Portela do Homem, 12 de junho de 2043
Entre a Ribeira e o Jardim da Cordoaria dos idos de cinquenta, agudizara-se o clima de “guerra santa” entre os Tigres da Vitória e os Índios da Cordoaria. Entre retaliações, vinganças e contra-ataques, conseguíramos feito “pessangas” (lede a dupla observação do fundo da cartinha) com a malta da Ribeira, fazendo-os nossos aliados nas lutas que nos eram impostas e que nós, gente de paz, não desejávamos. Também era fato que não nos fazíamos rogados, porque um “tripeiro” não virava a cara à luta…
Éramos crianças nascidas em berço miserável, sobreviventes de outras lutas. Apenas tentávamos conservar algum espaço vital para o futebol de rua e para a atividade comercial dos nossos amigos ciganos. A “faixa de gaza” dessa altura era a Bataria da Vitória. Se aquele lugar havia servido para o quarto Pedro de Portugal (primeiro do Brasil) despachar a tropa do irmão Miguel, ali instalamos o “quartel general”, junto à Fábrica de Rebuçados Vitória.
Aquela saída da escola ficou marcada por uma torpe emboscada, a que reagimos rijamente.
“Ó Zé, vai lá para a frente, que tu és o chefe!”
E lá fui, à frente da minha seita, bem protegido pelo meu fiel escudeiro Artur, tentando escapar a uma saraivada de pedras, que nos isolou do resto do meu exército. Acabei com a cabeça partida e o sangue jorrando, a caminho do Hospital de Santo António. Ali, me esperava o sorriso sádico de um enfermeiro:
“Ora cá está mais um daqueles que pensa que eu não tenho mais nada que fazer!” – e toca de me mostrar a agulha curva e a tripa com que iria coser a minha testa.
Chegado a casa, com a cabeça enrolada em trapos e roupa suja de sangue, logo o meu pai, de cinto na mão pronto para a sova, perguntava:
“Que aconteceu?”
“Caí, pai.”
“Ai caíste? Eu dou-te a “queda”! Toma lá!”
E lá vinha uma coça de escacha pessegueiro.
Foi entre infantis contendas e pancadas do meu progenitor, que aprendi lealdade, que vivi uma solidariedade, que assegurava a sobrevivência das gentes da Ilha dos Tigres – a ética do cuidar – um por todos, todos por um. Ali, a ética era um fato.
Netos queridos, ficastes surpreendidos com uma afirmação contida na cartinha de ontem. Escrevi que o maior obstáculo à mudança seria eu, se não decidisse tomar a decisão ética de reelaborar a minha cultura pessoal e profissional. Eu e cada professor, que permitisse que dele fizessem um funcionário de bovina obediência a “superiores”, que o recompensavam com aumento de salário, à medida que lhes ia sendo fiel.
Como referi, quando fui para professor, eu sabia de eletrotecnia, não sabia ser professor. Eu sabia dar aula, à semelhança do titular de um qualquer curso, que enveredava pela profissão de professor.
A cultura profissional dos docentes padecia de equívocos. Um diplomado em Física poderia saber muito de Física, mas não sabia ser professor. Formandos de outras áreas de qualquer curso de formação inicial poderiam ser exímios dadores de aula, mas não eram professores. E, se um dador de aula reconhecia que, dando aula, não conseguia garantir a todos o direito à educação, teria direito a continuar a trabalhar desse modo? Se não assumisse um compromisso ético com a educação, teria direito de continuar a ser chamado professor?
Observação:
“Pessanga” é ‘calão” tripeiro, significa pedir tréguas, expressão usada pelas crianças, nos seus jogos, brincadeiras e guerrilhas.
“Tripeiro” é o nome que dão ao habitante da cidade do Porto. A palavra tem origem numa lenda. Após os preparativos da armada da conquista de Ceuta, o Porto ficou sem carne, foi toda nos barcos da armada. Ficaram as “tripas à moda do Porto”.
Por: José Pacheco
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