Alandroal, 6 de agosto de 2042
Dizia o Mestre Agostinho que “o homem não nasce para trabalhar, nasce para criar, para ser o tal poeta à solta”. Segundo o Mestre, a pessoa deveria encontrar-se consigo mesma e fazer todo o possível para que não houvesse uma discórdia consigo mesma. Agostinho não desejava ser original: interessava-lhe ser verdadeiro, porque “o mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas.”
Frui de ter um poeta por professor, um professor-poeta (todos o são, mas este publicava poesia), que acendeu trilhos poéticos na minha existência e me levaram muito para lá daqueles versos que convencem os adolescentes de que são poetas.
Foi o primeiro professor a mostrar-me o que não cabe nas palavras, a guiar-me pelas palavras que estão para lá das palavras e das ideias que as palavras ocultam. Provocou-me deslumbramentos perante Caeiro e solenidade perante os primeiros versos da Sophya. Desocultou poetas malditos e resgatou um Camões que andava naufragado em fastidiosas dissecações de decassílabos.
O “sistema” sempre dispôs de educadores sensíveis, “poetas à solta”. Mas também havia gente insensível, que não reunia um mínimo de condições para exercer o múnus profissional.
Quando uma anta pedagógica disfarçada de professora deparou com uma aluna com elevado potencial, que não se comprazia com o rame-rame de fastidiosas aulas, assim se pronunciou:
“O que ela quer saber eu só lhe posso ensinar, quando ensinar o resto da turma. E só no quinto ano. Ela só está no segundo. E não acompanha a sala de aula”.
“Eu acompanho, sim, minha mãe. Eu entro na fila, direitinho” – comentou a menina.
A Malu já se habituara a entrar na “fila”, mas ainda resistia à domesticação dos sentidos, acompanhada por uma avó pedagoga atenta e interveniente. Quando a “professora” insinuou ser a Malu hipercinética e sugeriu a utilização de Ritalina, a avó reagiu à medicalização. E nem vos conto o que a avó Cléo disse e fez…
O Mestre Agostinho dissera que a solidão era uma ocasião extraordinária de diálogo consigo próprio. Infelizmente, muitas Malus não beneficiavam de ter uma avó protetora. Impotentes perante a insensibilidade de certos “professores”, se isolavam, desenvolviam neuroses, refugiavam-se numa solidão suicida.
Poderá parecer-vos ter usado de exagero. Suicídio era uma palavra proibida, quando se falava da infância. Mas, vos asseguro que, naquele tempo, crianças se suicidavam em tenra idade. Quando soubemos que, numa escola distante, uma criança de dez anos se matou, ingerindo veneno de escaravelho, apercebemo-nos de que havia solidão na infância. E criámos na nossa escola uma “caixinha dos segredos”.
Nas turmas-piloto do setembro de vinte e dois, outros dispositivos de relação foram criados: a “Assembleia”, o “Acho Bom”, o “Acho Ruim”, o “Proponho”, o “Preciso de Ajuda”, o “Já sei e Posso Ajudar”, os “Grupos de Responsabilidade” e outros, que “poetas à solta” reinventaram.
Alheios à possibilidade de redenção da Escola muitos “professores” insensíveis mantinham-se cativos de um negrume de sentimentos negativos. Mas, eu não desistia de acreditar, também, nesses “professores”. Acreditava que pudessem surgir prenúncios da bonança, que suavizassem iras e amaciassem conflitos.
Nos idos de vinte, seria necessário procurar professores que ainda não tivessem morrido, para entendermos como se processaria a transformação de adultos indiferentes em educadores sensíveis, que redescobrissem em si a sensibilidade perdida. Animava-nos a certeza de que houvera um tempo em que os professores a apreenderam nas crianças.
Por: José Pacheco
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