Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXCIV)

Quinta do Conde, 2 de junho de 2042

Queridos netos,

À distância de vinte anos, tudo nos parece um sonho mau. Mas, na verdade, não se tratava de um sonho, mas de dura realidade. No mês de maio de há duas décadas, na América dita civilizada, um jovem de nome Salvador matava a “sangue-frio”, com extrema crueldade, vinte e uma crianças e duas professoras. 

Numa escola primária de um recôndito lugar do Texas, Salvador esperara, metodicamente, pelos seus dezoito anos, para comprar as armas com que iria cometer tal atrocidade. Comprou-as, imaginou tudo em pormenor, serviu-se de informação disponível na Internet, treinou os passos da tragédia, como se estivesse a jogar “Call of Duty”. 

Nas redes sociais anunciou o que ia fazer. Depois de tentar matar a sua avó, saiu de casa, entrou na escola e, numa sala de aula idêntica à que fora sua, executou crianças indefesas. 

Numa viagem para o sul, entrou no comboio um grupo de professoras. Sentaram-se junto de mim. Por isso, não pude deixar de escutar conversas. Começaram por comentar a situação na Ucrânia. Depois, manifestavam surpresa perante mais um massacre numa escola. E, sem entender a ligação causa-efeito, passaram ao comentário do insucesso de um projeto, de entre muitos que o ministério, desde há muitos anos, patrocinava. 

Uma delas, que disse “estar a fazer doutoramento”, recorria a termos colhidos num qualquer compêndio de ciências da educação e as colegas escutavam-na com visível reverência. Aplaudiram-na quando ela se referiu num tom crítico e destrutivo ao chamado “Projeto MAIA”. Desdenhava do “Plano do Aluno”, da “Ficha Formativa”, das “grelhas” e de outros afazeres, que o dito projeto impunha a professores cansados de “planificar”, de “aplicar fichas” e de “preencher grelhas”.

“Eu tenho lá tempo para isso! Já chega a papelada de final de ano, as reuniões de avaliação e tudo o resto. Agora, está na moda a avaliação por rubricas e as competências modelo Maia. E a avaliação formativa. Pois é! Modas que se vendem e professores que as compram. Não alinho. À falta de melhor, há o google. E não está à venda nem na moda” (sic). 

Não entendi, por completo, a lenga-lenga daquelas professoras. Mas fiquei surpreendido por perceber que confundiam avaliação com classificação e não faziam ideia alguma de como se praticava avaliação formativa.

Entretanto, a conversa mudou de tom e, pouco a pouco, as professoras se foram remetendo para o isolamento social, de atenção centrada no écran (na tela) dos seus telemóveis (os celulares do Brasil). Perto delas, viaja uma multidão silenciosa de estudantes alheia ao que se passava à sua volta, concentrada num contínuo bater de teclas. 

Para me distrair de conversas sem conteúdo, também liguei o meu ifone. E, como não havia coincidências, mas sincronicidades, logo deparei com palavras da Conceição, descrevendo aquilo que chamou de “exemplo gritante”: 

“Mês de junho. 2.º momento de avaliação formativa, decidido em departamento. 

Estudo do Meio 17 de junho; matemática 22 de junho; português 23 de junho. Ora o 2.º ano de escolaridade tem provas de aferição (avaliação externa) a 15 de junho (Português/Estudo do Meio) e a 20 de junho (Matemática/Estudo do Meio). Os professores da minha escola recusam a ideia de prescindir da avaliação interna e os miúdos de 7/8 anos estarão sujeitos a duas semanas de Fichas de Avaliação: 15, 17, 20, 22 e 23 de junho. 

Ridículo e até obsceno no meu entender. Estou sozinha nesta discussão. Porque o calendário da avaliação formativa foi aprovado em departamento e porque de outro modo não poderão atribuir notas “com rigor” aos alunos.”

 

Por: José Pacheco

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