Caldas da Rainha, 9 de novembro de 2043
Mãos amigas encaminharam para a minha caixa de correio as imagens que junto a esta cartinha. Nelas, duas mães velam os seus filhos, no mesmo lugar do mundo, com uma diferença de 2.000 anos.
Mos idos de vinte, não hesitei em denunciar cíclicas tragédias resultantes de uma iníqua “ordem social”, obra de políticos formatados por um iníquo modelo educacional fundado na competitividade negativa, que, já no início do século XX, Maria Montessori denunciara. Na Ucrânia, no Iémen, na Faixa de Gaza, a agonia da infância acompanhava a agonia de um modelo escolar que, a todo o custo, os poderosos do mundo tentavam manter.
Nele reinava a competitividade negativa. Estrambólicas premiações da “melhor escola do mundo” culminavam campanhas de acirrado marketing político. E era curta a distância entre escolas que afixavam “quadros de mérito”, a divulgação de rankings e o “And the winner is!” de ridículos concursos de “Professor Nota 10”.
Proliferavam “inovações” na Internet. Empresas e fundações patrocinavam generosamente organizações consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, assessoradas por áulicos universitários saídos das catacumbas da educação do século XVIII.
A curiosidade me impeliu à consulta do currículum vitae de palestrantes de “lives” e congressos. Havia muitos “especialistas em educação” formados em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças…
Psicólogos protagonizavam “lives” de autoajuda. Médicos davam formação sobre “neuroeducação em sala de aula”. Economistas introduziam o “e-learning em sala de aula”. Filósofos discorriam sobre “computação ubíqua em sala de aula”. Comunicadores principescamente pagos proferiam palestras sobre “inovação”, recuperando pedagogias fósseis, como a do “aluno no centro do processo de aprendizagem”. E os professores as reproduziam em situações de ensinagem… em sala de aula.
Escutei um “especialista” dizer que havia “ajudado muitos alunos do 1º ciclo a adaptar-se a passagem da monodocência para a pluridocência do 2º ciclo”. E, no tempo dessa transição, crianças desenvolviam incontinência urinária, outras ficavam febris, na “hora de ir para a escola”.
“É assim a vida!” – diziam alguns – “Terão de se adaptar.”
A que “adaptação” se referiam? Ao conformismo? À subserviência? Referir-se-iam a alunos doentes de normose, escolarmente domesticados, que poderiam regressar à sua escola para matar colegas e professores?
Câmaras de vigilância eram colocadas em salas de aula, acompanhadas da advertência:
“Agora, terão de se comportar!”.
Matava-se a moral, quando se levava a agir com medo de castigo, impedia-se o desenvolvimento moral dos jovens.
Quando, no chão da escola, perguntava a uma criança o que gostaria de saber, ou fazer, ela respondia:
“Eu posso dizer o que quero saber? E o que quero fazer?”
Já não faziam perguntas, nem sabiam o que responder. A curiosidade infantil se esvaíra. Já tinham escutado milhares de respostas a perguntas que nunca tinham feito. Já tinham perdido o hábito de perguntar, de interrogar a vida.
O amigo Matias lançava veementes apelos:
Deixem as crianças em paz e não façam de conta que a escolarização segue os cânones normais. Não afoguem as crianças com classificações, modismos escolares totalmente despropositados. Afirmem a importância da comunicação e convivialidade, libertem a casa da lógica da escolarização.
Por: José Pacheco