Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCLX)

Várzea de Sintra, 27 de abril de 2042

Vai para vinte anos, o amigo António me convidou para redigir um prefácio para o seu livro. Esse livro prestava um excelente serviço à causa da Escola Pública. Tratava-se de uma obra rara, dado que o seu autor habitava do chão da escola. Se obras congêneres consistiam em teorizações de teorias, essa falava-nos de uma práxis, isto é: de uma prática coerente com a fundamentação teórica, que o autor muito bem sinalizava. 

A obra expunha algumas preocupações, nomeadamente, sobre a necessidade de se aprofundar o conceito de ” flexibilização curricular”. Surgia num momento crítico, num tempo em que decorria mais uma tentativa de “autonomia e flexibilização curricular”. Eu, que já passara por quatro projetos de “flexibilização”, por quatro oportunidades perdidas, sabia que pouco ou nada fora flexibilizado com esse novo velho projeto. A intenção seria, secundando a obra do António, a de procurar evitar que a generosidade dos colegas que participavam do projeto se convertesse, mais uma vez, em desilusão. 

Causou-me grande espanto e apreensão ver uma proposta de “flexibilização” reduzida a um singelo jogo de somas e subtrações de tempos letivos. Apercebi-me de que a ênfase na “organização” se referia a passar de trimestre para semestre e outras minudências. Não seria a “flexibilização” muito mais do que simples alterações na gestão de tempos, dos espaços, ou no elenco de conteúdos e matrizes curriculares?

O voluntarismo dos agrupamentos de escolas deveria ser realçado. Mas o entusiasmo, por si só, não era suficiente. Um projeto desse tipo pressupunha auto iniciativa, não se poderia restringir à adesão a propostas ministeriais. Essas propostas, por mais meritórias que fossem, deveriam ser reinterpretadas, permanentemente refletidas, para que não se constituíssem em réplicas, cópias sem identidade. Fora o hábito de mera interpretação técnica de diretrizes, em detrimento da iniciativa das escolas, a mesma que condenara ao esquecimento muitas úteis iniciativas, que as transformou em clonagens sem nexo. 

Há bem pouco tempo, no decurso de um debate, alguém perguntara por que se tinha reduzido tempos numa determinada disciplina e aumentado em outra. Ninguém se dignou responder. E haveria resposta? Se a compartimentação disciplinar contrariava a emergência de verdadeiros projetos educativos, também a neurótica preocupação de dar o programa fazia prevalecer a lógica do ensino em detrimento da lógica da aprendizagem e produzia uma “caricatura” de flexibilização curricular.

Analisei as fichas de avaliação do chamado “projeto de flexibilização curricular”. Deparei com itens como: ““% de carga horária a gerir livremente”, ou “carga horária (minutos) por ciclo/nível e ano”. Eram “contas de mercearia”, que denotavam um determinado conceito de currículo. Impunemente, se continuava a contrariar o disposto na lei: “primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa e à possibilidade de adoção de soluções organizativas diversas”.

No início do projeto da “autonomia e flexibilização curricular, tudo ficava como antes estava, quando era toda a cultura de escola que urgia mudar. Seria preciso saber se estaríamos a lançar andaimes onde assentassem novas práticas de desenvolvimento curricular, ou se estaríamos apenas a pôr remendos em velhas rotinas. 

O que mais me desgostava era o fato de ser alguém formado em ciências da educação a coordenar esse inútil projeto, pois era obscena a conivência com espúrios desígnios ministeriais. 

 

Por: José Pacheco

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