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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXII)

Bosque de Itapeba, 11 de janeiro de 2043

Esta cartinha parece ser o início de um “manual”. E não andará longe disso.  Ela se compõe de velhos trastes, de manuscritos e papeis escritos em máquina de escrever. Com todo o cuidado, os irei retirando do baú das velharias. As teias de aranha não os danificaram, mas a humidade conseguiu tornar ilegíveis alguns dos documentos.

Naquele tempo, os disparates ministeriais – como a “sobralização” de que vos falei na cartinha anterior – eram consumados sem que se soubesse da sua fundamentação científica. Mas os passos dados no sentido da mudança e da inovação deparavam com armadilhas legalistas e ameaças de “fagocitose”. Como diria o amigo Miguel, quem rompesse com rotinas era acusado de ser presunçoso, chamado de ingénuo, apontavam-lhe problemas emocionais e negava-se a viabilidade dos seus projetos.

No final de uma das nossas cartinhas, vos havia perguntado se queríeis que vos informasse das respostas dadas ao meu insistente questionamento do sem sentido da escola.

Dois meses após as primeiras fraternas perguntas, ainda não havia chegado qualquer resposta. Presumindo que nem sequer as lessem, deixamos os teóricos e teoricistas entregues aos seus devaneios e fomos realizar o necessário, começando por definir e operacionalizar conceitos essenciais do nosso projeto de criação de redes de comunidades de aprendizagem.

Fizemo-lo, testando uma nova práxis, uma prática revestida de ciência prudente, concomitante com transformações no seio da comunidade de contexto. Fizemo-lo em equipe, produto de muitas mãos, isomorficamente revelado – o modo como agíamos com a comunidade era idêntica ao modo como a comunidade conosco lidava.

Definida uma matriz de valores e depois de elaborada uma carta de princípios, um círculo de aprendizagem começou a tomar forma. No início, nada fácil a reunião de pessoas de diferentes origens e práticas sociais, de diferentes credos e subculturas educacionais.

O que nos unia era uma visão de mundo onde não cabia o individualismo e a competitividade negativa geradora de solidão. E, também, a preocupação de garantir a participação de todos na nova construção social. Por isso, sem prescindir de uma fundamentação teórica coerente, evitávamos os alinhavos de citações de que eram feitas teses e dissertações. Testávamos os teóricos, no chão da escola. E, no final do primeiro dos livros por nós publicados, constava a lista de autores estudados.

Por que chamar “círculo de aprendizagem” ao primeiro dos dispositivos da composição de uma comunidade? Porque estávamos numa fase de autorização no que referia à criação de novas formas de real.

Quando a retórica era contraditória com tendências práticas, havia espaço para desenvolver práticas que não eram as oficialmente induzidas. Havia um espaço de legitimação para desenvolver outro tipo de práxis, mesmo que estas não beneficiassem de financiamento. Havia espaço para, realmente, ligar a formação à vida.

O círculo de aprendizagem (doravante designado por CA) poderia ser definido como um pequeno grupo de pessoas de todas as idades, que se reunia para aprender, no contexto de um determinado território e de forma organizada.

O cerne inovador dessa definição seria o não haver “professor”. Os participantes contribuíam, conjuntamente, para o desenvolvimento de estudos, para a busca de conhecimento, numa aprendizagem dialógica mediada por tutores (em outra missiva, descreverei as diferenças entre os estatutos de professor e de tutor). O CA concretizava o quarto “pilar da educação” – o aprender a conviver.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXI)

Brasília, 10 de janeiro de 2043

Netos queridos,

Nascestes no início deste século, mas houve alguém que, já no início do século XX, acreditava serem os seres humanos capazes de buscarem, em si próprios e entre os outros seres, a perfeição possível. E, no início do século vos dizia que, entre o brincar sem cuidados e o ir à escola, as crianças que vós éreis se fariam “alunos”.

Queria acreditar que, em 2007, já não sofreríeis os dramas que crianças de outras gerações suportaram. Iríeis fazer novos amigos e conhecer adultos que, supostamente, vos ajudariam a crescer e a compreender o mundo. Esse mundo novo e misterioso, que se abria para os vossos olhos de meninos curiosos, era fonte de estórias que não vos pude contar quando éreis pequeninos, estórias da escola de velhos mundos de outros tempos, que ficaram por contar.

Através das imperfeitas palavras, viajo ao tempo em que já se desenhavam os destinos das crianças futuras, em escolas de um devir luminoso, enquanto outras escolas deixavam de fazer sentido, deixando de se perguntar se fariam sentido.

