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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXIII)

Caldas da Rainha, 9 de novembro de 2043

Mãos amigas encaminharam para a minha caixa de correio as imagens que junto a esta cartinha. Nelas, duas mães velam os seus filhos, no mesmo lugar do mundo, com uma diferença de 2.000 anos.

Mos idos de vinte, não hesitei em denunciar cíclicas tragédias resultantes de uma iníqua “ordem social”, obra de políticos formatados por um iníquo modelo educacional fundado na competitividade negativa, que, já no início do século XX, Maria Montessori denunciara. Na Ucrânia, no Iémen, na Faixa de Gaza, a agonia da infância acompanhava a agonia de um modelo escolar que, a todo o custo, os poderosos do mundo tentavam manter.

Nele reinava a competitividade negativa. Estrambólicas premiações da “melhor escola do mundo” culminavam campanhas de acirrado marketing político. E era curta a distância entre escolas que afixavam “quadros de mérito”, a divulgação de rankings e o “And the winner is!” de ridículos concursos de “Professor Nota 10”. 

Proliferavam “inovações” na Internet. Empresas e fundações patrocinavam generosamente organizações consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, assessoradas por áulicos universitários saídos das catacumbas da educação do século XVIII.

A curiosidade me impeliu à consulta do currículum vitae de palestrantes de “lives” e congressos. Havia muitos “especialistas em educação” formados em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças… 

Psicólogos protagonizavam “lives” de autoajuda. Médicos davam formação sobre “neuroeducação em sala de aula”. Economistas introduziam o “e-learning em sala de aula”. Filósofos discorriam sobre “computação ubíqua em sala de aula”. Comunicadores principescamente pagos proferiam palestras sobre “inovação”, recuperando pedagogias fósseis, como a do “aluno no centro do processo de aprendizagem”. E os professores as reproduziam em situações de ensinagem… em sala de aula. 

Escutei um “especialista” dizer que havia “ajudado muitos alunos do 1º ciclo a adaptar-se a passagem da monodocência para a pluridocência do 2º ciclo”. E, no tempo dessa transição, crianças desenvolviam incontinência urinária, outras ficavam febris, na “hora de ir para a escola”. 

“É assim a vida!” – diziam alguns – “Terão de se adaptar.”

A que “adaptação” se referiam? Ao conformismo? À subserviência? Referir-se-iam a alunos doentes de normose, escolarmente domesticados, que poderiam regressar à sua escola para matar colegas e professores? 

Câmaras de vigilância eram colocadas em salas de aula, acompanhadas da advertência: 

“Agora, terão de se comportar!”. 

Matava-se a moral, quando se levava a agir com medo de castigo, impedia-se o desenvolvimento moral dos jovens.

Quando, no chão da escola, perguntava a uma criança o que gostaria de saber, ou fazer, ela respondia:

“Eu posso dizer o que quero saber? E o que quero fazer?”

Já não faziam perguntas, nem sabiam o que responder. A curiosidade infantil se esvaíra. Já tinham escutado milhares de respostas a perguntas que nunca tinham feito. Já tinham perdido o hábito de perguntar, de interrogar a vida. 

O amigo Matias lançava veementes apelos: 

Deixem as crianças em paz e não façam de conta que a escolarização segue os cânones normais. Não afoguem as crianças com classificações, modismos escolares totalmente despropositados. Afirmem a importância da comunicação e convivialidade, libertem a casa da lógica da escolarização.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXII)

Restelo, 8 de novembro de 2043

Voltei a remexer em velhos baús, reencontrando papéis, compact disk, que já não tenho onde ver e ouvir, pen drive empoeiradas e papéis. Muitos papéis, os restos mais duráveis, que me fazem restaurar boas e más memórias. Neles achei uma notícia de há, exatamente, vinte anos, quando a minha amiga Helena me levou a participar no primeiro “Innovators Forum”. “Especialistas em Educação pedem novos modelos de ensino” era a parangona da notícia. Seguia-se a descrição do evento.

“A Educação foi o tema central, que juntou especialistas nacionais e internacionais, para discutir tendências, desafios e oportunidades nesta área crítica para a sociedade, sempre com uma lente de futuro. O evento contou com mais de mil participantes, professores, alunos, empresários e decisores.”

A Cláudia deu o mote, evocando a memória e propósito do pai Belmiro:

“O futuro precisa de ser desenhado e inventado. Precisamos de novas abordagens, novas experiências e muita determinação dos vários agentes da sociedade”.

