Sintra, 19 de abril de 2043
Nos idos de vinte e três, foi breve a passagem por Sintra, mas foi tempo suficiente para sentir um entusiasmo latente e uma vontade expressa de rever o modo como se poderia fazer das crianças seres mais sábios e mais felizes.
Ali, só conheci boa gente: o Luís, a Conceição, a Isabel, a Carla e um sem-fim de educadores de primeira água. Mas, a surpresa maior foi-me proporcionada pela Rita, quando me apresentou os seus pais. O Luís e a Manuela devolveram-me o “espírito pátrio”, pela via de uma gentileza sem limites. Reencontrei o saber receber, a lusa hospitalidade, que pensava ter sido perdida.
Deixara no Brasil um princípio de descrença, dera-me ao direito de um tempo de ausência, para me recuperar. Debelados tempos sombrios, a educação brasileira continuava à deriva, entre o trauma do assassinato de crianças e a sina daqueles que morriam sem nunca terem vivido. Porque ainda se morria no Brasil “de morte igual, da mesma morte severina: a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte”.
Uma estranha cegueira não permitia enxergar o que o atento olhar do João desvendava:
“Escolas são usinas, que engolem gente e vomitam bagaço”.
Escassos professores atentos à tragédia conversavam com os seus alunos sobre o que queriam ser. A Elen me dera a ler os seus preciosos registos:
“Uma boa parte quer ser médica, outra parte quer ser engenheira e não identifiquei algum querendo ser professor. Descobri que alguns alunos gostariam muito de ser pedreiros.
Mas por que sonhar com uma profissão tão árdua e de pouca remuneração? Fiquei sem entender!
Até que um daqueles que sonham em ser pedreiro, teve dó de mim e resolveu explicar o motivo de muitos quererem essa profissão.
Tia, a senhora sabe o que é e o que faz um pedreiro?
Pedreiro é o profissional que trabalha na construção civil. Não deverias tentar ser doutor, criaturinha?
Ele sorriu e respondeu:
Tia, pedreiro é quem vende pedra de crack. Aqui, na comunidade, quem vende mais pedras ganha mais, tem “participação nas vendas”. A senhora não vê alguns alunos com celulares de última geração e cordão da moda? Compram com o dinheiro da “comissão” da venda.
Neste momento, meu mundo desabou completamente.”
A diretora de uma escola chamou o pai de um aluno, para lhe sugerir que levasse o seu filho para uma escola particular, porque aquela “só tinha aluno marginal”, aquele aluno que a escola-usina vomita como bagaço, na ignorância de que o “marginal” regressará, armado de fuzil de assaltar, ou já cadáver exibido nos jornais e na tv.
A curiosidade levou-me até à escola dos ditos marginais. Contornei altos muros e dispositivos de proteção. Passei por jardins cobertos de lixo. Desemboquei num pátio repleto de avisos de proibições, entremeados de grades. Por detrás de outras grades, o olhar inquisidor de uma funcionária fuzilava o visitante (os olhos de outra funcionária estava pousado no facebook). Escutei os gritos de professores, dando aula. Vi jovens alheios à aula, bocejando, usando celular, acondicionando fones nos ouvidos.
Eu procurava um ponto de apoio onde assentar uma frágil crença em dias melhores. Valeu-me a recordação de um velho affaire com a minha professora de francês, que me levara a acreditar nos versos de Paul Eluard:
« Au bout du chagrin Une fenêtre ouverte, Une fenêtre éclairée, Il y a toujours un rêve qui veille, Désir à combler, Faim à satisfaire, Un cœur généreux. »
E, na década seguinte, quando tudo parecia estar perdido, sobre as ruinas da velha e obsoleta escola, o Brasil veria nascer uma nova construção social de aprendizagem.
Por: José Pacheco
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