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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXIV)

Alcabideche, 10 de março de 2042

Na primeira vez que, em terras de França, apresentei o projeto “Fazer a Ponte”, o comentário foi este: 

“Isso é tudo muito lindo, mas tudo não passa de teoria!”

Franceses, ingleses e alemães se mancomunaram na detratação do projeto. Por mais que lhes dissesse que estava falar de uma prática, nada feito! À exceção dos gregos e dos italianos, foi uníssono o comentário. Daí que, nas minhas falas, eu passasse a usar de metáforas e a exagerar nas aspas. 

Tal como na estória “o velho, o rapaz e o burro”, choveram as críticas dos acadêmicos:

“Deve pôr mais notas nos seus textos, citações, indicar bibliografia, ser menos metafórico”. 

Eu assenti. Sem querer ser mordaz, esclareci que o artifício funcionava como uma espécie de proteção. Quem escrevia sobre Educação num discurso sem aspas, arriscava-se a acabar os seus dias no divã do psiquiatra. Com o objetivo de escapar ao linguarejar “objetivo”, reincidia no uso excessivo de aspas. E, certa vez, usei-as para, num arremedo de “taxinomia”, descrever os professores que tinham passado pela Ponte. 

Por lá, tal como em outras escolas, havia professores que tomavam consciência da obsolescência do dito “ensino tradicional” e, também, quem nunca tivesse “perdido tempo a pensar nisso”. 

Os primeiros dividam-se em dois tipos: os que tentavam melhorar a sua prática (os “bem-intencionados”) e os que se faziam desentendidos, pois sabiam que deveriam mudar, mas não mudavam. Estes eram os “cínicos” (nesta tipologia, quase dispensaria as aspas). 

Os “bem-intencionados” subdividiam-se entre “praticistas”, “modistas” e “inovadores”. 

Os “praticistas” acreditavam que, para melhorar o seu desempenho, bastaria o “jeitinho” e a “experiência acumulada”. Por sua vez, estes poderiam ser divididos em dois subtipos: os que conseguiam efeitos inconsequentes, que pouco ou nada mudavam no essencial – eram os “imediatistas artesanais” – e aqueles que desistiam de modificar a sua prática, porque “já não estavam em idade para se meterem em aventuras”. Estes eram os “desistentes crónicos”. 

Os “modistas” copiavam “modas pedagógicas”, enfeitavam o “ensino tradicional” com modernos artefatos, criavam a aparência de novo. Eram uma espécie de “construtivistas não-praticantes” e subdividiam-se em duas espécies: os “travestis pedagógicos”, que se mantinham na segurança do ensino transmissivo oculto sob o manto diáfano de um cenário de modernidade, e os “militantes sazonais”, que mudavam de moda em conformidade com a que estivesse mais “in”, com a justificação de que “o que tinham tentado fazer não resultaria”. 

Os inovadores eram uma espécie rara. Poderíamos considerá-la mesmo em vias de extinção. Dividiam-se entre “neutralizáveis” e “resilientes”. Os “neutralizáveis” eram os alvos preferidos de quem lhes destruía os projetos e, não raras vezes, a saúde mental. 

Os “neutralizáveis” eram dignos de alinhar ao lado de um Ferrer fuzilado, ou de uma Louise deportada, numa “martiriologia” cujo rol só não se alongou, porque longe já ia o tempo da inquisição que imolara Giordano e assustara o Galileu. 

Os “resilientes” lograram encontrar uma “gramática da sobrevivência dos projetos”, que lhes permitiu ludibriar o sistema. 

Proponho, queridos netos, que coloqueis ciência no lugar da metáfora e um discurso limpo no lugar das aspas. A terminologia que eu utilizava carecia de uma melhor definição de conceitos, por exemplo, com recurso aos “ideais-tipo weberianos”. Mas, isso seria tarefa para alguém mais entendido do que eu, que não passava de um mero aprendiz de utopias.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXIII)

Murches, 9 de março de 2042

Ontem, uma boa alma me fez recordar um antigo ritual. Antigamente, era hábito comemorar o “Dia da Mulher”. Essa celebração foi caindo em desuso, à medida que dois géneros, juntamente com os géneros restantes, deram sumiço a atávicas segregações e colocaram o ponto final na “guerra dos sexos”.

