Capelas, 7 de junho de 2043
Nos idos de vinte e três, encontrei nos Açores um projeto onde todos os alunos eram “especiais”, quando a “inclusão” prometida em Salamanca ainda não passara de mero enfeite de tese. O conceito precisava de clarificação. Comprovei essa necessidade, inopinadamente.
Quando me perguntavam: “Então? Tudo bem?”
Eu respondia: “Não está tudo bem, mas há-de ficar”
Quando me perguntavam: “O senhor é o José Pacheco”
Respondia: “Tem dias! Tem dias em que creio ser, outros em que ando à minha procura”.
Havia dias em que não deveria sair de casa… E organizador daquele evento não sabia que eu estava num desses dias. Pela enésima vez, me dirigiu convite:
“O senhor doutor não vem ao palco? Venha! Suba!””
Não subi.
“Tem power point?”
“Não. Só tenho power.”
Pareceu não entender a chalaça. E insistiu:
“Pode dar-me a sua “apresentação.”
“Não tenho “apresentação.”
“Então, o que é que o senhor doutor vai dizer na sua palestra?”
“Não sei” – respondi – “Ainda ninguém perguntou.”
Eu não palestrava, transformava auditórios em escutatórios. Escutava, dialogava, convidava à ação refletida. Como sempre, perguntei:
“O que quereis saber?”
Milhares de vezes havia feito essa pergunta. A resposta era o silêncio. Porém, daquela vez, um braço se ergueu.
“A senhora quer fazer uma pergunta?”
“Não é bem uma pergunta. É um comentário. Posso fazer?”
“Certamente! Faça o favor!”
“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso de inclusão.”
“Muito obrigado, minha senhora”.
“Não acabei…” – disse a senhora, sustendo a vaidade que me invadia. Deveria ter lido os meus livros sobre inclusão e me parabenizava.
“Então, diga.”
E a senhora disse:
“O senhor é a pessoa indicada para abrir um congresso sobre inclusão, porque eu já vi que o senhor é deficiente.”
Gargalhada geral!
Contei até vinte. Respirei fundo. Perguntei:
“A senhora acha que eu sou deficiente por quê?”
“Porque eu já vi que o senhor é estrábico.”
“A senhora pode chamar-me estrábico, vesgo até, mas a deficiência é de natureza conceptual ou de contexto. Expliquei que, quando tentei ensinar um surdo, não consegui. E que, se houvesse um deficiente ali, seria eu, que não sabia a linguagem gestual. Quando uma criança com paralisia cerebral chegou à Ponte, deficiente era o contexto, pois não havia rampa de acesso.
A senhora não desarmou:
“O senhor é deficiente.”
“Por quê, minha senhora?”
“Porque o senhor vê menos do que eu!”
Essa “deixa” me permitiu provar-lhe o contrário, questionando o velho conceito anglo-saxônico da “teoria dos dotes”. Contei-lhe um episódio por mim vivido, quando via um programa de televisão num espaço público.
Um daqueles seres humanos, que andam sozinhos no mundo não me viu – eu seria paisagem, transparente – e se colocou entre mim e o aparelho de televisão.
Perguntei à senhora:
“Se estivesse no meu lugar, como reagiria?”
“Eu diria para o cavalheiro ter respeito e sair da minha frente.”
“A senhora iria criar uma situação de conflito.”
“Pois ia.”
“Eu não precisei de criar tal situação.”
“Como? O sujeito não se pôs entre si a televisão?”
“Pôs-se entre mim e a televisão. Mas, eu fechei o olho direito e passei a olhar a televisão com o olho esquerdo, continuei a ver a televisão. A senhora é capaz de fazer isso?”
“É claro que não!”
“Então quem é o deficiente? A senhora, que só consegue ver de uma maneira, ou eu, que vejo de três?”
Perduravam muitos equívocos nas mentes e nas práticas. A chamada “educação inclusiva” não era missão exclusiva da Escola. Era um produto histórico de uma época e de realidades educacionais que requeriam o abandono de estereótipos e preconceitos.
Por: José Pacheco
277total visits,2visits today