“Ao longo da manhã, subiram a palco diversos especialistas para debater as mudanças que devem existir para escalar a Educação do futuro. Entre eles Sugata Mitra, que mostrou a sua visão sobre o futuro da Educação, destacando, em particular, que o sucesso dos alunos não deve ser medido pelo nível de conhecimento, mas antes pela sua capacidade de compreensão, comunicação, que o propósito da Educação passa por permitir às pessoas viver vidas felizes, saudáveis e úteis.

O Innovators Forum contou com diversos debates centrados em tópicos como os novos modelos educativos em Portugal ou a necessidade de repensar o tradicional sistema de ensino. José Pacheco, educador fundador da Escola da Ponte e da Open Learning School chegou mesmo a referir que o atual “sistema não funciona, é inútil. Ele não pode ser melhorado, tem de ser mudado”.

Recordo-me de, no final do encontro, ter comentado que “não há bela sem senão” Realçada a oportunidade e a importância dessa reunião, nela voltei a assistir à naturalização de um modelo educacional obsoleto, pois os oradores continuavam a falar de “sala de aula”, “turma”, “carga horária” e “quinto ano”.

Vinte anos antes, um pai atento e preocupado me dizia que a filha tinha produzido um vídeo sobre piratas e manifestado vontade de aprender a “fazer cinema”. O João perguntava:

“Como aproveitar este desejo dela? Devo “forçar” perguntas? 

O professor da minha filha marcou estes trabalhos, para hoje: Português: gramática – determinantes (artigos definidos e indefinidos, possessivos e demonstrativos); Matemática: diagrama de caule-e-folhas; frações; tabuadas; operações; unidades de medida de comprimento; Estudo do Meio: solos e formas de relevo; meios aquáticos; sistema solar; pontos cardeais; itinerários; Cidadania: ser responsável.

O que poderia aquele pai fazer, perante absurdos? Que “conselho” eu poderia dar a um pai, que demonstrava tanta preocupação e sensibilidade? Não soube o que responder a essas interrogações:

Como organizo o desenvolvimento do projeto? E a avaliação? Como sei que aprendeu? Uma apresentação sobre o projeto é suficiente? O trabalho escrito é suficiente?”

No dia seguinte ao do Fórum fui até às Caldas, conversar com pais e mães da qualidade do João, pais e mães conscientes da necessidade de usar as propostas de especialistas e palestrantes no contexto de uma nova construção social de aprendizagem. E lamentei que ainda houvesse especialistas, palestrantes e professores que não se apercebiam da farsa de fingir que se ensinava “dando aula”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDXI)

Lisboa, 7 de novembro de 2043

Por volta de novembro de dois mil e vinte e três, na Faixa de Gaza, entre os muitos milhares de vítimas dos bombardeios israelitas, mais de 3400 eram crianças.

Condoído, Mia Couto falava de caixões pequeninos. Os mesmos que as minhas mais distantes recordações de infância me trazem. Não havia dia que não visse passar esses caixões pequeninos no ombro do homem que os levava para o cemitério. Na Ilha dos Tigres da década de cinquenta, era absurda a taxa de mortalidade infantil. Setenta anos decorridos, a fome e as guerras continuavam a ceifar vidas de inocentes. 

Conversava com colegas professores, quando um deles perguntou:

“O que é que isso tem a ver a educação?”

“Tem tudo.” – respondi – “Quem educou os monstros que cometem tais crimes?”

A Família os tinha engendrado e educado. O Estado, através da Escola, havia naturalizado um modelo educacional origem de múltiplas violências. A Sociedade os tinha educado e condenado.

Rompendo o silêncio da denúncia da barbárie, vozes conscientes se faziam ouvir. Como a de Craig Mokhiber:

“Esta será minha última comunicação oficial como Diretor do Escritório de Nova York do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Estou escrevendo para você em um momento de grande angústia para o mundo, inclusive para muitos de nossos colegas. Mais uma vez, estamos testemunhando o desenrolar de um genocídio diante de nossos olhos e a Organização a que servimos parece impotente para impedi-lo. 

Foi nos escritórios da ONU que trabalhei durante os genocídios contra os tutsis, os muçulmanos bósnios, os yazidis e os rohingyas. Em todos os casos, quando a poeira baixou sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas, ficou dolorosamente claro que havíamos falhado em nosso dever de cumprir os imperativos de prevenir atrocidades em massa, proteger os vulneráveis e responsabilizar os perpetradores. O mesmo tem acontecido com as sucessivas ondas de assassinatos e perseguição de palestinos ao longo da existência das Nações Unidas.