Era sabido que, por detrás de uma grande mulher, havia sempre um bom homem. Exemplos era o que não faltava – O Einstein e a Curie que o dissessem – e o gênio criador do Celestin pedagogo se revelou, certamente, a partir de questionamentos formulados pela Élise:

“Como será uma aula onde os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, o mesmo?” 

Nos idos de vinte do século passado, Élise Freinet era uma mulher prevenida, tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrado em aulas dadas para um (inexistente) “aluno médio”, em tempos iguais para todos. Nos idos de vinte do século XXI, a pergunta da sábia Élise permanecia sem resposta.

A que se deveria tal desacerto? Na década de setenta, o vosso avô identificou uma das causas. Quando era obrigado a assistir a palestras, deparava com palradores de acetatos (os “acetatos” colocados em retroprojetores foram os antepassados do famigerado power point) debitando respostas à interrogação da Élise. Diziam aos professores como deveriam “diversificar as suas aulas”, mas, à saída dessas “ações de formação”, eu escutava o habitual comentário:

“Aquilo e tudo teoria!”

O teoricismo era a doença infantil da teoria. E, porque havia quem enveredasse pelo aventureirismo pedagógico, o discurso dos “formadores” até chegou a ser causa de muita desgraça.

Na década de oitenta, aquando da minha licenciatura em ciências da educação, tomei consciência de que, por detrás da prática da Ponte, havia muita teoria. Que não havia prática sem teoria. Mas, também, confirmei uma triste realidade: havia teoria sem prática. As teóricas respostas dos “formadores” nada tinham a ver com práticas, que eles, artificialmente, revestiam de jargão científico.

A propósito, recordo-me de um episódio ocorrido, quando eu tentava preparar futuros professores para a dura realidade das escolas. Tudo começou com a frase que caracterizava o início de cada um dos meus dias: 

“O que quereis saber?” 

“Fale-nos de Bruner!” – retorquiram. 

“Por que quereis que eu fale do Bruner?” – inquiri. 

“Porque vamos ter uma prova noutra disciplina e vai sair o Bruner.” 

“E o que já sabeis de Bruner?” 

“Nada!” – exclamou a turma, em coro. 

“Deixai ver se eu entendo. A prova é já na próxima semana e vós ainda não lestes nada sobre o Bruner?” 

“Para quê? Quando formos trabalhar numa escola, não vamos precisar disso! Isso é só teoria! Só queremos que você nos dê aula como faz o professor da outra cadeira.” 

Quando citaram o nome do professor e me recordei dele como “formador”, curioso como era e ainda sou, quis saber como o professor dessa cadeira dera a aula sobre Bruner. Responderam: 

“O senhor doutor projetou uns slides, umas transparências. E foi lendo o que lá estava, aquilo que o Bruner escreveu nos livros.” 

“E vós, que ides ser professores, não sabeis ler?” 

“Sabemos. É claro que sabemos ler!” 

“Então, ide até à biblioteca e lede o que quiserdes sobre o Bruner. Depois, trazei para aqui as dúvidas que a leitura vos tiver suscitado pois, para que haja diálogo, todos nós teremos de estar por dentro do assunto.” 

“Nós preferimos que você dê uma aula sobre o Bruner.” – e já aprontavam papel e caneta, para apontamentos. 

“Não, meus amigos! Não vou dar a aula sobre o Bruner! Sou professor, não sou papagaio!” 

E por aí se quedou a conversa.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXII)

Fajão, 8 de março de 2042

No mês de março do distante 2022, o inimaginável acontecia. A Europa estava, de novo, em guerra. No ritmo de um contrarrelógio, a população de Lviv tentava proteger edifícios históricos, estátuas, vitrais de igrejas, arquivos. 

Já vos falei de uma estátua de Cristo, que foi descido aos porões protetores de um abrigo. Cristo descia, de novo da cruz. Se os tanques russos já tinham bombardeado a maior central nuclear da Europa, o que os impediria de destruir obras de arte? Se militares russos violavam mulheres ucranianas, por que não violariam templos?