Por esse tempo, educadores éticos tentavam recriar a Escola, humanizando-a, e se confrontavam com extremas dificuldades. Sofriam os efeitos do “dever de obediência hierárquica”, associado ao proverbial autoritarismo de ministérios e secretarias.

Ontem, usei como metáfora a rapadura. E vós respondestes que sabíeis do que eu estava a falar. Por isso, vos deixo algumas perguntas, como “tarefa de casa”.

Quando algum professor, efetivamente, “ensinava a fazer rapadura”, os “superiores hierárquicos” proibiam-no de o fazer e ameaçavam-no.

Isso não configuraria crime de assédio moral?

O “sistema” não era apenas hierárquico. Era autoritário. Fazia aprovar leis, planos, projetos de cariz humanizador, documentos potencialmente inovadores. Mas, impunha às escolas práticas contrárias à prossecução dos objetivos contidos nesses documentos.

Essa imposição não significaria crime de falsidade ideológica?

No início do novo governo, o ministério adotava práticas neoliberais, que provocariam o mesmo efeito das anteriores. O instrucionismo gerara analfabetismo e exclusão. Quando se juntava uma proposta neoliberal a um ministério instrucionista, o que esperar a não ser a continuidade do abandono intelectual de milhões de alunos?

Isso não constituiria mais um crime anunciado?

O “sistema” era, também, moralmente corrupto e contrariava o disposto na Constituição – o custo aluno-ano não correspondia ao custo aluno-qualidade. A escola pública era mercantilizada, através de contratos com abútricas empresas, ao engendrar máfias da merenda, do transporte e do livro didático. Um IDEB falsamente fabricado e outros índices manipulados, não conseguiam disfarçar as perdas de investimento.

Isso não configuraria crime de ineficiência administrativa?

Last, but not least (invocando a neocolonização da educação brasileira pelos anglo-saxônicos): dispúnhamos de uma lei de bases, de planos estaduais e municipais de educação, de um estatuto da criança e do adolescente e de projetos político-pedagógicos. Mas as intenções desses documentos eram contrariadas por impunes práticas legitimadas por doutores, cujas teses colocavam o aluno no centro do processo, mas que davam aula centrada no professor.

Isso não configuraria crime de “falsidade ideológica”?

Netos queridos, no janeiro de há vinte anos, a raposa neoliberal entrava no galinheiro instrucionista. E o vosso avô só pedia diálogo, para evitar que se perdessem quatro anos de promessas de mudança.

Diálogo! Só isso.

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCX)

Algures, no dia 8 de janeiro de 2043

Queridos netos, certamente, vos recordareis das cartinhas enviadas à Alice, no primeiro ano deste século. Nelas vos dizia que os deuses se tinham zangado com os homens ensinantes e entregado dos destinos da escola aos pássaros, que, por tudo verem do alto, conseguiam ajudar a aprender.

Neste mesmo dia, mas há vinte anos, o editorial de um jornal qualificava de “imbecis criminosos” aqueles que tinham atacado e depredado as sedes do poder, em Brasília. O governo prometia severas punições. Mas, quem teria fabricado bonsais humanos chamados “antidemocráticos”?

Rezava a Constituição que a educação era dever da Família, da Sociedade e do Estado (através da Escola). E qual seria educação que a escola dava?

A universidade, que condenava atos antidemocráticos, não era o berço da democracia sonhado por Anísio. No que tange às ciências da educação, ela tinha sido invadida por “testas de ferro” (era o nome que se dava ao indivíduo que aparecia como responsável por um determinado negócio, enquanto o verdadeiro líder se mantinha no anonimato, controlando a empresa). A universidade – e as ciências da educação, em particular – estava colonizada por testas de ferro, reprodutores de bonsais humanos, como aqueles cujas atitudes criticava.

Uma praga de “doutorite made in USA” assolava a Escola brasileira. PhD produzidos a granel penetravam gabinetes dos ministérios, invadiam secretarias de educação, comandavam abútricas empresas e organizações generosamente financiadas, que operavam a mercantilização da escola pública.

Recordais-vos de eu ter dito que, quando fui para a educação, eu sabia muita coisa de engenharia, mas não sabia ser professor. E que “dei aula”, até me formar em ciências da educação. Pois ficai sabendo que diplomados em Engenharia, Física, Direito, Contabilidade, História, Filosofia, Geografia, Economia, Teologia, Marketing e titulares de outros cursos, que não o de ciências da educação, viraram “doutores em educação”!

Amanhã, vos falarei dos danos que esses “doutores” provocaram. Por agora, apenas vos deixarei um esboço do seu perfil. Fá-lo-ei com recurso à metáfora da brasileiríssima “rapadura”.

