Camboinhas, 22 de julho de 2043
Neste ano da graça de quarenta e três, o vosso avô beneficia de distanciamento crítico, relativamente a malfeitorias de há vinte anos. Nesse tempo, dava por mim recordando versos da Sophia:
“Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar / Vemos, ouvimos e lemos /
Relatórios da fome / O caminho da injustiça / A linguagem do terror / O nosso tempo é pecado organizado.”
Eu bem tentava serenar ímpetos de nativo taurino. Porém, continuavam a chegar à caixa do correio apelos que não poderia ignorar.
“Bom dia, Professor. Espero encontrá-lo bem. Trago-lhe a resposta que recebi, à carta que enviei à escola, no seguimento da nossa conversa:
“Começo por agradecer o que invoca como razões para a escolha da escola para matricular o seu educando. Relativamente à existência de vaga nas turmas do 8ºano, informo que, na Escola temos apenas 2 turmas do 8.ºano, uma delas com oferta de Francês, língua que foi iniciada pelo seu educando no ano letivo anterior, e que se encontra com o n.º máximo de alunos permitidos por lei, pelo que, infelizmente, não poderemos aceitar mais inscrições.
No entanto, temos uma possível solução na Escola Básica, onde temos vaga na turma do 8.º ano de com oferta de Francês.”
Professor Zé, veja se faz sentido. Acontece que a Escola Básica fica a 15km, e me parece disparatado colocar o Damião a fazer esse trajeto diariamente, quando pode manter a sua autonomia a pé, na cidade e aprendizagem na comunidade onde vive.
Não sei o que fazer agora… regresso à escola de origem? Há algo mais que possa argumentar?
A resposta fala em duas turmas e número de vagas, legais… Peço a sua opinião, por favor. Muito obrigada.”
Aquela mãe me pedia opinião. Enquanto mestre em ciências da educação, eu estava proibido de emitir opinião sobre o assunto, de “achar” – o “achismo” era apanágio de amadores não de professores. Somente poderia informar e fundamentar. Assim fiz.
Sugeri que perguntasse à senhora diretora quais os critérios de natureza científica com que fundamentara a resposta. Isto é, que explicasse: o que era o “8º ano”, se o sistema estava organizado em ciclos; qual era o “número de alunos por turma”, por que seria tal número e se seria o número máximo ou o mínimo possível; e ainda o que seria uma “turma” e o porquê de haver, ou não haver, “vaga”.
E que, amávelmente, recomendasse usar o numeral dois (e não o número 2), para estabelecer concordância com o género do substantivo…
Se a memória não me trai, nos idos de vinte, o ministério determinou – sabe-se lá porquê! – que o número de alunos por turma fosse 24.
Nesse tempo, ainda havia nas escolas turmas e outros absurdos instrucionistas, e um Crato de má memória, um ministro para quem as ciências da educação eram “ciências ocultas, tinha determinado que esse quantitativo fosse 26. Outros ministros tinham decidido que fosse 25, 23… enfim! Por que 24 e não 25, 23, 11, 55?
Pedi à quela mãe que comunicasse à senhora diretora que se tratava de criar uma nova construção social de aprendizagem, fundamentada na lei e nas ciências da educação, na qual a tralha instrucionista (sala de aula, turma, número de alunos…) não fazia sentido.
A “lei” que a senhora evocava era regulamentação da lei geral, pelo que, também, sugeri à mãe do Damião que voltasse a evocar o parágrafo terceiro do artigo 48º da Lei da bases do Sistema Educativo, porque, ao que parecia, a senhora diretora não o teria lido.
Por via desses e de outros ministeriais disparates, municípios do interior do país envelheciam demograficamente e havia aldeias desertas de crianças.
Víamos, ouvíamos e líamos. Não poderíamos ignorar.
Por: José Pacheco
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