Algodões, 16 de abril de 2043
Netos queridos, presumo que tenhais dado a ler a amigos e vizinhos as cartinhas que vos envio, porque a de ontem mereceu comentário de educadoras:
“Ontem, resolvi expressar minha opinião no grupo do “Combate à violência nas escolas”, trazendo os holofotes para as causas da violência e mostrando que tratar as consequências não seria o caminho. Só fui criticada.”
Precisamos mudar a educação básica para, no futuro, não passarmos o que estamos passando hoje. O trabalho preventivo deveria acontecer a partir da gravidez das mulheres. Muitos filhos já vêm ao mundo sem amor e atenção.
Precisamos agir! A saída está na prevenção. O depois do já feito é só chorar sobre o sangue derramado e punir.”
A clarividência dessas educadoras contrastava com a irresponsabilidade de uma desgovernação masculina.
Nos idos de vinte e três, a propósito do pronunciamento de um Secretário de Estado, os meus colegas teoricistas pronunciavam-se deste modo, nas redes sociais:
“Infelizmente o que o Feder, que, diga-se, não é educador, está propondo é um remendo, que é pior do que o soneto.
O que ele fez no Paraná não serve de exemplo para nenhuma rede. Precisamos ficar de olho nos detalhes.”
Esses colegas punham o dedo numa das “feridas” do sistema: o novo aprendiz de feiticeiro não era educador. Aliás como quase todos os secretários e ministros, desde que o ministério era ministério. Desde a criação do Ministério da Educação, dezenas de homens o dirigiram e apenas uma mulher foi ministra.
Por isso, perguntava aos meus colegas teoricistas:
“E se o feminino fosse maioria na governação? Já imaginaram um ministério da educação gerido por mulheres?
Não mulheres que se comportam como machos, quando estão em funções governativas, como a Margaret Thatcher, apenas mulheres.”
Era certo e sabido que, por detrás de uma grande mulher, havia sempre um grande homem. Por exemplo, quando os formadores de professores citavam Freinet, os formandos supunham que estivesse a referir-se ao Celestin. Mas, cadê a Elise, exímia professora de Arte e companheira do Celestin?
Quando os livros de história da educação apresentavam uma lista dos vinte maiores vultos da pedagogia do século XX, regra geral, nomeavam dezoito homens e apenas duas mulheres: Montessori e Ferrero. Num sistema educacional patriarcal, apesar de serem maioria, a mulheres eram quase invisíveis.
Armanda Alberto foi uma das duas mulheres subscritoras do Primeiro Manifesto da educação brasileira. Gesto pleno de significado de uma militante feminista, que criticava feministas, aquelas que viam no homem um ‘inimigo’ da mulher”.
Atraída pelas teses da Escola Nova, transformava o chão da escola num laboratório, bem ao modo de Montessori. Antecipou em um século a prática de contraturno, pois as crianças completavam o dia com o cultivo da horta e a criação de animais.
Quando presidente da Associação Brasileira de Educação, sofreu a perseguição da polícia política e acompanhou a Olga Prestes nas prisões do Getúlio. Pagou elevado preço pela sua ousadia.
As agruras da prisão não esmoreceram o seu entusiasmo. E a cidade de Duque de Caxias lhe deve a criação da primeira biblioteca pública. Na Biblioteca Euclydes da Cunha, pugnou pela valorização da obra de autores brasileiros e desenvolveu formas criativas de mobilização da comunidade.
Queridos netos, pressinto que estareis a perguntar por que razão quis falar-vos deste modo, e vos satisfaço a curiosidade. É porque, fez ontem vinte anos, a nossa comunidade perdeu alguém, que poderia ter sido uma mulher construtora de comunidades.
Por: José Pacheco
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