Para quem não tinha estudos, rapadura era um doce.

Para aqueles que concluíam o ensino fundamental, “rapadura” era açúcar mascavo em tijolinhos.

Quando se atingia o final do ensino médio (só metade o atingia), era açúcar não refinado, que não mudava de forma quando pressionado.

Quando se fazia graduação, “rapadura” apresentava-se em blocos sólidos e tinha sabor deleitável da secreção alimentar das abelhas.

Num mestrado, “rapadura” era sacarose extraída da cana do açúcar, apresentando-se sob a forma de pequenos sólidos tronco-piramidais de base retangular, que não alterava dimensões lineares, quando submetida a uma tensão axial em consequência da aplicação de compressões equivalentes e opostas.

Para os doutores, “rapadura” era o dissacarídeo de fórmula C12H22011, obtido através da fervura e evaporação de H2O do líquido resultante da prensagem do caule da gramínea Saccharus officcinarum (Linneu, 1758). Esse dissacarídeo impressionava, favoravelmente, as papilas gustativas, sugerindo impressão sensorial equivalente provocada pelo mesmo dissacarídeo em estado bruto, que ocorria num líquido nutritivo de alta viscosidade, produzido nos órgãos especiais existentes na Apis melífera.

Resta acrescentar que os analfabetos e sem curso sabiam fazer rapadura. E que nunca encontrei um PhD que soubesse.

Saberiam fazer rapadura, quando invadiram Sobral?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCIX)

Algures, em 8 de janeiro de 2043

No janeiro de há vinte anos, a cupidez dos políticos e a apatia dos educadores permitiam que se instalasse no ministério mais um “modismo”. A “sobralização” do sistema poderia provocar danos irreparáveis. Poderia ser causa de normose e até mesmo de retrocesso num debilitado sistema educativo.

Consciente do risco, catei do fundo do baú das velharias e enviei aos companheiros das ciências da educação uma cartinha enviada à Alice, no dia 11 de setembro de 2007. Vos darei a ler alguns excertos.

“Neste mesmo dia de há seis anos, pássaros metálicos derrubaram torres altaneiras e semearam a morte nas terras do norte. Na mesma terra de onde partiram, num outro 11 de Setembro, mensageiros da morte que semearam sofrimento no sopé dos Andes, nas terras do sul.

É verdade, querida Alice, nos dias que sucederam ao teu nascimento, o reino dos pássaros vivia ensombrado pela compreensão de uma evidência: as sociedades que dispunham das melhores escolas eram as mesmas sociedades que produziam exércitos ocupantes e seres egoístas que, em nome do seu conforto, envenenavam os céus de todos os pássaros com gases letais.

Nesse tempo, também através da escola se perpetuavam insanos ciclos de violência e morte.

Muito antes, no primeiro ano do vigésimo século da era dos homens (no tempo de um discreto anunciar da era dos pássaros), uma andorinha enunciou uma premonição jamais consumada. Essa andorinha acreditava que o vigésimo século do tempo dos homens seria chamado “o século da criança”. Acreditava que a escola faria dos pássaros e dos homens seres mais sábios e mais felizes.

Porém, durante todo esse século, a Escola apenas reproduziria velhos rituais sem sentido. A escola dos homens não produzia humanidade, produzia bonsais humanos.

No princípio do século em que nasceste, a escola já nem sequer ensinava. Mas foi também por essa altura que uma outra gaivota (de nome Jean) explicou o que a ciência dos homens havia aprendido com as suas companheiras vindas das terras do sul. Sendo as gaivotas da nossa história pássaros “aprendizes até ao último bater do coração” ficaram presas à descrição da maravilhosa criatura. E a andorinha Jean contou às gaivotas segredos que ajudaram a melhorar a escola das aves.

Quando a proximidade do Verão impelia as andorinhas a partir, elas voavam sempre em bando, desenhando no céu a forma de um vê. Quando uma andorinha batia asas, produzia uma corrente de ar ascendente que ajudava a progressão das companheiras que voavam atrás de si.

Se, por efeito de um golpe de vento ou tentação de lonjura, alguma andorinha se afastava do bando, logo regressava ao seu amplexo protetor. E, quando a fadiga assaltava a andorinha que ocupava o vértice da cunha voadora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lugar.

Poder-se-ia pensar que a andorinha que voava à frente de todas as outras cortava o vento sem ajuda de ninguém. Puro engano: se perante os seus olhos se estendia o sem-fim do espaço, atrás de si, todo um bando a impelia para a frente e lhe conferia a escolha do rumo.

