Aldeia da Prata, 2 de janeiro de 2043
Na década de setenta, o prefeito do lugar onde nasceu a Escola da Ponte era um indivíduo corrupto e prepotente. Por altura de um ato eleitoral, chorando convulsivamente, o pai de uma aluna me pediu para ir falar com o prefeito.
“Professor Zé, eu dei o meu nome para a lista da oposição. Ele é o meu patrão. Chamou-me ao escritório, despediu-me e despediu a minha mulher e o meu filho. Estou desgraçado!”
“O que quer que eu faça, meu amigo?”
“O senhor pode ir falar com o meu patrão e dizer-lhe que tiro o meu nome da lista? Pode ser que ele me deixe voltar a trabalhar na fábrica.”
Assim fiz, evitando o despedimento. Mas, ficou em mim, operacional da “Revolução dos Cravos”, o travo amargo da humilhação sofrida por um homem, que apenas pretendia exercer cidadania ativa.
A revolução, que acabou com 48 anos de ditadura, tinha acontecido quatro anos antes. A maioria dos prefeitos herdara vícios de antanho. A democracia ainda era uma miragem.
Dono de fábricas, esse prefeito era um dos maiores responsáveis pela poluição do rio que atravessava a vila. E, quando as crianças da Ponte, em assembleia, decidiram fazer um projeto de despoluição, alguns repórteres se interessaram pela “novidade” e até a televisão produziu uma reportagem. Era a primeira vez que Vila das Aves surgia na tela da TV. E por um bom motivo.
Na reportagem, as crianças denunciavam a atitude dos donos das fábricas, que tinham destruído a fauna e a flora do Rio Vizela. E isso não agradou aos donos das fábricas. Em especial, ao prefeito.
No dia seguinte, jagunços a soldo de “alguém” foram à escola, destruíram a horta comunitária, derrubaram o “hospital dos animais”, onde as crianças acolhiam e tratavam animais abandonados ou feridos, e os mataram. Com o sangue das inocentes vítimas, escreveram na parede da escola: “MORTE AO PROFESSOR”.
Foi a gota de água! O prefeito se apercebera de que, ali, morava um foco de aprendizagem de cidadania. E fez tudo o que pode para destruir a Escola da Ponte.
Em meia dúzia de anos, uma comunidade se constituíra a partir de uma escola. Tradições e saberes populares foram recuperados. Não demorou que pedissem que me candidatasse à presidência da prefeitura. Em espírito de serviço, aceitei.
No dia da eleição, quando terminou a contagem dos votos, as vozes do grupo de cantos populares que eu dirigia, acompanhados do som do cavaquinho, do bombo e da flauta, faziam chegar a notícia de que eu tinha sido eleito.
Não sei como descrever a emoção sentida, quando a porta da secção de voto se abriu e eu fui atirado para os braços de um povo, que devolvera a democracia à sua cidade.
Por que estou a contar-vos isso, se já são passados mais de sessenta anos?
Porque, no primeiro dia de janeiro de há vinte anos, , após tempos sombrios, assisti ao regresso da democracia ao meu país de adoção. E guardei numa velha pen drive a reportagem, que a tv realizou.
Nela, o presidente eleito dizia:
“Não nos interessa viver do passado. Democracia para sempre!”.
Vi o povo subir a rampa do palácio, ladeando o presidente eleito. Um novo país ali estava, diverso e fraterno. Vi uma catadora entregar-lhe a faixa presidencial. E, não sei se por ser velho chorão, dei por mim… chorando.
Já levo mais de quarenta anos de Brasil, mas sou português. Então, por que me emociono? Talvez porque, quando o presidente falou do direito à educação, eu avaliei o quanto seria difícil Lula conseguir desmontar um modelo educacional produtor de homofóbicos, racistas, misóginos, ditadores e outros bonsais humanos, que haviam usurpado as cadeiras do poder. E que pouco poderia fazer para o ajudar.
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