Algures, no dia 8 de janeiro de 2043
Queridos netos, certamente, vos recordareis das cartinhas enviadas à Alice, no primeiro ano deste século. Nelas vos dizia que os deuses se tinham zangado com os homens ensinantes e entregado dos destinos da escola aos pássaros, que, por tudo verem do alto, conseguiam ajudar a aprender.
Neste mesmo dia, mas há vinte anos, o editorial de um jornal qualificava de “imbecis criminosos” aqueles que tinham atacado e depredado as sedes do poder, em Brasília. O governo prometia severas punições. Mas, quem teria fabricado bonsais humanos chamados “antidemocráticos”?
Rezava a Constituição que a educação era dever da Família, da Sociedade e do Estado (através da Escola). E qual seria educação que a escola dava?
A universidade, que condenava atos antidemocráticos, não era o berço da democracia sonhado por Anísio. No que tange às ciências da educação, ela tinha sido invadida por “testas de ferro” (era o nome que se dava ao indivíduo que aparecia como responsável por um determinado negócio, enquanto o verdadeiro líder se mantinha no anonimato, controlando a empresa). A universidade – e as ciências da educação, em particular – estava colonizada por testas de ferro, reprodutores de bonsais humanos, como aqueles cujas atitudes criticava.
Uma praga de “doutorite made in USA” assolava a Escola brasileira. PhD produzidos a granel penetravam gabinetes dos ministérios, invadiam secretarias de educação, comandavam abútricas empresas e organizações generosamente financiadas, que operavam a mercantilização da escola pública.
Recordais-vos de eu ter dito que, quando fui para a educação, eu sabia muita coisa de engenharia, mas não sabia ser professor. E que “dei aula”, até me formar em ciências da educação. Pois ficai sabendo que diplomados em Engenharia, Física, Direito, Contabilidade, História, Filosofia, Geografia, Economia, Teologia, Marketing e titulares de outros cursos, que não o de ciências da educação, viraram “doutores em educação”!
Amanhã, vos falarei dos danos que esses “doutores” provocaram. Por agora, apenas vos deixarei um esboço do seu perfil. Fá-lo-ei com recurso à metáfora da brasileiríssima “rapadura”.
Para quem não tinha estudos, rapadura era um doce.
Para aqueles que concluíam o ensino fundamental, “rapadura” era açúcar mascavo em tijolinhos.
Quando se atingia o final do ensino médio (só metade o atingia), era açúcar não refinado, que não mudava de forma quando pressionado.
Quando se fazia graduação, “rapadura” apresentava-se em blocos sólidos e tinha sabor deleitável da secreção alimentar das abelhas.
Num mestrado, “rapadura” era sacarose extraída da cana do açúcar, apresentando-se sob a forma de pequenos sólidos tronco-piramidais de base retangular, que não alterava dimensões lineares, quando submetida a uma tensão axial em consequência da aplicação de compressões equivalentes e opostas.
Para os doutores, “rapadura” era o dissacarídeo de fórmula C12H22011, obtido através da fervura e evaporação de H2O do líquido resultante da prensagem do caule da gramínea Saccharus officcinarum (Linneu, 1758). Esse dissacarídeo impressionava, favoravelmente, as papilas gustativas, sugerindo impressão sensorial equivalente provocada pelo mesmo dissacarídeo em estado bruto, que ocorria num líquido nutritivo de alta viscosidade, produzido nos órgãos especiais existentes na Apis melífera.
Resta acrescentar que os analfabetos e sem curso sabiam fazer rapadura. E que nunca encontrei um PhD que soubesse.
Saberiam fazer rapadura, quando invadiram Sobral?
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