Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLX)

Paranhos, 17 de setembro de 2043 

Netos queridos, há dias em que sinto uma preguiça de séculos e vos poupo a este incómodo de ler “reflexões” –  se assim lhe posso chamar – de um avô palavroso. Seja como for, aqui estou, vencendo a prostração e a moleza, tentando manter este epistolar modo de dizer. 

Hoje, rebusquei o fundo do baú das velharias, para achar registos de um tempo em que cerca de um terço dos professores sofria de bullying. De um tempo em que, na Coreia do Sul, o governo chegou a oferecer dinheiro para crianças e adolescentes saírem dos seus quartos. 

Aumentava o número de casos de bullying, por meios virtuais, e até de pedofilia e sequestro de crianças. As atenções se voltaram para o sócio emocional do estertor de um sistema perverso. 

Participei de alguns debates. E, tentando escapar a uma reflexão teoricista de circuito fechado, partilhei alguns episódios colhidos em escolas de uma nova construção social.  

Era uma criança por todos considerada “violenta”, hóspede quase permanente de um “quarto escuro”, onde cumpria longas horas “de castigo”. Porém, nem o negro isolamento domava a juvenil fúria. Em sucessivas vagas, a soco, a pontapé, à dentada, forçava a fuga das companheiras, e abreviava o regresso ao “quarto escuro”. 

Recém-chegada, a Ana depressa se apercebeu daquele círculo vicioso de “crime e castigo”. Poucos dias decorridos, aproveitando um momento de distração da endiabrada rapariga, prendeu-a nos seus braços. 

A pequena ainda esperneou, mas sem conseguir escapar ao amplexo. Resignada, julgou chegado mais um momento de recolher à punitiva escuridão. Tremeu quando a Ana a beijou na face. Correu para novas tropelias, logo que a Ana a largou. Não levou muito tempo a regressar. Ia direita ao “quarto escuro”, de orelha pendurada, quase arrastada pela vigilante que a surpreendera em flagrante delito. 

De novo, a Ana intercedeu por ela. A vigilante largou-a nos seus braços. A pequena já quase não opôs resistência. Sentiu o abraço como abraço e recebeu um beijo sem frémito aparente. Sem demora, foi procurar mais sarilhos e voltou – qual pássaro, há muito tempo, sem ninho – ao aconchego de abraços.

Algumas idas e vindas depois, o íman do afeto a prendeu, definitivamente. 

A vida dos professores era recheada de atos humanizadores dignos de narrar. Quando cheguei à Ponte, avisaram-me de que aquela era a “turma do lixo”, “o refugo da escola”. Aqueles trinta mafarricos tinham infernizado a vida das professoras que por lá passavam. O Domingos, que nos seus quinze anos, era o decano da turma, só à sua conta tinha conhecido doze. Umas despachavam os malfadados para o último professor “agregado” que lá caísse no ano seguinte. Outras agarravam-se ao atestado como o náufrago à boia salvadora e desapareciam para nunca mais. 

Nas manhãs de invernia, quando algum deles se deixava ficar no aconchego dos lençóis, era “menos um para aturar”. Nas manhãs primaveris, quando outros se perdiam pelo caminho, a jogar à bola, era “um alívio”. 

Decorrido muito pouco tempo, a gélida sala de aula já se amornava, transbordava de doce ternura. Havia mais “socio emocional” naquele lugar ermo do que em todos os compêndios que eu já tinha lido. 

Compreendi por que razão certos teoricistas recorriam a uma abundante adjetivação – “líricos”, “lunáticos”, “utópicos” e outros epítetos bem menos lisonjeiros. Alguns já faleceram, outros estão à espera de alguém que os descubra. 

Insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que de bom possa ter e ser. 

 

Por: José Pacheco

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