Por falar em mulheres, ficou famosa uma infeliz declaração de um deputado brasileiro em visita ao cenário de guerra. Ao deixar o país, na fronteira com a Eslováquia, enviou um áudio a alguns seus amigos, comentando sobre a beleza das refugiadas ucranianas. Disse que pretendia voltar ao Leste Europeu e que as mulheres ucranianas eram “fáceis” por serem pobres. Mesmo na boca de um mentecapto, essa afirmação seria considerada gravosa. Dita por um deputado da nação, imagine-se o que fora a sua educação. 

Qual a origem do machismo, da misantropia, da homofobia, dos fundamentalismos e das guerras? Hoje, é fácil identificar a origem de muitos males, que afligiam os seres humanos de então. 

Dois mil e vinte e dois anos depois, o crístico calvário se multiplicava, tragédias se sucediam. Um Cristo de madeira foi colocado debaixo do chão, numa cave que lhe serviria de abrigo. Tal como constava das escrituras, um dia, talvez deixasse o bunker, para subir a uma cruz de madeira e regressar à “vida normal”. 

Em contraste com o tempo dos homens, os deuses são eternos. Mas, no tempo de guerrear, muitas vidas não regressariam à “vida normal”, seriam sepultadas, sem esperança da ressurreição de uma Paz duradoura. Uma Paz que não era o mesmo que ausência de guerra. A Paz seria possível, como dissera um alto clérigo daquele tempo, se a todos os seres humanos fosse proporcionada habitação, alimentação, boa saúde, uma boa… educação. 

Se aprendêssemos a cuidar do ambiente, se não conspurcássemos as águas nem poluíssemos o ar. Se a educação familiar, social e escolar garantisse tais aprendizagens. A construção da Paz dependia da capacidade de amar, de criar harmonia. 

Ghandi, Luther King, Einstein, Mandela, Russel o tinham dito. Há quase um século, Miguel Torga escrevera um curto poema com o título “Fronteira”: “De um lado terra, doutro lado terra / De um lado gente; doutro lado gente / Lados e filhos desta mesma serra / O mesmo céu os olha e os consente”. Setenta anos antes da eclosão do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, na obra “A Última Oportunidade do Homem”, Bertrand Russell “explicava” que as vantagens do aumento da amplitude das unidades sociais eram principalmente evidentes em caso de guerra.

“A guerra foi em todos os tempos a causa principal desse crescimento, da transformação das famílias em tribos, das tribos em nações e das nações em coligações. Mas, muito embora seja grande o interesse das nações poderosas em triunfar, algumas começam a compreender que há qualquer coisa preferível à própria vitória, que é evitar a guerra”. 

Evitar a guerra passaria pela não discriminação, pela aceitação e harmonização de todas as crenças, pela inclusão do estrangeiro, por uma educação em direitos humanos promotora de valores éticos, desde o ventre materno à hora de uma morte. De uma morte serena, natural, sem guerra.

Há vinte anos, vivíamos num Carnaval entremeado de medo de uma Covid e no temor do uso de arsenais nucleares, num tempo que exigia profunda reflexão e um repensar a educação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXI)

Vale Derradeiro, 7 de março de 2042

No sétimo dia do março de há vinte anos, uma foto do André Alves, estampada nos sites da Internet, mostrava ucranianos retirando a estátua de Cristo da Igreja Cristã Ortodoxa Arménia de Lviv. As tropas russas aproximavam-se da cidade e, se já tinham bombardeado escolas e hospitais, seria possível que algum míssil pudesse atingir um templo. 

Cristo descia aos abrigos, juntando-se a mulheres e crianças que, chorando, diziam: “não quero morrer”. E a via sacra ucraniana ainda estava no princípio. 

Já se atingira a cifra de um milhão e trezentos mil refugiados da guerra da Ucrânia. Era já a maior crise humanitária na Europa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. 

Sempre que algum educador lamentava o drama dos refugiados, eu perguntava se não teríamos uma quota parte de responsabilidade. Morin havia escrito que a Modernidade – e, particularmente a escola da Modernidade – nos tinha confirmado numa ética individualista, que nos impedia de assumir responsabilidade por atos coletivos.