Estamos falhando, mais uma vez. Como advogado de direitos humanos com mais de trinta anos de experiência nesse campo, estou bem ciente de que o conceito de genocídio foi muitas vezes abusado politicamente. Mas a atual matança do povo palestino, enraizada em uma ideologia etnonacionalista colonial, uma continuação de décadas de perseguição e limpeza sistemáticas, baseada inteiramente em sua arabidade e associada a declarações explícitas de intenção do governo israelense e de líderes militares, não deixa espaço para dúvidas ou debates. 

Em Gaza, casas, escolas, igrejas, mesquitas e instalações médicas estão sendo atacadas sem motivo e milhares de civis estão sendo massacrados. Na Cisjordânia, incluindo a Jerusalém ocupada, as casas são confiscadas e realocadas exclusivamente com base na raça. Além disso, pogroms violentos perpetrados por colonos são acompanhados por unidades militares israelenses. O apartheid reina em todo o país.

Entrei para esta Organização na década de 1980 porque encontrei uma instituição baseada em princípios e padrões que estavam resolutamente do lado dos direitos humanos. Esse é um caso exemplar de genocídio. Temos muito pelo que nos desculpar. Mas o caminho da expiação é claro. Temos muito a aprender com a posição de princípios adotada nos últimos dias em cidades do mundo todo, onde milhões de pessoas estão se manifestando contra o genocídio, mesmo correndo o risco de serem espancadas e presas.”

Na cartinha de amanhã, talvez volte a falar-vos da tristeza dos caixões pequeninos.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDX)

Galeão, 6 de setembro de 2043

Em meados da década de oitenta, encontrei o Mestre Patrício, nos encontros da Comissão da Reforma do Sistema Educativo (CRSE), cadinho da Lei de Bases de 86. Depois, segui-lhe os passos, no projeto da Escola Cultural. Na génese da Lei de Bases, o pensamento do Mestre projetava um novo olhar sobre a Educação e sobre a Escola: 

“É preciso que o Homem se conheça a si próprio, no seu ser, é preciso que o Homem se forme, se eduque, se cumpra no seu ser – que cada pessoa possa ser outro para ser ele mesmo”.

Nos idos de sessenta, eu havia lido Mounier e a sua proposta personalista. Tinha estudado Dottrens e o seu ensino individualizado. Em 86, a Ponte já havia completado uma década de projeto, e o aluno era, efetivamente, o centro do processo de aprendizagem. Mas, pressentia lacunas no nosso labor pedagógico. A abordagem simultaneamente pedagógica e antropagógica do Mestre Patrício nos ajudou a colmatá-las.  

A proposta de “Escola Cultural”, também chamada “Educação Pluridimensional”, tinha cariz escolanovista, fora influenciada por Claparède, Montessori, Dewey, e antecedeu, em décadas, os debates sobre “Educação Integral”. A proposta de uma nova Paideia, visava a educação integral do ser humano considerado multidimensional – não apenas no domínio da cognição, mas, igualmente, no domínio da afetividade, emoção, ética, estética e até mesmo no da espiritualidade.

A produção de conhecimento caraterística da Escola Cultural aproximava-se do conceito e da prática do currículo tridimensional concebido pelos Românticos Conspiradores de 2004 e pelo Movimento de Educação Humanizada da década de vinte. Cada dimensão – da subjetividade, da comunidade e da consciência planetária – no seu conjunto, se revelava na transmissão do legado cultural e na criação cultural.

No site do Centro Educativo inspirado na obra do mestre Patrício se falava de redução do impacto ambiental, da maximização de um impacto social positivo e de uma estratégia de sustentabilidade global, desenhada em torno dos ODS. E as conferências nele realizadas eram tempos de comunitários encontros: 

“Que as conferências sejam presenciais e que seja possível conviver-se, debater-se e sonhar-se o futuro da educação em comunidade”.

Era evidente a tomada de consciência de que os projetos de humanização da educação contemporâneos não se coadunavam com as práticas escolares de então, origem remota de um mundo em guerra permanente, da corrupção generalizada e de outras e de outras violências. 

A obra do Mestre Patrício poderia ajudar a concretizar tal mudança, mas era, quase por completo, ignorada. Nos idos de vinte, falava-se de autonomia, de protagonismo juvenil, afirmava-se a necessidade de transformar o aluno em sujeito de aprendizagem, enquanto se mantinha hegemônico o trabalho pedagógico centrado no professor. 

Estávamos entrando na geração 5.0. já dispúnhamos de impressoras 3d, com as quais podíamos fabricar objetos, sem sair de casa. A Internet das coisas facilitava a vida em comum. O wi-fi planetário transformava o mundo uma pequena aldeia. A robótica e o desenvolvimento exponencial da inteligência artificial iriam substituir o ser humano em múltiplas situações. 