Aliás, enquanto durou, a ciência dos homens apurou que as andorinhas que voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que, por contingência, ocupassem os lugares da frente.”

Na manhã de um domingo de há vinte anos, enviei essa cartinha a amigos, que eu sabia serem capazes de evitar que uma nefasta “sobralização” se consumasse. Acreditava que o ministério acolhesse outras propostas de mudança e fosse sensível ao convite para um diálogo que esclarecesse equívocos

Como diria o Geraldo: quem sabe faz a hora… aprendendo a “voar em vê”.

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCVIII)

Palestina do Norte, 7 de janeiro de 2043

Netos queridos, na cartinha de ontem, vos falei dos dias cinzentos, que se seguiram à clara manhã do primeiro de janeiro de vinte e dois. O novo governo enfrentava dificuldades sem fim. E reminiscências de tempos sombrios se faziam sentir no campo da educação.

O Relatório do Grupo de Transição enfatizava “os ataques às universidades” cometidos pelo governo anterior, embora não tivessem sido o que de mais grave o desgoverno cessante fizera. Nem o tinham sido os “retrocessos normativos”, pois se mantiveram fundamentados em critérios de natureza administrativa, quando deveriam obedecer a critérios de natureza científica.

Como vos disse, o novo MEC funcionava segundo um velho estilo, no pressuposto de que a educação melhoraria com a luz de um “farol” e a generosidade de institutos e empresas. A essa mágica dupla se juntava a “ajuda da universidade”, de uma “universidade em xeque” (título de um artigo publicado no início de janeiro):

“O ensino superior precisa se reinventar (…) há uma questão de fundo que não pode passar despercebida: o ensino universitário, da forma como está estruturado, parece incapaz de despertar o interesse de uma parcela da juventude (…) que deixa de perceber a universidade como a principal rota para a conquista do emprego. A perspectiva de passar três, quatro ou cinco anos na faculdade, não raro em estruturas engessadas nas quais uma disciplina é pré-requisito para cursar outra, desagrada a muitos jovens.”

Seria essa universidade, aquela que perdera o monopólio do saber e apenas mantinha o da creditação, quem iria “ajudar o ensino básico”? Passemos adiante:

“É essencial ter em mente que as universidades são, por excelência, o lugar onde se faz pesquisa e onde se formam pesquisadores (…) é das universidades que irradia o livre pensar.”

Este último excerto era um despropósito. Como se a pesquisa não fosse apanágio da primeira infância e o livre pensar não começasse vinte anos de uma criança nascer!

Reiterando que não generalizo críticas e me refiro apenas ao domínio das ciências da educação, poderei afirmar que foi na universidade que vi o maior cerceamento do livre pensar e a subordinação ao pensamento de outrem.

Quanto a pesquisa, foi na escola básica de recorte antropogógico que assisti a atividades de pesquisa que não se confundiam com acadêmicos alinhavos de citações de citações. Mas, vejamos a conclusão do artigo:

“A universidade não pode ser refém do academicismo, isto é, deve ter a capacidade de perceber o que está acontecendo na vida das pessoas comuns.”

O articulista talvez tivesse lido o que Agostinho escrevera, em meados dos anos sessenta:

“A Universidade brasileira não pode importar modelos que se prendam a outras economias e a estádios de desenvolvimento e de educação, que não são os seus. A missão essencial do Brasil é pensar qual a missão desse homem no mundo; problema em que não [se] está pensando”.

Há uns trinta anos, estive na Stanford University e em escolas que diziam seguir ensinamentos dessa e de outras instituições de ensino “superior”. Levaram-me até uma escola do “inferior”, para que visse uma “inovação” recente, obra de uma doutoranda.

A senhora começou a aula, lembrando aos seus alunos a dita “inovação”. Na lousa digital surgiu um dístico contendo duas expressões: “I need help / I can help”. Sorridente, a doutoranda disse ir incluir na sua tese aquela “inovação”.

O que aconteceria, se eu lhe dissesse que o “Preciso de Ajuda” e o “Posso Ajudar” constavam do complexo sistema de dispositivos pedagógicos da Ponte… há décadas?

 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCVII)

Guará, 6 de janeiro de 2043

Nunca será demais invocar a Magda, pois a nossa Mestra não era omissa, perturbava os burocratas do “sistema”, que a criticavam, injustamente. Ei-la:

“Esse é o problema da educação brasileira: busca-se resolver apenas a quantidade de carteiras nas salas de aula. fica faltando a qualidade do ensino e, portanto, de aprendizagem.”

