Salvador, 10 de abril de 2043
O meu baú das velharias é uma caixinha de surpresas. Ontem, quando procurava umas recordações da Mãe Luíza, achei o início de tudo o que viria a acontecer, a partir do ano vinte e três. Misturado com um montinho de cartas, estava um “recado” da minha amiga Teresa, que junto a esta cartinha.
A Teresa lembrava a necessidade de mudança e que o currículo era produção de conhecimento e não algo “pronto-a-vestir”, consumido a partir de um livro, do discurso de um professor, ou “baixado” da Internet.
A Teresa havia passado longo tempo no Brasil. Voltara a Portugal, quando eu segui os seus passos, visitando escolas da região onde ela tinha desenvolvido voluntariado. Numa curta permanência numa das escolas – o vosso avô era viciado em chão de escola – testemunhei incidentes críticos, observei novas práticas e delas fiz registos. Vos dou a ler um deles.
Estava eu rondando por “espaços de aprendizagem”, quando num deles entrou uma menina, que se dirigiu a uma professora nestes termos:
“Eu acho que já sei fazer raiz quadrada. Pode ver se eu sei?”
Espaço de aprendizagem não era outro nome que davam a salas de aula. Naqueles “espaços” não se praticava ensinagem. Acontecia aprendizagem, como ides ver.
A tutora perguntou:
“Por que foste aprender raiz quadrada? Não me recordo de termos falado disso.”
“Pois não” – retorquiu a pequena – “Mas foi assim…”
Seguiu-se um saboroso diálogo. Faltam nele alguns pormenores, sobretudo termos idiomáticos baianos, que se me escaparam na tentativa de reproduzir o essencial.
“Então, diz lá por que estudaste raiz quadrada”.
“Lá na comunidade, fizeram uma quadra para futebol e basquete. E o meu pai pediu-me ajuda.”
“O teu pai pediu-te ajuda?”
“Sim. pediu.”
“Por quê?”
“Ele disse que era preciso pintar as linhas da área do goleiro, que é preciso fazer a roda de onde se atira a bola de basquete, e que ele já não se lembrava de como se faz.”
“E, então?”
“Então, eu estudei com a Maíra e o Gus e pus no meu planejamento essas coisas. Fui falar com o professor Nelson, da matemática e ele ajudou-me a estudar nuns sites da Internet e nos livros da biblioteca. E já aprendemos o que é um segmento de reta, um ângulo reto, como se faz uma circunferência, como se sabe a área do círculo, o que é o “pi” e por aí vai… Até vimos que havia uma coisa chamada “raíz quadrada” e que é uma coisa engraçada…”
Foi, mais ou menos, assim que captei a descrição de um processo de aprendizagem, que culminou deste modo:
“E o que queres que eu faça?” – perguntou a mestra.
“Que me passe uma raiz quadrada, a ver se eu sei fazer.”
A professora pôs num papel uma raiz quadrada com seis dígitos. Rapidamente, a mocinha resolveu a charada. A professora verificou: estava certa. E perguntou:
“E, agora, o que vais fazer?”
“Vou ajudar o meu pai a pintar as linhas e o que falta pintar na quadra.”
Tudo fora gravado no vídeo do ifone da professora. Quando a menina se foi, essa “evidência de aprendizagem” foi para o portfólio digital da aluna, para a plataforma digital da escola.
A criança tinha partido de uma necessidade social, comunitária. Produziu currículo de comunidade. e até aprendeu a fazer raiz quadrada.
Resta dizer a idade da criança: sete anos.
Por essa altura, eu já perguntara a milhares de professores se sabiam fazer uma raiz quadrada e se, durante as suas vidas, tinham precisado de a fazer. Poucos se lembravam do como fazer (e só professores de matemática), ninguém dela tinha precisado. E eu me perguntava:
Por que não tinham aprendido?
Se ninguém precisara desse conhecimento, por que razão constava do currículo pronto-a-vestir desse tempo?
Por: José Pacheco
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