Talvez tivesse chegado o tempo de fazer justiça ao Metre Patrício, de voltar a estudar a Escola Cultural, de repensar a educação a partir da produção de vínculos entre pessoas.

“O homem é o único ser que conhecemos que se trabalha a si mesmo sobre uma ideia de si mesmo. Ou seja: o homem é o único ser sobre a Terra que quer ser outro para ser ele mesmo” – Mestre Patrício dixit.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDIX)

Inoã, 5 de novembro de 2043

Muitos anos atrás, no livro “Mágoas da Escola”, Daniel Pennac escrevia:

Eu era, portanto, um mau aluno. Na minha infância, chegava todos os dias a casa perseguido pela escola. 

As minhas cadernetas refletiam a censura dos professores. Quando não era o pior da turma, era o penúltimo. Impenetrável à aritmética primeiro, à matemática em seguida, profundamente disortográfico, refratário à memorização das datas e à localização dos pontos geográficos, inapto para a aprendizagem de línguas estrangeiras, considerado preguiçoso (lições não estudadas, deveres por fazer), levava para casa notas lamentáveis que nem a música, uma qualquer atividade desportiva ou extracurricular, de resto, conseguia remediar.

Compreendes? És, ao menos, capaz de compreender o que te explico?”

No velhinho Instagram, a Tina respondia ao Daniel, “explicava”, publicando textos de antologia, marcados pela coragem da denúncia. 

Essa boa amiga mereceria ser mais lida, mas aquele era um tempo de “influencers” fabricados com um marketing agressivo, e a educação não era assunto do interesse dos “influenciados”. 

Por isso, na tentativa de fazer um mínimo de justiça a uma pessoa ímpar e educadora humanizadora, transcrevo parte de um contundente texto da sua autoria, publicado há cerca de vinte anos. Se ainda estiver na Internet, valerá a pena que vades ler o que a Tina lá deixou. Podereis procura-la no endereço https://www.instagram.com/tinacarvalho_educadora/ 

Transformar a educação é meu propósito de vida. Minhas prioridades e decisões estão sempre ligadas a este propósito.

Eu não tenho tempo para lidar com preguiçosos parasitas e sanguessugas, nem para estar entre os que desfilam egos inflados e vaidades vazias.

Inquieto-me com invejosos medíocres, tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares e imitando seus talentos.

Já não tenho tempo para discutir paliativos inúteis sobre pseudo-inovações na educação, que só geram cortinas de fumaça, impedindo que se mexa no que realmente é necessário: a transição paradigmática.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturas.

As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos (Mário de Andrade). O tempo está escasso para os rótulos, é necessário debater a essência educacional. A infância tem pressa e a sanidade dos educadores também.

Quero estar com pessoas persistentes, insistentes e resistentes (Tião Rocha). Que mesmo com medo, encaram desafios e acreditam que é possível fazer escolas que são asas e que entendem o conceito de que ostra feliz não faz pérolas. (Rubem Alves).

Quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que se dedica para livrar as crianças e professores do “moedor de carnes” (Rubem Alves), através da Educação Humanizada em Comunidades de Aprendizagem.

Só quero caminhar perto de pessoas de verdade. O essencial é invisível aos olhos (Saint Exupéry). Basta o essencial.”

Um dos livros preferidos das crianças da Escola da Ponte era aquele que dava pelo título “Como um Romance”, obra do mesmo autor, o Daniel. Sobretudo, porque o autor listava os “Direitos imprescritíveis do leitor”:

O direito de não ler.

O direito de pular as páginas.

O direito de não terminar de ler o livro.

O direito de reler.

O direito de ler no importa o quê.

O direito ao “bovarismo” (doença textualmente transmissível).

O direito de ler não importa onde.

O direito de ler uma frase aqui e outra ali.

O direito de ler em voz alta.

O direito de se calar.

Calar-se era algo que a minha amiga Tina não conseguia. E ainda bem!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDVIII)

Tiradentes, 4 de novembro de 2043

Voltei a Tiradentes, a convite do amigo Ralph. Em tempos idos, no tempo em que Ralph fora prefeito, ajudei a Cláudia e o Ralph a criar um dos mais belos projetos em que tive oportunidade de participar. 

Terminado o mandato, Ralph não quis continuar à frente dos destinos de Tiradentes. E, à semelhança do que sucedeu em outros lugares, o projeto foi interrompido. 

Voltaria a Tiradentes, em 2024, para o retomar. Dessa feita, com a intenção maior de transformar esse projeto numa referência de humanização do ato de educar.