Se esse “aviso à navegação” se justificava no século XX, ele era incontornável no XXI. Sobretudo quando um novo governo anunciava uma educação nova, tendo por referência velhas e equivocadas práticas, ornamentadas com marketing político. No janeiro de há vinte anos, a julgar pelas primeiras intervenções públicas, era essa a infeliz opção. E se anunciava deste modo, pela voz de um respeitável acadêmico:

“No campo social, há um sentimento de grande retrocesso nos últimos quatro anos, muita coisa que andou para trás e que precisa ser recolocada rapidamente nos trilhos. O que se viu nesse período foi o crescimento da articulação do chamado terceiro setor (institutos e fundações de empresas). Caso isso não tivesse acontecido, o cenário da educação brasileira, em termos do processo do ensino e da aprendizagem escolar, seria ainda muito mais dramático.”

Reparai no tom apocalíptico usado pelo articulista. A salvação da pátria adviria de institutos e empresas, da “ajuda da universidade”, e de um salvífico município, considerado “o farol que iluminava a educação brasileira”.

Como vedes, os primeiros tempos do novo governo não auguravam nada de bom no domínio da Educação. A opção pelas “carteiras nas salas de aula” arriscaria o adiamento da prossecução de “direitos fundamentais”, como o direito à educação.

Entrava no ministério mais uma “moda pedagógica” levada por políticos, que, ingenuamente, acreditavam ter encontrado a solução para os males do “sistema”, traduzida em rankings como o do IDEB.

O “farol que iluminava a educação brasileira” reduzia o currículo ao “back to basics”. Privilegiava o ensino de português e matemática, e o resto ficava para as calendas. Dessa aberração importada dos anglo-saxônicos vos falarei em próximas cartas.

No outro lado do Atlântico, já se havia dissipado a crença na bondade dos rankings e ilusórios índices, como o IDEB. De lá chegavam reações, que os da banda de cá deveriam levar em consideração:

“Não podemos deixar a escola bloqueada por uma pedagogia medíocre. Quando se fala em diminuição do currículo, isso não pode ser sinônimo da velha ideologia do “back to basics”, isto é, de dar só matemática e português. Aprender não é ter uma hora de aula de matemática.”

Nesse tempo, o Brasil já dispunha de projetos de qualidade muito superior ao de Sobral. E aquilo que o MEC assumia como projeto de mudança não passava de ser a réplica de uma “receita” importada dos Estados Unidos, com que Sobral alcançara um elevado “índice de decoreba” (não confundir com “desenvolvimento”).

Importa acrescentar que essa “receita” fracassara na origem. Hoje, sabemos que, também, iria fracassar no Brasil. Mas, naquele tempo, os destinos da educação estavam nas mãos de “aprendizes de feiticeiro” (com ou sem doutorado). Medidas de política educacional, que deveriam obedecer a critérios de natureza científica, eram tomadas por políticos e “especialistas”, para os quais as ciências da educação eram ciências ocultas.

Os meus companheiros das ciências da educação sabiam que “sobralizar” a educação brasileira significaria desperdiçar quatro anos de governação, perder mais uma oportunidade de mudança. Por que se manteriam apáticos, silenciosos?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCVI)

Ipê, 5 de janeiro

No janeiro de há vinte anos, o velhinho Theo foi o primeiro a deixar a Terra do Brincar. Esperou que o Lucas nos visitasse, para se despedir do mundo dos cachorros e dos homens. As lágrimas do Lucas, da Malu e da Bruna se juntaram à terra que o abraçou, na despedida de um ser que eles tanto tinham amado e cuidado. É sobre o cuidar que, hoje, vos falarei. Porque, se vivíamos no seio de uma sociedade doente de individualismo, também havia quem soubesse cuidar.Na primeira vez que tentei juntar pessoas, fazê-las experimentar uma vida em comum, pôr em prática princípios que já eram caraterísticos do paradigma da comunicação, deparei com inesperadas dificuldades. As crianças traziam de casa hábitos em tudo opostos a uma ideia de corresponsabilização. Algumas nem sequer eram responsáveis por si mesmas. Refletimos sobre a bagunça. E os “grupos de responsabilidades” surgiram, quando materiais começaram a desaparecer, quando objetos eram deixados ao “deus dará”, quando o autoclismo não era acionado… Não perguntaríamos de quem eram os objetos que tínhamos apanhado e guardado. Nem daríamos um novo lápis a quem havia perdido o seu. Nem iríamos afixar cartazes dizendo “Por favor, dê a descarga”.

