Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLIII)

Santarém, 20 de abril de 2042

Na década de quarenta, o Ministério da Educação mandou construir escolas, com o propósito de “combater o analfabetismo”. Era comum presenciar situações como aquela que vedes na foto que envio com esta cartinha. Crianças cobertas de rotos andrajos, pés descalços, tremendo de frio, soletrando a lição, no “livro único” da Ditadura.

Nessa década, Portugal assemelhava-se a uma aldeia de milhões de miseráveis, analfabetos, num país em ruínas, assolado pela fome, semeado de sanatórios carregados de tuberculose.

Em meados da década seguinte, este vosso avô foi encerrado numa sala de aula, na companhia de outras crianças tão ou mais pobres do que ele, maltratadas por professores cruéis. Para se protegerem do frio, alguns dos meus colegas chegavam ensonados por efeito das “sopas de cavalo cansado”, um “energético” de outros tempos, regado com vinho tinto.

Essa situação observei, no decurso da década de sessenta. E a vivi, já como professor, em prédios de escola de chão de terra e até mesmo na… Escola da Ponte. Não era raro que alunos meus pousassem a cabecinha na carteira e adormecessem. Chegavam descalços e com um copito de aguardente a servir de primeira refeição do dia. “Para lhes abrir a inteligência”, diziam os seus pais.

Quem, nos idos de vinte, visitava o edifício-sede da EBI, no local para onde a Escola da Ponte tinha migrado por imposição ministerial, não imaginaria o que fora o local de início do projeto. Em 1976, não me surpreendi com o cenário em que iria “dar aula”. Era um prédio construído no século XIX e reinaugurado em 1919. As paredes de estuque esburacado combinavam com o caruncho de velhas carteiras e com o soalho de madeira esburacado. 

Custará acreditar e até haja que tente destruir a memória de tenebrosos tempos. Durante a manhã, eu amaciava a fome de muitas crianças com o queijo da Caritas, a que juntava uma caneca de “leite escolar”. Quarto de banho não havia apenas um buraco imundo, de onde saiam ratazanas, dentro de um cubículo de porta a cair dos gonzos. 

Foi aí que imaginámos outros lugares e modos de aprender. Como diria o O’Neill:

“Imaginar, primeiro, é ver. Imaginar é conhecer, portanto agir”.

Fui para a Ponte logo após a Revolução dos Cravos, que Salgueiro Maia e outros corajosos militares nos legaram

Vai para vinte anos, numa tarde excepcional, em que não viajei nem fiquei cativo do computador, tive oportunidade de assistir a um filme sobre a vida de Salgueiro Maia.

Quando, em 1973, se iniciaram as reuniões clandestinas do Movimento das Forças Armadas, Maia estava presente. No 25 de Abril do ano seguinte, comandou a coluna de blindados que montou cerco aos ministérios do Terreiro do Paço. No seu quartel e na madrugada desse dia, assim falou para os militares presentes: 

Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai. Quem não quiser sair, fica aqui!”. 

Todos se lhe juntaram e seguiram para Lisboa, para acabar com uma ditadura de 48 anos. 

A sua coragem, posta à prova em outros momentos em que foi preciso defender a jovem democracia, granjeou-lhe muitos inimigos na classe política. Acabou sofrendo danos e perseguições. O Portugal de um Saramago exilado na Espanha e de outros gênios ausentes, assim tratava os seus heróis e sábios. A pesada herança do Estado Novo se fazia sentir sobre aqueles que rompiam com a mediocridade.

 

Por: José Pacheco

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