No início do novembro de há vinte anos, os jornais noticiavam: “Guerra em Gaza completa um mês com dez mil mortos”.

Apelando do fim do conflito, uma atriz chamada Angelina, que se distinguiu pelo seu trabalho como embaixadora da Boa Vontade do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, alertava: 

“Gaza é uma prisão a céu aberto há quase duas décadas e está a transformar-se rapidamente numa vala comum.”

E a Bárbara isto escrevia: 

“O futuro da humanidade está em quem sente o sofrimento dos outros.

Na terça-feira, passou um mês que o Hamas decidiu entrar em Israel, matar indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, e fazer reféns. Os ataques à Faixa de Gaza matam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças. “Olho por olho, dente por dente”, diz o Livro do Êxodo, quando Deus fala com Moisés, depois de este sair do Egipto. É a chamada lei do talião, da reciprocidade entre o crime e o castigo.”

Mais de três mil crianças haviam perecido nesse conflito armado. Levaria ainda muito tempo, até que a voz de John Whitehead fosse escutada:

‘Crianças são as mensagens vivas que enviamos para um tempo que não veremos.’  Essa é a razão de fazermos o que fazemos. Nós queremos que a mensagem que mandamos ao futuro seja uma mensagem de esperança. É a mensagem que a natureza nos urge a enviar.“

Mas havia quem, anonimamente, cuidasse de crianças desvalidas. Na Comunidade da Lagoa das Amendoeiras, a Bruna e a sua equipe matavam a fome de alimento do corpo e da alma em crianças filhas de famílias que viviam abaixo do limiar da pobreza. A filantropia de uns poucos ia mitigando carências de todo o tipo. A Patrícia ajudava quanto podia. Os amigos da Escola Aberta iam contribuindo para alguma sustentabilidade financeira do projeto. 

Aproximava-se a época natalícia, e a Cecília emitia mais um pedido de ajuda:

“Nesta semana, receberei as cartinhas do Papai Noel das 115 crianças do Centro Educacional Comunidade São Jorge, no Alto Independência. 

Como boa Mamãe Noel que sou, estarei com esta linda missão. E, para que possa levar tanto amor para meus pequenos, conto com meus ajudantes, carinhosamente, chamados de PADRINHOS DE NATAL. 

A ideia é compartilhar os pedidos das cartinhas com minha rede do bem e encontrar padrinhos para estas 115 lindezas! 

Se você quer receber o arquivo com as cartinhas, me dê um oi por aqui, que estou fazendo a lista dos possíveis padrinhos.

Já adianto para vocês que a emoção é grande, no dia! É lindo de ver e acho que nós, que doamos, ganhamos tanto quanto eles.” 

A Cecília ilustrava o apelo com um vídeo. 

“Deixo aqui para vocês apreciarem uma cena que nos marcou. Em 2019, uma criança pediu biscoitos Dorytos e Nutella. O padrinho dela deu-lhe um saco cheio destas guloseimas. A criança abriu e esbanjou alegria, ao ver aquele tanto de biscoito. E não pensou duas vezes: começou a distribuir com os colegas!

Ah! E reparem que tem uma querida comemorando, pois ganhou roupinhas para o enxoval da irmã que iria nascer. Toda esta cena é muito encantadora!

O que esta cena nos ensina? Em que lugar ela nos toca e nos motiva?*

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDVII)

Morro do Estado, 3 de novembro de 2043

A escassos dias de nova viagem a Portugal, tive ensejo de voltar à Escola “Ayrton” e de reunir com professores da Escola “Júlia”, lugares onde as crianças do Morro do Estado eram acolhidas e cuidadas. Em ambas, conheci educadores e educadoras com disponibilidade para, partindo do que eram e do que sabiam, empreender transformação, rever práticas, inovar. 

Na “Ayrton”, na sequência de formação presencial, propus estudo e instalação de dispositivos. Ironizei, dizendo serem essas tarefas “dever de casa” (naquele tempo, ainda havia professores que encomendavam “deveres de casa). Em Niterói, até havia uma empresa com o nome… “Meu Dever de Casa”. A mercantilização da Escola Pública mostrava-se exponencial. Às “deserções” para o ensino doméstico, para o ensino individual, para escolas particulares juntava-se a “sangria” das empresas conhecidas como “centros de estudo”, centros de explicações”, de “aulas de reforço”. de “aulas de recuperação de aprendizagem”, de “aulas de preparação de provas nacionais”.

