Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCXCII)

São José dos Campos, 2 de março de 2043

Queridos netos, de vez em quando, preciso levar-vos notícias de tempos idos, para que não vos instaleis nas novas normose de 2043. A memória é esperta, vai apagando registos de ignomínia e corremos o risco de total esquecimento do que acontecia, vinte anos atrás.

“A diretora de uma escola da Flórida foi forçada a renunciar depois que um pai reclamou que alunos da sexta série foram expostos à “pornografia” durante uma aula sobre arte renascentista que incluía a escultura David, de Michelangelo.

A pobre diretora não resistiu à campanha de difamação e renunciou ao cargo após o ultimato do presidente do conselho escolar.

Um pai reclamou que o material era pornográfico e dois outros disseram que queriam ser notificados sobre o conteúdo das aulas, antes que elas fossem dadas a seus filhos.

Em entrevista ao site Slate, Barney Bishop, presidente do conselho pedagógico, disse que, no ano passado, a diretora enviou um comunicado aos pais avisando que os alunos iriam ver a imagem de David, mas o mesmo procedimento não foi feito este ano. Bishop chamou isso de “erro flagrante” e disse que “os pais têm o direito de saber sempre que seus filhos estão lidando com um tópico ou uma imagem controversa”.

Vivíamos temos sombrios, cativos de fundamentalismo, doentes de ignorância. 

A estátua retrata David com uma funda na mão, indo lutar contra Golias. Recordei-me de ter passado mais de uma hora numa fila à porta da Galleria dell’Accademia de Florença, para contemplar o David de Michelangelo. 

A polêmica deixou florentinos e especialistas em arte renascentista perplexos. A diretora da Galleria dell’Accademia disse estar “impressionada” com a situação e afirmou que pensar que a estátua de David é pornográfica revela não apenas uma má compreensão da Bíblia, mas da própria cultura ocidental.

“Não acredito que isso realmente aconteceu, no começo pensei que fosse uma notícia falsa, de tão improvável e absurdo que era”, disse a diretora do museu. “É preciso fazer uma distinção entre nudez e pornografia. Não há nada de pornográfico ou agressivo no Davi, ele é um jovem, um pastor, que mesmo segundo a Bíblia não usava roupas ostentosas, mas queria defender seu povo com o que ele tinha. Confundir arte com pornografia é simplesmente ridículo. Arte é civilização, e quem a ensina merece respeito.”

Quase contemporâneo de Michelangelo, apesar de considerar ser possível ensinar todos os alunos como se de um só se tratasse”, Comenius advogava uma educação em ambiente escolar arejado. Porém, durante mais de quatro séculos, os alunos foram armazenados em “estufas calafetadas”, alinhados em classes (pretensamente) homogéneas e tratados como se fossem um só. 

Havia escolas de salas com porta de fechar, cujo cheiro a mofo já ninguém sentia – eram as ditas “salas de aula normal”. Sempre que eu deparava com esse dístico afixado na porta das salas normais”, eu perguntava: 

“Cadê as salas anormais?”

Perguntaram a Michelangelo como conseguira fazer a estátua de David.

“Foi fácil” – respondeu o gênio de Florença – “Olhei para o bloco de mármore e imaginei o David dentro dele. Depois, só foi preciso retirar tudo o que não era David”.

Era preciso “retirar do mármore aquilo que não era David”. Era preciso libertar a escola daquilo que não fazia sentido. 

Certo dia, cansado de lembrar aos educadores o que era o óbvio, fiz um livrinho a que dei o título de “Inovar é Assumir um Compromisso Ético com a Educação”. Esse seria o primeiro passo para libertar David do bloco de mármore em que estava encerrado – uma decisão ética, coragem e amorosidade em ato. 

Por: José Pacheco

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