Quando, fraternalmente, eu questionava os meus colegas de profissão sobre o seu “modus operandi” e sobre as causas dos conflitos armados, perguntava, também, se isso não teria a ver com o modelo educacional por eles praticado. Escutava a inevitável resposta:

“Que queres que faça? É o sistema!”

A culpa era do “sistema” de um malfadado sistema, que os meus colegas de profissão alimentavam. Se me atrevesse a ir além de uma singela pergunta, teria de mudar de assunto, ou correr o risco de se irritarem. O “sistema” era assim, porque sim.

Talvez os meus colegas desconhecessem a existência de gente sábia questionadora do dito “sistema”, por exemplo, o Philippe. Num textinho que dava pelo título ”Pedagogia entre o dizer e o fazer”, interpelava o “sistema”. Com que direito a administração educacional manipulava o discurso das ciências da educação, para engendrar paliativos do “sistema”, mercantilizar a escola dita “pública” e impedir uma educação que substituísse a competitividade negativa pela cooperação?

Na aproximação aos princípios partilhados por Darcy e Agostinho, a escola deveria ser uma instituição promotora de desenvolvimento pessoal, no desenvolvimento de consciência ambiental e planetária, em práticas artísticas e culturais e de saúde pública, para além do mero aprender a contar, ou soletrar. Philippe sugeria que o papel do professor seria o de pôr em prática uma aprendizagem essencial, na gestão autônoma dos saberes. 

Pôr em prática! Era essa a mensagem. O Philippe era bem esperto. Muito aprendi com ele, sem conseguir chegar nem perto da sua erudição, mas transformando em prática os seus ensinamentos. 

Ele pugnava pela articulação do currículo com as finalidades da cultura escolar. Questionava a contradição entre usufruir e liberar, entre educar e emancipar. Escutemo-lo:

“Essa tensão entre teoria e prática, que constitui a grandeza e a fragilidade da Pedagogia, é, ao mesmo tempo, seu mérito e sua possibilidade de construir grandes transformações no aluno e mesmo na sociedade”. 

O Philippe acreditava que a superação da contradição pudesse ser encontrada no ético, no encontro entre o pedagogo e o “outro”. 

Se a solitária profissão de professor de sala de aula operava a transmissão do individualismo e da competição, o que poderíamos esperar a não ser uma aprendizagem pelo exemplo? Se o professor não desenvolvia nos alunos uma cultura de paz, o que deveria fazer? Delegar a sua quota parte da responsabilidade no diretor e no “sistema”, ou assumir um compromisso ético com a aprendizagem e com a educação?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCX)

Soeirinho, 6 de março de 2042 

Netos queridos,

Se, hoje, vivemos tempos de paz, nem sempre assim foi. Nos idos de vinte, a humanidade parecia possuída pela pulsão da morte. Tudo recomeçou na antiga Ucrânia e deixou rastros de morte e destruição, que apenas se apagaram no final da década. 

Na terça-feira de Carnaval de há vinte anos, o exército russo aproximava-se de Kiev. Em terras brasileiras, apesar das proibições, foliões juntavam-se em bandos propícios ao contágio de um vírus, que teimava em desaparecer. 

A humanidade colhia os frutos de uma educação competitiva, causa indireta da ignorância e do egoísmo patente nas iniciativas bélicas e no desrespeito pelo próximo. Há mais de um século, Maria Montessori nos avisara: 

“Todos falam de paz, mas ninguém educa para a paz. As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra”. 

Num jornal de março de há vinte anos, o Presidente da França dizia que o estado de guerra iria piorar. E um secretário de educação do Brasil, nestes termos, reconhecia que o estado da educação, também, iria piorar: 

“Aquilo que já era ruim ficou pior. Estou usando uma frase que já foi muito publicizada para dizer que o ensino médio já estava no fundo do poço e a pandemia mostrou que podia piorar”.

Perante os desanimadores resultados de sempre, efeitos de um sistema de ensino hierarquizado, autoritário, intelectual e moralmente corrupto, o Conselho Nacional de Educação admitia que a maioria dos alunos fora prejudicada e que estava ingressando no ensino superior sem estar devidamente preparada. Garantia que, para evitar novas perdas, seria necessário continuar ofertando atividades presenciais, deixando as escolas abertas. Mas, como garantir?