Por força da criação de atividades de contra-turno, crianças eram submetidas a doses duplas de tédio. Com a criação do “apoio à família” (trabalho de Babysitter) e de “atividades de enriquecimento curricular” (melhor dizendo, de desculpabilização curricular), se acrescentava algumas horas para além das passadas dentro de salas de aula, sendo os jovens submetidos a uma abusiva e absurda “ocupação do tempo livre”. E, confundindo “educação integral” com educação em tempo integral, “especialistas”, “doutores”, “assessores” e “consultores“ – destes vos falei na cartinha de ontem – castigavam a infância com aquilo que o amigo Tião chamou de ”serviço militar obrigatório aos seis anos”.

Se os interpelava, por não saberem que resposta dar, reagiam com rancor. Tão dogmáticos quanto privados de elementares saberes das ciências da educação, se quedavam silenciosos perante simples questionamentos:

Se existia a intenção de “transformar as relações entre as pessoas em outra lógica que não a da competitividade, mas a da cooperação”, por que se insistia m perenizar uma escola competitiva, seletiva, excludente?

Por que havia sala de aula? Por que ainda se “dava aula”? Por que razão uma aula durava cinquenta minutos?

Por que havia ano letivo, semestre, trimestre, bimestre, “carga horária”? Por que havia ciclo e ano de escolaridade?

Por que razão o banheiro (quarto de banho português) dos alunos não era, também, dos professores? Não conseguindo dar resposta a estas e muitas outras perguntas, alimentavam absurdos, indiferentes aos trágicos efeitos do “sistema”.

Por muitos anos, a Educação permaneceu à mercê de “aprendizes de feiticeiro” e fragmentada em: “formal”, “informal”, “quilombola”, “do campo”, “financeira”, “para a paz”, “para a saúde”, “para o trânsito”, “ecológica”, “ambiental”, “superior” (e “inferior”?), “religiosa”, “laica”, “pública”, “particular”, “familiar”, “escolar” (por sua vez, segmentada em: “infantil, fundamental, média, básica, secundária”), “personalizada”, “individualizada”, “holística”, “ao longo da vida”, “municipal”, “estadual”, “federal”, “para a cidadania”, “de adultos”, “de povos originários” e outros adjetivos à palavra “educação” colados, se perdendo a noção de conjunto e adiando um re-ligare essencial. . 

Era tamanho o desperdício, que cheguei a pensar desistir do papel de “Grilo do Pinóquio” e fazer a minha parte, me alienando, parcialmente. Mas, eis que surge uma nova geração de esperançosos pais e professores. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDVI)

Campo de São Bento, 2 de novembro de 2043

Vai para uns trinta anos, no velhinho e abandonado facebook, o meu amigo José transcrevia palavras de outro amigo (o Nóvoa), acompanhando o texto com o desenho, que junto a esta cartinha, da autoria da minha saudosa amiga Angelina (como vedes, o vosso avô era rico de amigos).

“Durante muito tempo as reformas sonharam que podiam mudar os “sistemas educativos”, depois preocuparam-se com os “currículos”, agora tendem a centrar-se nas “práticas pedagógicas”. 

Uma leitura atenta permite-nos identificar as razões do fracasso das reformas empreendidas em Portugal nas décadas de oitenta e de noventa. Apesar das suas diferenças, acabaram por revelar as mesmas dificuldades: por um lado, desgastaram-se em intermináveis arranjos de currículos e de programas, esquecendo os modos de organização do trabalho escolar; por outro lado, não conseguiram eleger a escola como o espaço de “negociação da mudança”, pois tal teria obrigado a reforçar as competências e os poderes locais. 

O debate, que envolveu milhares de professores e de outros “atores sociais”, não contribuiu para construir uma inteligência coletiva com base em responsabilidades exercidas no espaço local da escola.”

O amigo José completava um pedaço do prefácio do Nóvoa para o livro do Philippe “Aprender a Negociar a Mudança em Educação” com um eufemístico comentário

“Parece que aprendemos pouco.”

Eu diria que quase nada tínhamos aprendido. O ministério insistia em reformar reformas, investindo em inflexíveis “gestões flexíveis” e cursos de falsas “comunidades de aprendizagem”. Os professores e as escolas viviam sob a ameaça de uma praga – a dos “consultores”. Na cartinha de amanhã, pretendo falar-vos das “cartas educativas”. Por agora, vos deixarei com uma síntese descritiva de uma praga, que custou fortunas ao erário público, que enriqueceu muita gente, mercantilizou a Escola Pública e muito prejuízo lhe causou.

Os “consultores” eram contratados por autarquias, a troco de pagamento de inúteis “relatórios”, “projetos”, “cartas”, e os havia formados em marketing, geografia, psicologia, turismo, inglês, matemática e em outras áreas. Nada sabiam da Educação necessária, mas, do alto dos seus doutoramentos, ditavam leis. Não sendo merecedores de mais extenso arengar, vos remeterei para uma metafórica caracterização de um “consultor”.

