu amigo António na disposição de sobre o seu recente livro escrever. Um incidente, uma breve altercação me fez mudar de ideias, me trouxe à mente um episódio de há muitos anos. Vo-lo conto, tal como tudo se passou.
O Egídio não falhava um seminário, um colóquio, um congresso, que, no tempo em que o virtual ainda não ganhara hegemonia, eram eventos na moda, através dos quais se supunha os professores aprenderiam algo que lhes permitisse escapar à lógica da reprodução. Tese errada, como mais tarde viriam a concluir os estudiosos da matéria.
Empiricamente, obtive a prova do que os pesquisadores confirmariam muitos anos depois. O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras – que as escolas do seu tempo impunham a diferentes, únicos e irrepetíveis seres –, tomou consciência da diversidade rítmica quando menos esperava.
Certo dia, elogiei o Egídio, quando voltava de um congresso:
“Admiro a tua vontade de aprender. E, então? Valeu a pena?”
“Valeu, pois! Mas só até meio, que eu tive de me vir embora logo depois do intervalo”.
“Ora explica lá!…”
E o Egídio explicou.
No coffee-break (como era costume designar os intervalos dos congressos), o Egídio careceu de satisfazer uma das mais elementares necessidades fisiológicas. Dirigiu-se ao banheiro. Empurrou a porta. A célula fotoelétrica funcionou na perfeição. O controlo automático disparou. Fez-se luz.
O Egídio foi até ao fundo do corredor. Desapertou a braguilha. Encostou-se ao mictório. Aliviou-se, ou melhor e para não fugir à verdade, deu início à aliviação. Para não sair a meio da palestra, a contenção urinária havia sido longa. As águas a verter eram mais que muitas. Subitamente, a luz foi-se.
Sem deter a micção, o Egídio ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada. O WC manteve-se imerso na mais profunda escuridão. Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coisa e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna, que não tardou a sentir fria e desconfortável até aos sapatos.
O Egídio sacudiu-se. Depois, quedou-se, hirto e sofrido. Naquele preparo, empreendeu o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de cada vez que introduzia as mãos tateantes em humidades não identificadas.
Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontalmente contra uma traiçoeira parede que as trevas ocultavam.
Meio tonto da pancada, continuava a acenar com a sinistra, qual cego prestes a galgar um degrau de escada. Contornou o obstáculo, com a mão direita colada à dorida fronte onde começava a emergir uma dorida protuberância. Ao contornar a fatídica parede, o automático, que estava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou novamente. E fez-se luz!
A descrição que o Egídio fez desta cena acaba com uma imprecação proferida num tal vernáculo, que me vejo obrigado a dispensar-vos da citação.
Inteligente, como qualquer professor, o Egídio quis saber mais sobre o assunto. Apurou que os toques de campainha tinham sido introduzidos nas escolas do século XIX. Já ninguém se recordava dos objetivos visados pela longínqua introdução desse dispositivo, mas a sineta, manualmente acionada do tempo dos avós dos professores, soava agora, estridente, a mando de um computador. Sem que alguém, a não ser o protagonista desta estória, o vosso avô e mais um punhado de curiosos ousasse questionar o instituído.
Conclusão a extrair do lamentável e providencial episódio: os caminhos da conscientização são misteriosos e insondáveis.
Por: José Pacheco
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