Se no Ensino Médio o cenário era de tragédia educacional, a situação no Fundamental não era das melhores. Os resultados ficavam abaixo do adequado em língua portuguesa. Um aluno que estava no 5º ano apresentava uma proficiência de um estudante do 3º ano. Cerca de 51% desses alunos, por exemplo, não conseguiriam responder uma questão para identificar a finalidade de um texto. No 9º ano, os alunos tinham o conhecimento adequado para o 7º ano. 

A notícia de onde extrai estes dados acrescentava que os estudantes dessa etapa chegavam ao ensino médio com “pelo menos dois anos de defasagem nos conteúdos”. E o que propunham os “especialistas” e os secretários de educação, para travar o avanço da ignorância?

Impotentes, recomendavam o costumeiro tratamento da crise. Uma “especialista” alvitrava que se deveria estruturar “um programa de recuperação para alunos do ensino médio, que saíram da escola com tantas defasagens”. E 

um secretário de educação corroborava a afirmação da “especialista”. Os alunos que concluíam o ensino médio tinham ainda “a chance de cursar um quarto ano opcional, criado em 2020, a depender de vagas disponíveis” (sic). E que pretendia lançar um programa com aulas aos fins de semanas, que poderia beneficiar ex-alunos e no preparatório do vestibular: 

“A única maneira de recuperar essas defasagens é oferecendo programas de recomposição das aprendizagens”

A “única maneira”? Ledo engano! Essa era, na verdade, uma das piores das “maneiras”.

Para não correr risco de acabar no divã do psiquiatra, eu juntava as escassas forças de um idoso na tentativa de me abstrair das pedagógicas besteiras em que a administração educacional era pródiga. Concentrava toda a minha energia na ajuda a gente boa. Nem todos os agrupamentos de escolas eram controlados por burocratas. E havia secretarias de educação geridas por educadores éticos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCIX)

Sobral de Baixo, 5 de março de 2042

No mês de março de há vinte anos, li numa revista um textinho, que me fez voltar sessenta anos atrás, recordar a leitura de um livro com o título “A hecatombe Escolar”. Esse textinho retomava o assunto e era assinado por um tal José Maria:

“O fracasso escolar não pode continuar a ser desastre “naturalizado”, não é um desastre natural, nem um acidente de previsão impossível, nem mesmo uma regularidade social inevitável. O fracasso é um fenômeno produzido pela ação dos seres humanos.

No entanto, é um produto humano que ninguém deseja e que ninguém diz produzir. É por isso que dá a sensação de que ninguém o produz e que é um fato espontâneo e natural. Apesar de tal ilusão, podemos afirmar que o fracasso é um resultado, talvez desejado, da ação humana. Mas o indesejado não retira responsabilidade a todos que nos encontramos envolvidos de uma forma ou de outra no mundo da educação.

Mas o fracasso não é apenas um fenómeno humano indesejado, mas, em muitos casos, obedece a certas lógicas de exclusão, que prejudicam camadas sociais e beneficiam outros grupos, mesmo nos casos em que ninguém parece ser o responsável.

Estamos, pois, a afirmar que, quando ocorre fracasso escolar, alguma política educativa ou alguma prática escolar não funcionam como deveria; que, portanto, devem ser reparadas; que as lógicas perversas que o geram devem ser estudadas e denunciadas, e que devemos comprometer a sua transformação”.

Sábias palavras que a administração educacional parecia ignorar. No mesmo mês do distante 2022, era dada a conhecer mais uma pesquisa denunciadora da “hecatombe escolar”. Mais uma vez, parecia não haver responsáveis. Mas, nesse ano, foi inventado um bode expiatório da “hecatombe”: a Covid-19. A pandemia “tinha as “costas largas”.

Nesse longínquo 2022, a média de proficiência em matemática entre os alunos do terceiro ano do ensino médio foi a pior da série histórica. Uma “especialista em educação” parecia não entender que as aulas presenciais ou à distância valiam o mesmo, isto é, nada. E assim comentava o descalabro:

“São Paulo foi um dos estados que mais rapidamente começaram a oferta de atividade remota e foi um dos primeiros a retornar com as aulas presenciais, mas, ainda assim, podemos ver grandes perdas em todas as etapas”.