Estava o pastor apascentando o seu rebanho, num verde pasto dos cafundós das Gerais e eis que um carro para na estrada. Dele sai um sujeito com paletó de executivo e dele se aproxima.

“Bom dia, doutor! – saudou o pastor – Uai! O que cê faz nesta biboca de Deus? Aqui só passa cata-jeca.”

“Venho fazer-lhe uma proposta.”

“Bão, mar bão mermo!”

“Se eu adivinhar quantos animais você tem no seu rebanho, você me dá uma ovelha?”

“Combinado. Mas olhe que é difisdemais…”

Assistindo à instalação de antena parabólica e computador, disse o pastor. 

“Uai! Cê besta, trem?”

“É tecnologia avançada!”

Feitos os cálculos, o sujeito informou que o rebanho tinha duzentos e trinta animais.

“Certo!” – confirmou o pastor – “Cê pode pegar uma ovelha.”

Quando o visitante se preparava para partir, o pastor assim falou:

“Eu sei o que cê mexe com que.”

“Você disse que sabe qual é o meu trabalho? Foi isso? 

Sim. E, se eu acertar na sua profissão, cê devolve-me o animal?”

“Claro! Mas não vai conseguir. É uma profissão muito nova!”

“Eu acho que cê é consultor.” 

“Certo. Mas, como soube que eu sou consultor?”

“Porque cê chegou e eu não o tinha chamado. Disse-me aquilo que eu já sabia. E, entre tantos animais, levou-me… o cachorro”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDV)

Camboinhas, 1 de novembro de 2043

Nas palestras (que eram diálogos) dos idos de vinte, o vosso avô contava a estória de uma visita feita a uma escola considerada “inovadora”.

Cheguei à escola – leia-se: prédio onde pessoas estavam instaladas, para supostamente ensinar e aprender – uma hora antes de um combinado encontro. 

O portão se abriu. Uma carrancuda criatura perguntou ao que eu ia. A senha “sou membro do Conselho de Educação” abriu caminho. À entrada, uma horta mirrada e lixo espalhado pelos canteiros. No átrio, murais com comunicados, notas de exames, a habitual parafernália burocrática. 

Visitei o banheiro dos alunos. Fotografei dísticos como aquele que junto a esta cartinha. Anotei “inspiradoras” frases ilustradas com desenhos fálicos e outros que, por pejo, não direi.

Depois, fui até à biblioteca. Estava vazia. Melhor dizendo, num canto, havia uma criança. Perguntei-lhe o que estava a fazer.

“Ontem, a senhora diretora foi à minha sala e disse que, hoje, vinha cá um senhor para nos ver a fazer projetos. E disse para a nossa “setôra” (era o modo como os alunos chamavam o professor, uma abreviatura de “doutor”) mandar um menino para a biblioteca. Estou à espera dos meus colegas das outras turmas.”

Estávamos no tempo da famigerada moda da “pedagogia dos projetos”. Partia-se de “temas” para um “faz de conta”. Despedi-me da criança e fui percorrer corredores invadidos por gritos de professores, entrecortados pelo alarido coral de alunos, repetindo melopeias. 

Quando me aproximava da “sala dos professores” – muitas vezes, perguntei onde era a “sala dos alunos”, mas nunca alguém me informou –, eis que uma senhora com ar grave me interpela:

“O senhor é o Professor José Pacheco?”

“Sim, sou.”

“Eu sou a diretora da escola. Doutora fulana de tal. Só esperava o senhor conselheiro pelas quinze horas. Foi isso que me foi comunicado pelo Conselho Nacional de Educação.”

“Sim. Mas, cheguei mesmo agora.

“Ah! Pois…” – suspirou (de alívio).

Convidou-me para entrar na “SALA DA DIREÇÃO” (assim, tudo em maiúsculas) e para eu me sentar. Contornou uma mesa imponente, sentando-se do lado oposto. 

“Então, o que o traz por cá, senhor conselheiro? Certamente, disseram ao senhor conselheiro que esta é uma escola inovadora. Como vê nesta estante, temos recebido muitos prémios.”

A senhora diretora interrompeu um longo silêncio:

“O senhor doutor (Portugal era um país de “doutores”) é professor em que universidade?”

“Também trabalho na universidade, mas sou professor do Ensino Básico.”

O rosto da senhora diretora não disfarçou a surpresa.

“Do Básico? Nem do Secundário?”

“Minha senhora. Sou professor do Ensino Básico.”