Em assembleia, decidimos criar “grupos de responsabilidades”: do Material Comum, das Arrumações, do Rádio e Máquina de Escrever, das Datas e Aniversários, do Terrário e Jardim, dos Jogos e Brincadeiras… E lançamos um projeto de geração de Responsabilidade (um dos três valores presentes na nossa matriz axiológica).

Cada criança ficou responsável por cuidar de um animal. Era esse o único “trabalho de casa”. No final do tempo de aprender na escola, as crianças levavam os seus protegidos para as suas casas, cuidando deles, até à manhã seguinte. Se precisassem de hospitalização, havia um grupo de responsabilidades do hospital, que acolhia os doentes. Os “médicos de serviço” pesquisavam para fazer um diagnóstico e, se não fosse necessária a intervenção de um veterinário, ali se fazia o tratamento.

Havia um animal que não se poderia levar para casa: o bicho-da-seda. O grupo das Experiências do Laboratório cuidava deles. Quando os bichinhos nasciam, as crianças se revezavam na recolha de folhas de amoreira com que os alimentavam. Entre a eclosão dos ovos e o aparecimento do casulo, o bichinho não poderia passar nem um dia sem comer.

Diligentes e cumpridoras das suas responsabilidades, de segunda a sexta-feira, as crianças serviram aos bichinhos duas refeições diárias. Até que chegou o fim de semana. Era evidente que não pediríamos a uma criança que fosse à escola no sábado ou no domingo, para alimentar os animais. Nem seria possível deslocar para uma casa o tanque onde os bichinhos viviam.

Uma professora se ofereceu para fazer esse serviço. Lembrei-lhe que nem um só dia poderia deixar de os alimentar. Pareceu ter ficado ofendida com o meu lembrete:

“Fique tranquilo, colega. Eu sei muito bem o que devo fazer!”

Na segunda-feira, quando entrei na escola, escutei choro de criança. Todos os bichos tinham morrido de fome. Quando a colega “responsável” chegou, as crianças perguntaram:

“Professora, por que fez isso? Isso é maldade.”

“Que quereis, meninos? Esqueci-me!”

Dali me retirei, para não fazer uma besteira.

Como todas as aprendizagens, a aprendizagem do cuidar requer exemplo, bons exemplos. A aprendizagem é antropofágica. Eu não aprendo o que o outro diz; eu aprendo o outro. Daí que eu insistisse em perguntar aos meus colegas formadores:

“Por que dizeis aos formandos que o centro é aluno, se dais aula centrada no professor?”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCV)

Ribeirão Preto, 4 de janeiro de 2043

Magda Soares secundava Darcy, na crítica do modelo educacional ainda hegemônico nos idos de vinte:

“As camadas populares têm que lutar muito contra a discriminação e a injustiça. Alfabetização e letramento têm esse objetivo: dar às pessoas o domínio da língua como instrumento de inserção na sociedade e de luta por direitos fundamentais”.

A nossa Mestra partiu no exato dia da tomada de posse de um novo governo. Alguns dias antes do seu falecimento, fora publicado o relatório do Gabinete de Transição Governamental.

Seria de esperar que uma nova composição ministerial tentasse emendar erros e traçar novo rumo de política educacional. E um primeiro sinal foi dado, quando o presidente revogou um decreto que incentivava o atendimento de estudantes com deficiência em escolas especializadas, uma das medidas de retrocesso tomadas pelo anterior governo.

O relatório contemplava quase todas as dimensões da crise em que o “sistema” estava atolado. Quase todos, pois se esquecia do essencial: para um novo governo se requeria uma nova educação!

Era verdadeira a afirmação de que, desde o início do governo anterior, “a política de educação fora negligenciada”, mas ela tinha sido negligenciada desde o tempo do ministro Francisco Campos e do Capanema!

Durante quatro anos, se tinham sucedido “denúncias de corrupção”, mas o que esperar de práticas de um modelo educacional hegemônico, moral e intelectualmente corrupto? O que esperar de um monstro burocrático hierárquico e autoritário, comandado por economistas, pastores, engenheiros, advogados, médicos, e outros profissionais, para os quais as ciências da educação sempre foram ciências ocultas? Ajudei bons ministros, mas, porque o foram, perturbaram o status quo vigente e viram o seu mandato reduzido a alguns meses, ou mesmo dias.

Entre a criação do ministério, em novembro de 1930 e o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova distou pouco mais de um ano. Nesse hiato, Anísio e seus pares perceberam que seria necessário colocar a Educação no século XX. Mas a sinistra máquina ministerial operou a fagocitose dos “pioneiros”.