A pesquisa concluía que os alunos do ensino médio de São Paulo saíam da escola com defasagem de quase seis anos em matemática. Em língua portuguesa, saíam da escola pública com um desempenho adequado para adolescentes que estavam no 8º ano do ensino fundamental.

Resignado e atirando a culpa para as costas da pandemia, o secretário da educação dizia que esses resultados já eram esperados. E lá voltava à velha fórmula no “cruzamento dos dados”:

“Queremos cruzar dados para entender, por exemplo: Quem teve melhor desempenho assistiu mais aula? Entregou mais atividades?”

Eu queria acreditar que o secretário usava de “nonsense”, para disfarçar a perturbação face à “hecatombe”. Seria uma fuga para a frente o falar sem sentido, transformando a afirmação em absurdo, numa piada sem graça. Através do humor com base em coisas absurdas, que aconteciam em cenários fictícios, era possível pensar de forma diferente do que estava definido como aceitável e lógico. Mas, não foi isso o que sucedeu.

Dizia a voz do povo que o pior cego era aquele que não queria ver. Era evidente o desvario dos administradores do “sistema”. Insistiam na encomenda de dispendiosas pesquisas e inúteis estudos, idênticos a pesquisas e estudos anteriormente encomendados, que jaziam no arquivo morto do “sistema”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCVIII)

Sobral de Cima, 4 de março de 2042

Nos idos de vinte, o fundamentalismo era uma enfermidade que afetava muitas seitas, igrejas, religiões. Mas aquele que mais me preocupava era o fundamentalismo… pedagógico.

Chegado ao Brasil, para mais um tempo de partilha de dúvidas e saberes, li uma matéria que espicaçou a minha curiosidade. Há já alguns anos, acompanhava uma polémica alimentada por adeptos do “método fónico” e do construtivismo. Não me envolvi na discussão, porque só valia a pena gastar o nosso tempo com assuntos sérios e porque sabia que o “melhor método” era coisa que não existia.

A matéria não constituía novidade, o conteúdo era mais do mesmo, mas não resisti a comentar alguns excertos. 

Escrevia o articulista que “a linha construtivista” era “predominante na maioria das escolas”. Ficar-lhe-ia eternamente grato, se me indicasse os nomes de algumas escolas que integrassem essa “maioria”. Não indicaram.

Tendo o escriba afirmado que “o método fónico” era “priorizado em vários países desenvolvidos”, pedi que me fosse dado conhecer, também, o elenco desses países “desenvolvidos”, com a indicação do número de escolas praticantes da dita “linha construtivista”, bem como dos países considerados “não desenvolvidos” onde a dita “linha” tinha sido adoptada. Não obtive resposta.

Assim como havia fiéis, que assumiam ser “não-praticantes” das suas religiões, parecia haver “construtivistas não-praticantes”, “fundamentalistas fónicos” e muita confusão. 

Li no mesmo artigo que “seria interessante iniciar um debate sobre alfabetização, tendo em vista os altos índices de repetência na primeira série”. Estaria a assistir à reedição de fúteis debates teoricistas? Estariam os adeptos do “método fónico” a confundir a árvore com a floresta, identificando recomendações com práticas efetivas? Partiriam do pressuposto de que o que estava escrito nos projetos da “maioria das escolas” correspondia às práticas de alfabetização que, efetivamente, na maioria das escolas tinham lugar? 

Quando a Covid se foi, instalou-se novo debate sobre o grave problema dos elevados índices de analfabetismo detectados… com os “especialistas” e os “fundamentalistas” habituais. 

Nesse idos de vinte, num ponto encontravam acordo: os déficits detectados na alfabetização das crianças se deveria, segundo eles, ao fato de as crianças terem estado dois anos afastadas da escola (leia-se: prédios das escolas). 

Grave equívoco, que impedia os “fundamentalistas” de compreender que não era essa a causa do insucesso. Se um ministério da educação, verdadeiramente, pretendesse encontrar caminhos para a erradicação do insucesso e da iliteracia, não poderia correr atrás de modas pedagógicas, de negacionismos, ou fundamentalismos. 

