Lagoa das Amendoeiras, 8 de abril de 2043
Nas nossas idas ao sítio de Pocinhos de Rio Verde, enquanto subíamos a encosta do sítio, o Rubem apresentava-me as árvores, uma a uma. Colocava poesia em tudo o que escrevia e fazia. Prodigamente, erotizava Tanatos, transmutava tristeza em renascimento. O Rubem plantara árvores em memória de amigos já falecidos.
Também o vosso avô praticava rituais. Na Sexta-Feira da Paixão, escutava a Paixão Segundo São Mateus, de Bach. No Sábado da Ressurreição, o Messias, de Haendel. Ontem, após saborear a genialidade de Bach, religiosamente, me debrucei sobre o baú das velharias.
Nele encontrei uns papéis escritos pelo Rubem, à mistura com um monte de CD rom. Já ninguém fabrica aparelhos que permitam reproduzir o seu conteúdo. Só um velhíssimo laptop me revela depoimentos neles contidos. Numa delas, achei palavras deixadas pela Helke numa mensagem feita de espírito pascal, de ressurgimento, recomeço:
“Recomeçar assusta um pouco. Causa certo desconforto e medo. Mas permite novos horizontes. Traz a cura para certas feridas. Possibilita alegrias. Agrega a vontade de se reencontrar.
Você enfrenta as turbulências e (re)descobre que a vida pode ser leve; abriga sorrisos e não desperdiça a chance de se fazer feliz.
A vida é arte de encontro. De inspirar o desconhecido sem recear o que vem depois, porque a gente sempre se constrói nas escolhas que faz. Não tenha medo. Dê o primeiro passo, você não tem que conhecer o percurso todo.
Tenta.”
Li essa mensagem, exatamente há vinte anos, num Sábado de Aleluia. Neste dia de há vinte anos, as palavras da Helke eram anúncio de ressurreição. Aleluia significa louvor, alegria, e essas suaves palavras foram como um bálsamo de curar feridas profundas, provocadas por dolorosas notícias:
“Morre criança que teve corpo queimado em ônibus incendiado no Rio de Janeiro.”
A via-sacra do ódio não terminara. Mais de dois mil anos depois, Jesus sofria tormentos e continuava a morrer, no corpo de uma criança.
O termo hebraico Pesach está na origem da palavra Páscoa e significa “passagem”. Simbolicamente, Páscoa é oportunidade para refletir sobre vida ressignificada.
Em 1506, já não havia judaísmo em Portugal. Contudo, um grupo de cristãos-novos foi denunciado, por realizar um “Seder de Pessach” clandestino.
Aquele dia fatídico era também a primeira noite de Pessach, data que por acaso coincidiu com a Páscoa dos cristãos.
A cerimônia foi interrompida por religiosos fanáticos. Pessoas foram presas, enquanto a multidão, aos gritos, pedia que fossem queimados vivos por heresia.
A peste, que grassava em Lisboa, era uma situação propícia para o ódio e para o fanatismo religioso. A massa popular, sedenta de sangue, perseguiu e arrancou os cristãos-novos de suas casas, levando-os para as fogueiras onde seriam queimados vivos.
As casas e os pertences das vítimas foram saqueados. Crianças e bebês foram jogados pelas janelas e contra as paredes.
Por três dias, Lisboa foi palco de um massacre. Calcula-se que mais de dois mil judeus foram assassinados no massacre da Páscoa de 1506.
Distopicamente, o fomento do ódio do século XVI perpetuava-se nas práticas educacionais familiares, sociais e escolares do século XXI. Cinco séculos decorridos, o câncer do ódio se reproduzia em violentos, tenebrosos atos.
Na Páscoa de há vinte anos, as palavras da Helke anunciavam um novo tempo. Diziam-nos que a cultura do ódio, em breve, seria debelada nas famílias e na sociedade, na Páscoa de escolas de fraterno recomeço, em práticas comunitárias feitas de amorosidade e de coragem renascida.
Por: José Pacheco
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