Itajubá, 4 de abril de 2043
Voltei ao sótão da casa velha, para jogar fora o baú das velharias, vazio, enferrujado. Atrás do pesado baú, encontrei um embrulho. Retiradas as teias de aranha, sacudido o pó, ali estava um molhinho de cartas enviadas a entes falecidos.
Todas elas têm data de há trinta anos e nos falam de comunidade. Se a humidade as não danificou, vo-las darei a ler. A primeira das cartas é dirigida ao Padre Vieira e aborda um fenômeno desse tempo, felizmente já erradicado: a corrupção.
“Qual a causa da corrupção de uma terra? Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem do que fazer o que dizem. O que se há de fazer ao sal que não salga e à terra que não se deixa salgar?”.
Deixarei para outra cartinha a reflexão do Vieira sobre a praga “corrupção” e selecionarei um pedaço de prosa, em que o jesuíta nos fala da crise de “escuta” setecentista e do tempo em que escrevi as cartas achadas no sótão.
Prezado Antônio, em São Luís do Maranhão, longe da Lisboa onde Santo António havia nascido, quiseste lembrar o “santo casamenteiro”, atribuindo ao sermão proferido nessa data a designação de “Sermão de Santo António aos Peixes”.
Estávamos em 13 de junho de 1654. Três dias depois, embarcaste para Portugal, escondido no fundo de uma nau. Estava no auge a luta dos jesuítas contra a escravização dos índios e tu ias procurar apoio no outro lado do mar.
Esse teu sermão é revelador da tua ironia e da capacidade de observação dos vícios dos colonizadores e dos esbirros da Inquisição, que lograste ludibriar recorrendo a alegorias. Jesuíta inteligente e moralista exímio, deitaste mão a metáforas memoráveis, que, se eram ajustadas à crítica dos costumes da sociedade do século XVII, continuam atuais – quiseste pregar aos peixes, enquanto os homens não te quisessem escutar.
Permite, meu Vieira pregador, que transcreva um excerto do teu primeiro sermão: Pregava Santo António e, como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes.
Esse trecho era tão eloquente, que qualquer peixe, por menos atento que fosse, lhe conferiria significado. Porém, a educação brasileira, que, em recuados tempos, sofrera os efeitos da Inquisição, continuava cativa de novas inquisições. Se não, repara!
Reconhecendo que os alunos da escola pública estavam “em desvantagem”, se instituiu bonificação de 20% sobre a nota do ENEM, para usufruto dos pobres coitados, que foram objeto de mau trato pedagógico. Debatia-se o ENEM e o Ensino Médio, enquanto professores eram assassinados por alunos e a desigualdade se perpetuava.
Acreditas, António, que até eram formados professores “especializados em bullying”? Mas, fica sabendo que o sonho não esmorecia. Nos idos de vinte, aconteciam encontros de educadores, que dialogavam, refletiam, interpelavam o status quo. Educadores que partiam da escuta, para repensar a educação necessária. E agir!
Por: José Pacheco
374total visits,2visits today