Sempre que me perguntavam qual era o “melhor método” de alfabetização, eu respondia que o melhor método era o método que melhor resultava, aquele que melhor se ajustava ao ritmo de aprendizagem de cada aluno, aos estilos de inteligência de cada aluno, ao repertório linguístico de cada aluno. 

Nos países ditos “desenvolvidos”, os níveis de insucesso eram assustadores e o “melhor método” era o “método único”. Isto é: na raiz da crise estava um projeto, como diria o Darcy. As escolas concebiam um projeto enfeitado de “inovações”. Mas, esse projeto escrito era contrariado pela prática. As escolas continuavam a reproduzir um modelo escolar e social gerador de insucesso. Era esse o projeto, que uma administração “fundamentalista” impunha às escolas.

O antídoto para fundamentalismos seria praticar Darcy.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCVII)

Aldeia do Meio, 3 de março de 2042

Escassos dias após a Alice nascer, “pássaros metálicos derrubaram torres altaneiras e semearam a morte nas terras do norte, na mesma terra de onde partiram mensageiros da morte semeando sofrimento no sopé dos Andes das terras do sul”. 

Nos dias que sucederam ao seu nascimento, “o reino dos pássaros vivia ensombrado por uma evidência: as sociedades que dispunham das melhores escolas eram as mesmas sociedades que produziam exércitos ocupantes e seres egoístas que, em nome do seu conforto, envenenavam os céus de todos os pássaros com gases letais”. Também através da escola se perpetuavam insanos ciclos de violência e morte. 

“Muito antes, no primeiro ano do vigésimo século da era dos homens (no tempo de um discreto anunciar de uma nova era), uma andorinha enunciou uma premonição jamais consumada. Essa andorinha acreditava que o vigésimo século do tempo dos homens seria chamado “o século da criança”. Acreditava que a escola faria dos pássaros e dos homens seres mais sábios e mais felizes.

Porém, durante todo esse século, a Escola apenas reproduziria velhos rituais sem sentido. A escola dos homens não produzia Humanidade”. E, em tempos sombrios, quando o desânimo ameaçava possuir-me, as metáforas me ajudavam a sair da difícil situação. Enviava-vos cartinhas, netos queridos, para aliviar mágoas e recuperar a fé:

No princípio do século em que nascestes, a escola já nem sequer ensinava. Foi por essa altura que uma gaivota de nome Jean explicou o que a ciência dos homens havia aprendido nas terras do sul. Sendo as gaivotas da estória pássaros “aprendizes até ao último bater do coração” ficaram presas à descrição da maravilhosa criatura. E a andorinha contou às gaivotas alguns segredos.

Quando a proximidade do Verão impelia as andorinhas a partir, elas voavam sempre em bando, desenhando no céu a forma de um vê. Quando uma andorinha batia asas, produzia uma corrente de ar ascendente que ajudava a progressão das companheiras que voavam atrás de si. Se, por efeito de um golpe de vento ou tentação de lonjura, alguma andorinha se afastava do bando, logo regressava ao seu amplexo protetor. 

Se a fadiga assaltava a andorinha que ocupava o vértice da cunha voadora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lugar. Poder-se-ia pensar que a andorinha que voava à frente de todas as outras cortava o vento sem ajuda de ninguém. Puro engano: se perante os seus olhos se estendia o sem-fim do espaço, atrás de si, todo um bando a impelia para a frente e lhe conferia a escolha do rumo. A ciência dos homens apurou que as andorinhas que voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que ocupassem os lugares da frente.  

Sempre que uma andorinha adoecia ou ficava ferida, logo duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de outro bando em migração, quando a andorinha doente recuperasse a capacidade de voar, ou morresse

Estas e muitas mais lições aprenderam as gaivotas, mas a maior das lições foi dada por uma andorinha que, apercebendo-se do drama vivido pela escola das aves, por ali se deixou ficar, enquanto durou o cerco imposto pelos abutres e pelas negrelas. 

