Rio do Ouro, 16 de agosto de 2042
Quase tudo o que aprendi o aprendi fora da escola. Melhor dizendo, fora dos prédios das escolas.
Nos idos de cinquenta, eu ia à escola, na parte da manhã. De tarde, trabalhava na oficina do meu pai. E, à noite, ia para a casa de um senhor que morava no primeiro andar de cortiço onde eu morava.
Era um tal cheirinho a livros naquele quarto! Todas noites, devolvia os livros já lidos e remexia prateleiras em busca de novidades. O senhor Carlos assistia à minha sôfrega busca, visivelmente satisfeito. Rejubilava por me ver sair de sua casa, levando nova remessa de banda desenhada (gibis) debaixo do braço.
Eu subia as escadas, duas a duas. Entrando em casa, espalhava os livros sobre a cama, para uma primeira escolha. Depois, sob a luz fraca, tremeluzente de um candeeiro a petróleo, noite adentro, esforçava os olhos na avidez de leituras urgentes: o Cavaleiro Andante, o Mosquito, o Pateta, a Fagulha….
O senhor Carlos era um homem era muito conhecido na minha rua, por não ter ido casar na igreja e por “ter ideias políticas”. Avisavam-me:
“Vê lá com quem andas! Na tua idade, do que tu precisas é de bons exemplos! Ainda vais dar em ateu!”
Na minha rua, o senhor Carlos era o único que tinha livros em casa e era uma das raras pessoas que sabia ler. Não era professor, mas ensinou-me a amar a leitura, muito antes de eu ir à escola. Hoje, sei que ele me ensinou a ler pelo método global de palavras, ainda que ele não soubesse que era um método. Mostrou-me, pelo seu exemplo, que há muitas maneiras de aprender… e de viver.
O Senhor Carlos possuía a estranha coragem de assumir a diferença, num tempo de medos e sombras. Creio mesmo ter modelado os meus afetos no amor que ele tinha pela sua companheira – um amor profundo e sem contrato.
Aprendi, muito cedo e com pessoas simples, os dons da dádiva, da simplicidade e da coragem, ainda que continue a considerar-me em déficit no uso de tais dons.
Quando fui para a primária, eu já sabia ler. Mas não tive outro remédio senão disfarçar. Tinha que escrever letras em carreirinhas e fazer de conta de que não sabia ler.
No meu primeiro dia de escola, o senhor Carlos juntou ao monte de livros de quadradinhos um livro grosso, que tinha escrito na capa: “A Oeste Nada de Novo”. Foi o meu primeiro livro sem figurinhas. E disse-me:
“Leva. Lê quando quiseres. Mas não mostres a ninguém.”
Explicou-me tratar-se de um livro proibido pela Censura. Explicou-me o que era a Censura. Explicou-me tanta coisa!
Quantas vezes tive de voltar atrás na leitura! Quantas mais vezes me apeteceu devolver o livro com uma desculpa esfarrapada do género:
“Ainda não consigo perceber o que querem dizer algumas palavras…”
Mas, quando ensaiei o pretexto, numa noite em que me perguntou se eu já lera algum bocadinho do romance, a frase saiu a falso. E, quando subi ao segundo andar, um braço segurava um macinho de livros, o outro ia abraçado a um dicionário. Eu não queria desiludir o senhor Carlos.
Levei a leitura até à última página. Aliás, à medida que avançava, menor era o sacrifício. E quando, orgulhosamente, dei por concluída a leitura desse primeiro livro sem figurinhas, eu vi os olhos do senhor Carlos brilharem, quando lhe disse:
“Senhor Carlos, não terá por aí outro romance? Pode até ter mais letras do que este!”
O Senhor Carlos apontou-me farta biblioteca. E eu fui saboreando Dostoievski, Camus, Pessoa, obras-primas da literatura universal… ganhei-lhe gosto. Mas, por que estarei a contar-vos coisas do tempo da minha infância?
Por duas razões. Primeira: Porque gosto de invocar gente extraordinária. A segunda é porque… gosto de contar estórias.
Por: José Pacheco
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