Barca D’Alba, 20 de março de 2042
Há um tempo para cada coisa, até para reter a oratória, num reverente silêncio de escutatória. Por vezes, são tão densas as palavras escutadas, que se aproximam da leveza dos silêncios.
Venho falar-vos de palavras assim, após viajar por silêncios de fráguas sobrevoadas por águias-reais, na companhia da Maria, da Célia e das Inês. No vale onde o Douro entra em Portugal, juntámo-nos ao Filipe, num agradável bate-papo, seguido de um excelente repasto regado a tinto da região.
De passagem por Barca D’Alba, não resisti a fotografar a estátua de Agostinho da Silva (vo-la envio junto a esta cartinha) e a recordar palavras suas, pois recomendo sempre que se faça silêncio escutatório e, depois, um exercício de esquecimento, para que apenas fique em nós o que aprendemos com erros cometidos.
“Do que você precisa, acima de tudo, é de não se lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não seus. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence”.
No meu já longo percurso profissional, já fizera silêncio de recolhido inconformismo perante erros cometidos. Foram momentos de recomeçar, idênticos àquele que o Carlos me contou.
“Caro Zé, não conhecia ainda o sabor amargo da tristeza profissional. Há quem diga que, mesmo nos momentos difíceis, há que saber tirar os ensinamentos da vida. Eu não consigo. Só quero que o ano letivo termine rapidamente, para mudar de escola e poder projetar-me de novo.
Aquela sensação de poesia interior, que tantas vezes me avassalou, está longe de mim. Sinto-me prosa insignificante, com alma de manual escolar.
Sei que percebes aonde eu quero chegar”.
Eu sabia aonde o Carlos queria chegar ((Ah! Se todos os professores fossem feitos do seu molde!). E, por saber, me quedei em silêncio, num fraterno e comovido silêncio.
O que poderei eu dizer, amigo Carlos, que não fosse deturpado por aqueles a quem convém que o silêncio protetor da mediocridade te esmague? Que poderia eu escrever, que não fosse açoitado por aqueles que te roubavam a “poesia interior”?
Alguém quis que eu escutasse uma criança:
“Avô, hoje, aconteceu uma coisa muito importante na minha vida. Quando acordei, chamei a minha mamã e disse-lhe: “Tona pupa. Num qué!” (tradução: Toma a chupeta. Não a quero!).
A minha mamã perguntou: “Não queres a pupa, filhota? Então vamos pô-la no lixo?”
Eu respondi: “Sim, à uixo!” (tradução: Sim, no lixo!). Fui até à cozinha, no colo da minha mamã. E deitei a minha chupeta fora. Ficámos muito contentes com a minha coragem. Recebi muitos beijinhos. O pior aconteceu à tarde, quando fui dormir a sesta. Não tinha percebido as consequências do meu corajoso ato e chorei, até adormecer. Soube que os meus papás também sofreram muito, do outro lado da porta.
Chorei muito, muito, mas os meus papás conversaram comigo e eu acabei por perceber que a chupeta estava muito porca, dentro do lixo, e que eu sou uma menina grande e já não preciso dela para dormir. Já fiz a minha primeira sestinha sem “pupa”.
Estás contente por mim? Muitos beijinhos da Alice”.
Fiquei, avô-coruja, em silêncio, saboreando virginais palavras. O silêncio é da mesma natureza do sonho. E, se Víctor Hugo disse que se deveria julgar um homem por aquilo que ele sonhava mais do que por aquilo que ele pensava, mais valeria considerá-lo por aquilo que cala, do que por aquilo que diz.
Por: José Pacheco