É certo e sabido que nenhuma andorinha, em seu perfeito juízo, se deixaria ficar trocando o certo pelo incerto, arriscando a vida. Mas, esta aceitara plantar ninhos em outros beirais. 

Como sempre acontecia perante a simplicidade e a beleza de gestos que traziam à memória a simplicidade e a beleza esquecidas por muitos homens, quedei-me num silêncio comovido perante os gestos das andorinhas resilientes.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCVI)

Vidual, no primeiro dia do mês de março de 2042

Nesta cartinha, completo a transcrição da saborosa crônica do amigo Mauro, registro de fortes e boas impressões da visita a uma escola feita de “heroicos personagens”, que deste modo se expressavam, em demandas e ressalvas: 

“A tutoria poderia ser à tarde? A mudança do horário da escola não foi totalmente favorável.

Algumas vezes, senti que o tutor não tinha disponibilidade, pois tinha outros afazeres. 

Houve problemas, mas a tutoria foi muito positiva. Alguns colegas parecem não se adaptar à ausência de aulas, não aproveitam a liberdade para se desenvolver…

Outros professores poderiam se animar a se tornar tutores se conhecessem os resultados. Que tal se forem convidados a assistir às nossas apresentações?” 

A escola onde o Mauro deparou com as primeiras práticas de tutoria era a Luiz Martini de Mogi Guaçu, no Estado de São Paulo. O meu amigo fora até lá para conhecer novas práticas, a experiência de tutoria realizada a par do chamado “ensino convencional”. 

Tinham sido inúmeras as tentativas de “heroicos personagens”, todas elas coarctadas por uma administração educacional corrupta. Após vinte anos de infrutíferas tentativas, algumas dessas escolas retomavam o caminho da mudança e da inovação. E, desde 2018, a Luiz Martini saíra de “um estado física e psicologicamente precarizado, que chegara a registrar casos de violência e consumo de drogas por parte de alunos”.

Mauro descrevia “ganhos significativos da experiência como tutorando, a valorização própria e o exercício da autonomia”, pela voz dos jovens:

“Incrível é a gente poder falar e ser ouvido. Na tutoria, a gente se habitua a ser protagonista e assumir ganhos e perdas”.

Exemplo de como a liberdade cria possibilidades é a parceria entre duas amigas, com interesses distintos (em engenharia civil e em arquitetura), unidas num projeto comum para espaços subutilizados da escola. O resultado é uma planta em três dimensões consolidada em um vídeo:

“Conversei com minha amiga, numa ocasião que ela não estava tendo acesso ao tutor, e comecei a fazer as perguntas e questionamentos que ela faria! Quando percebi, estava sendo tutora também!” 

Mas, no plano do valor pessoal, uma frase sintetiza todas as demais:

“Antes, eu pensava que precisava me formar para ser alguém na vida. Com a tutoria pude compreender que eu já sou alguém na vida!”

Desde há, mais ou menos, setenta anos, educadores éticos e resilientes, como a Fabiana, dedicavam as suas vidas à busca da melhoria da vida de crianças e dos jovens ao seu cuidado. Inspirados no exemplo de uma escola portuguesa, projetos surgiram em outros países e assumiram nova dimensão em terras brasileiras. Se, em Portugal, a Ponte fora votada ao ostracismo, ela ressurgia na Heliópolis de São Paulo, na Âncora de Cotia, na Peregrina de São José do Rio Preto, na Serra de Belo Horizonte, na Guido de Lajeado, na Hegésipo de Natal… e ressurgia, também, em Portugal.

Voltemos à crônica do amigo Mauro:

Na Luiz Martini, as instalações e as relações pessoais demonstravam vitalidade. Além da limpeza e da manutenção em dia, os espaços têm intervenções e contribuições dos estudantes. Arte nas paredes, horta coletiva, troca solidária, presença de voluntários, ex-alunos contribuindo com projetos culturais. Concluo que a Luiz Martini está viva e potente.

Essa escola estava viva. Mas, habitávamos um tempo em que muitos professores morriam aos vinte e só eram enterrados aos sessenta. E, nas catacumbas da administração educacional, havia zumbis empenhados em assassinar projetos como o da Luiz Martini.

 

Por: José Pacheco

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