Sobral Valado, 17 de março de 2042
Netos queridos, no mês de março de há vinte anos, a comunicação social transmitia em tempo real imagens de dor e destruição como aquela que encima esta cartinha e que acompanhava a notícia:
“A imagem é da repórter Daphne, quando as autoridades já tinham coberto os corpos da família morta. A fotógrafa Lynsey flagrou mais um capítulo trágico da guerra na Ucrânia. Um ataque com morteiros russos matou uma família de ucranianos que tentavam deixar a cidade de Irpin. O clique ocorreu logo após a detonação dos morteiros, quando soldados ucranianos tentam salvar o pai da família, que estava inconsciente no chão. A mãe, um adolescente, e uma garotinha já estavam mortos. Pela rua, as malas das famílias ficaram espalhadas. Perto deles, uma caixa verde tinha um pequeno cachorro, que latia”.
A par da guerra na Ucrânia e de guerras que a televisão e a Internet não mostravam, chegavam notícias de outros conflitos, de sofrimento oculto, como se as escolas fossem um grande campo de batalha. Recebia mensagens de desânimo, assinadas por desistentes. Outras, de impaciência, assinadas por resilientes.
“Caro José, esta necessidade de libertação está na raiz do empenho que emprego por uma educação que não foi a minha. Mas isto parece um “surf” em mar alto. Começar como começou foi isso, um vogar de crista em crista por ondas que já traziam destino. Sou eu que não tenho grandes expectativas quanto ao envolvimento dos professores e vejo mais o dedo de Deus e uma feliz coincidência de rotas que a séria apropriação da pedagogia.
Neste princípio de ano letivo, continuo a experimentar o “surf” mas, agora, em mar de tubarões com barbatana à tona d’água. E, pela dimensão dos ditos, temo que já nem a prancha se salve. O agrupamento onde a F. pontificava foi extinto e, agora, vejo-me a braços com um presidente em que não vejo outro empenho que não seja o de continuar a mandar. E um vice-presidente que, diligentemente, assegura páginas e páginas de horários e colocações e assim se tornou insubstituível ao primeiro, e um tenebroso e vingativo prócere.
Fiquei fora de mim, quando ele, ainda sem me conhecer, quis que eu alinhasse com ele, numa converseta estapafúrdia e infundada, para “queimar a F. e a O., umas “traidoras ao ensino, criaturas que alimentam as vontades dos pais”.
Queimei ali o empenho do biltre! O que ele queria era guerra. Eu sou amante da paz, mas devo reconhecer que, desde que existe Escola, existe uma desgastante guerra surda entre o velho enquistado e o novo apenas por alguns desejado”.
Tentei aquietar o subscritor da carta, mostrando-lhe que, apesar de serem só duas as professoras que queriam mudar, elas eram maioria numa escola de cerca de mil professores. A crer em Thoreau, “qualquer homem mais justo que seus semelhantes já constitui uma maioria de um”.
Como em todos os conflitos, havia o lado dos bons e o dos maus. Era evidente que nós estávamos do lado dos bons. Restaria saber de que lado estaríamos…
O conflito entre práticas conservadoras e novas práticas era velho de séculos. Em meados do século XX, um ilustre professor denunciava aquelas que considerava nocivas. Insurgia-se contra o comportamento dos professores que “evitavam problemas”.
“Porque sabem que o tratamento imparcial pode suscitar desagrado em certos círculos influentes, mudam de convicções, consoante julguem conveniente. Opõem-se à permanência na sua escola de elementos de incontroversa competência e dedicação, com receio de confronto e para a tranquilidade do seu ramerrão”.
Há vinte anos, o tradicional ramerrão começou a ser questionado.
Por: José Pacheco
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