Fagocitose é a propriedade que algumas células têm de capturar e ingerir outras células. O “sistema” possuía mecanismos de fagocitose. E, porque o Anísio não se deixou fagocitar, o mataram. Em 1934, fora definido, constitucionalmente, que a educação seria “direito de todos os brasileiros”. Quase cem anos depois, por via da manutenção de um obsoleto modelo educacional, que Anísio, Darcy, Lauro, Nise, Freire e muitos outros insignes mestres denunciaram, a educação continuava a ser negada a milhões de brasileiros.

O relatório do Gabinete de Transição destacava “questões preocupantes” como “a reforma do ensino médio”. Era preocupante, mas não no sentido que era dado a essa afirmação. Fiquei preocupado, quando o documento referia como “ação de grande relevância” o ENEM.

Desde que (em 1934!) a Constituição consagrara o direito de todos os brasileiros à educação, se deveria considerar inadmissível a utilização de instrumentos de darwinismo social. Por essa razão e na intenção de ajudar a erradicar ilegalidades, dirigi algumas perguntas ao novo ministro e aos meus companheiros das ciências da educação:

Por que havia ENEM? Por que havia um “ensino superior”? Haveria algum “ensino inferior”?

O segmento universitário não era “obrigatório”. Mas, não seria “um direito de todos”?

Pedi-lhes que dessem respostas fundamentadas na lei e numa ciência prudente. Em breve, vos direi quais as respostas que recebi.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCIV)

Belo Horizonte, 3 de janeiro de 2043

Aos noventa anos, a Magda mantinha contato com escolas e professores, trabalhando, voluntariamente, com alfabetizadores na rede municipal de Lagoa Santa. E, no decorrer da sessão de homenagem, disse pretender “voltar ao chão da escola”.

Quatro anos antes, recuperando-se de uma cirurgia delicada, dizia que nem mesmo o fato de encarar a mesa de cirurgia a deixou preocupada.

“Mas quando saiu o anúncio sobre essa Secretaria de Alfabetização, eu passei noites e noites em claro. Não conseguia dormir. Não sei o que vai ser”.

As propostas da Magda tinham sido alvo de críticas por parte do recém-nomeado secretário de alfabetização do MEC, mais um político arrogante, que se atrevia a considerar o letramento como o “vilão da alfabetização”. Formado em Direito, ignorante do que fosse alfabetizar, defendia o uso exclusivo do chamado “método fônico”, pelo que Magda, a propósito se manifestava.

“Alfabetização não é uma questão de método. O grande equívoco na área de alfabetização é que, historicamente, sempre se considerou que alfabetização era uma questão de método. Sabemos que os professores ensinam da mesma maneira como aprenderam quando eram alunos.”

Quarenta anos antes, este jovem professor (já fui jovem…) acolhera as propostas da Emília e da Magda sobre o processo de alfabetização inicial: restituir a língua escrita seu caráter de objeto social; aceitar que todos podem produzir e interpretar escritas, cada qual em seu nível; estimular a criança na interação com a língua escrita em vários contextos.

Nesse tempo, eu fazia a minha especialização na área da alfabetização e já praticava várias metodologias – fonomímicas, fonossintéticas, globais, silábicas e o “tu já lê” – mas a abordagem da Magda ajudou-me a ultrapassar alguns limites. E a compreender por que o ministério da educação sempre se mostrou incapaz de obstar aos elevados índices de analfabetismo literal e funcional.

No dia 7 de setembro de vinte e dois, a nossa amiga Magda Soares completava 90 anos de idade. E, no primeiro dia de 23, nos deixou órfãos do seu saber. Em boa hora, a organização da Feira Literária de Ribeirão Preto quis homenageá-la. Agradeci e aceitei o honroso convite de ser autor dessa homenagem. Entre o palco do evento e a casa da Magda se desenrolou esse mais do que justo ato de reconhecimento do trabalho por ela desenvolvido. De muita aprendizagem lhe fiquei devedor!

A Magda, introdutora no Brasil do conceito de letramento vira o seu último livro receber o Prêmio Jabuti de melhor livro de Educação e Pedagogia e de não-ficção, em 2017. Com autoridade, a Mestra afirmava:

“Nós temos mudado de método a todo momento ao longo das décadas e nunca conseguimos resolver nosso problema de alfabetizar todas as crianças, no tempo certo.”

Ela sabia não haver um “tempo certo” para aprender a ler. E isso confirmei.

Um velhinho de 90 anos pediu-me que o ensinasse a ler. Perguntei-lhe por que queria aprender.

“Sou testemunha de Jeová. E o pastor lê coisas nos livros sagrados e eu não sei se está certo.”