“Nunca vi um caso assim! Quando um professor passa a doutor, vai para o Ensino Superior.”

“Prefiro continuar no “inferior.”

“Como disse? Inferior?”  

“Sim, cara senhora” – eu estava a ficar farto daquele desconversar – “Se existe um ensino “superior”, certamente, haverá um “inferior”. A linguagem produz e reproduz cultura…”

“Bom! Vamos ao que interessa! Saiba o senhor conselheiro que esta é uma escola construtivista.” 

O enfado me ajudou a não prestar atenção ao fundamentalismo pedagógico que a expressão encerrava. Mas, a senhora diretora insistiu: 

“Somos como a Escola da Ponte. E o senhor? 

Poderia alimentar um diálogo construtivo, ou me intitular “pós-construtivista.”, mas a impaciência me traiu, quando a senhora diretora inquiriu:

O senhor doutor também é construtivista?

Talvez seja mais…destrutivista.” – respondi.

Um sorriso amarelo atravessou o rosto da senhora diretora. E do resto da reunião nem é bom falar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCDIV)

Maricá, 31 de outubro de 2043

O amigo Sérgio mostrava-se preocupado com o meu silêncio:

“Espero que esteja bem e feliz, apesar dos horrores a que temos assistido, diariamente, que põem à prova nossa crença e esperança na humanidade — mas, ao mesmo tempo, acentuam a necessidade de uma educação que fomente a fraternidade e o respeito à diferença.” 

Um famoso “influencer” (era assim que se designava quem, em redes sociais, tiha “seguidores”) comentava os “horrores”:

 “O mundo está pesado. Uma espessa camada de tristeza está sobre nós. Cada um reage a seu modo. Alguns estão agressivos, outros intolerantes, muitos estão deprimidos. É preciso construir esperança, derramar nos espaços que habitamos uma poeira de amor e sentimentos positivos.”

Estávamos em pleno período das conferências municipais preparatórias do Plano Nacional de Educação 2024-2034. A elas assistia, atento, mas reservado, obsequiosamente calado. Já participara na preparação do PNE 2014-2024 e alertara para o risco de repetirmos erros de antanho. 

Àquilo que é novo não se deve aplicar raciocínios dedutivos, pelo, há trinta anos, aconselhei que o debate acompanhasse a conceção e prática de uma nova Educação. A bafienta Escola do século XIX, subentendida no texto das conferências, viria a neutralizar todas as intenções constantes das vinte metas do plano 2014-2024. 

Nas conferências de 2023 e 2024, não me pronunciei. Quedei-me por uma escuta atenta. Mas, já era de mau agoiro que no texto-base das conferências se naturalizasse práticas obsoletas e que a discussão sobre os sete eixos decorresse em salas de cadeiras enfileiradas, com apoio de braço só do lado direito (como se não houvesse esquerdinos por ali…).  

Com a Vovó Ludi e uma equipe de extraordinários educadores, tentei que os dez anos, que se seguiram fossem de mudança e inovação. Enviamos para secretarias, agrupamentos, universidades e outras instituições um “convite”. Reconhecíamos s ser inadiável o cumprimento de planos municipais e nacionais, concretizando a melhoria da qualidade da educação, a erradicação do analfabetismo, a sustentabilidade socioambiental, a promoção da gestão democrática e da cidadania, com ênfase em valores morais e numa ética do cuidar.

Avaliando o projeto “experimental” desenvolvido ao longo de 2023, concluímos ser possível assegurar a materialização do princípio que dizia ser a Educação um direito de todos e que todos poderiam aprender, desde que fossem criadas condições para tal. 

Desenvolvemos um projeto de formação continuada e de transformação das práticas educacionais, para promover uma boa qualidade da educação, com potencial de difusão em rede. Realizamos reconfigurações de práticas escolares, em escolas da redes municipais e estaduais, através do desenvolvimento de novas competências e da reelaboração da cultura pessoal e profissionals dos seus professores.

A criação de protótipos de comunidade de aprendizagem correspondeu à necessidade da instituição de novas construções sociais de aprendizagem. Nesses contextos se assegurou a efetiva prática de educação integral.

Construídos indicadores de melhoria da qualidade da educação, formulamos diretrizes a adotar na formação de profissionais de desenvolvimento humano. A celebração de contratos e termos de autonomia permitiu dispormos de um tempo de sereno e profícuo trabalho. Propiciada a estabilidade das equipes de projeto, se tornou possível, cuidar do socioemocional dos professores e, sem fazer dos alunos cobaias de laboratório, consubstanciar tarefas e alcançar objetivos. 

 

Por: José Pacheco

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