Gravei um cassete com o primeiro capítulo da Bíblia e dei-lhe a ler o texto. O velhinho já passara pela EJA e pelo bê-á-bá fônico, sem lograr aprender. Aprendeu.

Uma senhora de 32 anos fez-me pedido idêntico. E lhe fiz a mesma pergunta.

“Professor Zé, o meu marido tem chegado tarde a casa. Ele diz que trabalha até tarde, mas ando desconfiada. Se eu soubesse ler uns papéis que ele tem no bolso do paletó!”

Aprendeu a ler em dois meses. Separou-se no mês seguinte.

Afinal, alfabetizar não será ajudar a fazer leituras de mundo emancipatórias?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCIII)

Aldeia da Prata, 2 de janeiro de 2043

Na década de setenta, o prefeito do lugar onde nasceu a Escola da Ponte era um indivíduo corrupto e prepotente. Por altura de um ato eleitoral, chorando convulsivamente, o pai de uma aluna me pediu para ir falar com o prefeito.

“Professor Zé, eu dei o meu nome para a lista da oposição. Ele é o meu patrão. Chamou-me ao escritório, despediu-me e despediu a minha mulher e o meu filho. Estou desgraçado!”

“O que quer que eu faça, meu amigo?”

“O senhor pode ir falar com o meu patrão e dizer-lhe que tiro o meu nome da lista? Pode ser que ele me deixe voltar a trabalhar na fábrica.”

Assim fiz, evitando o despedimento. Mas, ficou em mim, operacional da “Revolução dos Cravos”, o travo amargo da humilhação sofrida por um homem, que apenas pretendia exercer cidadania ativa.

A revolução, que acabou com 48 anos de ditadura, tinha acontecido quatro anos antes. A maioria dos prefeitos herdara vícios de antanho. A democracia ainda era uma miragem.

Dono de fábricas, esse prefeito era um dos maiores responsáveis pela poluição do rio que atravessava a vila. E, quando as crianças da Ponte, em assembleia, decidiram fazer um projeto de despoluição, alguns repórteres se interessaram pela “novidade” e até a televisão produziu uma reportagem. Era a primeira vez que Vila das Aves surgia na tela da TV. E por um bom motivo.

Na reportagem, as crianças denunciavam a atitude dos donos das fábricas, que tinham destruído a fauna e a flora do Rio Vizela. E isso não agradou aos donos das fábricas. Em especial, ao prefeito.

No dia seguinte, jagunços a soldo de “alguém” foram à escola, destruíram a horta comunitária, derrubaram o “hospital dos animais”, onde as crianças acolhiam e tratavam animais abandonados ou feridos, e os mataram. Com o sangue das inocentes vítimas, escreveram na parede da escola: “MORTE AO PROFESSOR”.

Foi a gota de água! O prefeito se apercebera de que, ali, morava um foco de aprendizagem de cidadania. E fez tudo o que pode para destruir a Escola da Ponte.

Em meia dúzia de anos, uma comunidade se constituíra a partir de uma escola. Tradições e saberes populares foram recuperados. Não demorou que pedissem que me candidatasse à presidência da prefeitura. Em espírito de serviço, aceitei.

No dia da eleição, quando terminou a contagem dos votos, as vozes do grupo de cantos populares que eu dirigia, acompanhados do som do cavaquinho, do bombo e da flauta, faziam chegar a notícia de que eu tinha sido eleito.

Não sei como descrever a emoção sentida, quando a porta da secção de voto se abriu e eu fui atirado para os braços de um povo, que devolvera a democracia à sua cidade.

Por que estou a contar-vos isso, se já são passados mais de sessenta anos?

Porque, no primeiro dia de janeiro de há vinte anos, , após tempos sombrios, assisti ao regresso da democracia ao meu país de adoção. E guardei numa velha pen drive a reportagem, que a tv realizou.

Nela, o presidente eleito dizia:

“Não nos interessa viver do passado. Democracia para sempre!”.

Vi o povo subir a rampa do palácio, ladeando o presidente eleito. Um novo país ali estava, diverso e fraterno. Vi uma catadora entregar-lhe a faixa presidencial. E, não sei se por ser velho chorão, dei por mim… chorando.

Já levo mais de quarenta anos de Brasil, mas sou português. Então, por que me emociono? Talvez porque, quando o presidente falou do direito à educação, eu avaliei o quanto seria difícil Lula conseguir desmontar um modelo educacional produtor de homofóbicos, racistas, misóginos, ditadores e outros bonsais humanos, que haviam usurpado as cadeiras do poder. E que pouco poderia fazer para o ajudar.

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